É curioso como o Estado português, todo ele, mas neste caso o Estado central, tem medo da iniciativa das pessoas e assume que o interesse público é, por mais que se possa considerar em Portugal como um “obscuro domínio”, sempre infinitamente mais razoável que as decisões de terceiros.
Dois exemplos interessantes do novo regime jurídico da conservação da natureza.
O primeiro, o Estado central desconfiando da administração local.
Nas versões preliminares do diploma colheu-se a má experiência anterior com a classificação de áreas protegidas locais e optou-se por uma solução razoavelmente liberal: as autarquias poderiam criar livremente áreas protegidas locais, eram obrigadas a um conjunto de regras de publicitação e definição de objectivos nessa criação e o Estado central tinha a possibilidade de retirar essa classificação se estivesse a ser usada para fins que não correspondem aos da conservação da natureza.
A grande alteração nisto era que a tradicional inacção do Estado central não bloqueava a iniciativa de terceiros, embora permitisse a sua sanção, ainda que por denúncia, por mau uso da classificação de uma área protegida.
Pois na versão efectivamente aprovada do diploma, no seu artigo15º, o processo de aprovação acabou por acrescentar um número final que transcrevo com o anterior para se perceber o seu alcance: “5 - A autoridade nacional avalia periodicamente a manutenção dos pressupostos subjacentes à classificação das áreas protegidas de âmbito regional ou local, designadamente ao nível da adequação da tipologia adoptada e do regime de protecção constante dos planos municipais de ordenamento do território aplicáveis na área em causa. 6 - A avaliação prevista no número anterior determina a integração ou a exclusão das áreas protegidas de âmbito regional ou local na RNAP.".
No essencial, o Estado central não aceita o princípio de que a sua administração local possa incluir na rede nacional de áreas protegidas as áreas locais que entender, fazendo-o, pelo contrário, depender de uma avaliação prévia. A má redacção do artigo acaba por permitir diversas interpretações mas a ideia central que pretendo realçar é a de que o Estado central desconfia de que as autarquias locais, em processos que envolvem participação pública, não sabem o que deve ser ou não classificado localmente e desconfia das suas intenções e, portanto, cria um mecanismo qualquer para perpetuar a tutela.
O segundo exemplo é ainda mais significativo.
O diploma prevê a existência de áreas protegidas privadas, coisa normal noutros países e incentivadas pelo Estado.
Ora em Portugal o Estado teve o cuidado de dizer o seguinte: “5 — O acto de atribuição da designação de «área protegida privada» pode interditar ou condicionar a autorização da autoridade nacional, no interior da área protegida, as acções, actos e actividades de iniciativa particular susceptíveis de prejudicar a biodiversidade, o património geológico ou outras características da área protegida, salvo tratando-se de uma acção de interesse público ou de um empreendimento com relevante interesse geral, como tal reconhecido por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pela área do ambiente e em razão da matéria.”
É caso para perguntar: e quem nos defende dos polícias?
Um proprietário dispõem-se a classificar uma área, voluntariamente, o Estado aceita, e bem, que sejam determinadas regras que são, para todos os efeitos, um ónus para a propriedade e que o proprietário aceita em nome de um interesse que ele reconhece como maior que o seu interesse de proprietário e, mesmo assim, o Estado não só isenta as suas acções do respeito por esses valores como ainda isenta as acções de privados que o Estado considere de interesse geral (o que quer que essa expressão queira dizer).
E repare-se que o Estado nem perde tempo a ponderar interesses, à partida diz logo que todas as acções que o Estado queira que se executem estão automaticamente isentas da ponderação de interesses (a mesma lógica que preside à revisão do regime da reserva agrícola nacional em que simplicidade administrativa é confundida com ausência de regras).
O mais provável é que um proprietário aceite fazer áreas protegidas privadas por uma de duas razões: ou tem benefício fiscal nisso (e em troca garante a biodiversidade) ou está a procurar defender-se do poder iníquo do Estado lhe impôr uma solução que não respeita os valores naturais.
Quanto ao benefício fiscal o regime de conservação diz nada (como aliás em tudo o que diga respeito ao regime financeiro concreto da conservação) e quanto à defesa da conservação, mesmo contra o Estado, o Estado responde o que acima descrevi.
Coitado do Eugénio de Andrade a quem roubei o título deste post, como sofreria em ver-me usá-lo para falar da esquizofrenia que preside a estas normas.
Talvez ele me perdoasse o abuso se eu resgatasse os versos finais do luminoso “obscuro domínio” que escreveu por contraponto a este negro obscuro domínio de que falei:
“onde o furor habita
crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.”
henrique pereira dos santos
henrique pereira dos santos
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