Por razões que não vêm ao caso descobri este texto antigo que escrevi no quadro de uma discussão com colegas meus sobre impactos de projectos nos morcegos. É um texto irónico e deliberadamente provocatório depois do último argumento anterior a ser invocado por um dos meus colegas ter sido a minha ignorância que me impedia de compreender algumas coisas mais ou menos básicas na dinâmica das espécies.
Ao relê-lo achei que dava um post, não mais que isso, um post.
(em verdade, em verdade vos digo, estou cada vez mais convencido de que o que realmente fascina os biólogos da conservação é a morte, a perda e o desaparecimento de que estão sempre a falar e não a vida que precede a morte “que é de todos e virá” (Jorge de Sena). O meu conselho é de que quando ligarem os computadores comecem logo por se concentrar na música que estou a ouvir:
“Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza, é só tristeza e a melancolia que não sai de mim,
Não sai de mim, não sai
Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim, Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é prá acabar com esse negócio de viver longe de mim”
Porque vos faria bem ter uma visão da conservação apesar de tudo feliz por estar centrada no que está para além da possibilidade ou inevitabilidade da perda.)
“Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza, é só tristeza e a melancolia que não sai de mim,
Não sai de mim, não sai
Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim, Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é prá acabar com esse negócio de viver longe de mim”
Porque vos faria bem ter uma visão da conservação apesar de tudo feliz por estar centrada no que está para além da possibilidade ou inevitabilidade da perda.)
Acabando este prólogo (e não é ele que me faz escrever-vos sendo evidentemente uma brincadeira assente numa generalização abusiva da tristeza intrínseca à condição de biólogo de conservação), vamos então ao assunto que aqui me trouxe.
Após várias horas de concentração no espaço confinado do habitáculo de um carro, como aliás já tinha acontecido com o povo do Lobo noutra viagem a Montemuro (“a mais desconhecida serra de Portugal” dizia o Amorim Girão), a quantidade de informação trocada é incomparavelmente maior (mas mais imprecisa) que em meses de trabalho conjunto no ICN. E como eu funciono como a polícia americana (tudo o que me disserem sobre conservação pode ser usado contra as vossas ideias de conservação), retive um aspecto que, se percebi bem, me parece relevante do ponto de vista da conservação dos morcegos:
com frequência quando, por razões fortuitas, aparecem abrigos artificiais eles são colonizados por morcegos. É caso da torre de Tróia, é o caso do buraco na barragem Alqueva, é o caso das minas abandonadas, das casas abandonadas, etc. (ou as sondagens geológcas do Sabor, acrescento eu hoje)
Ora do meu ponto de vista, tendo o cuidado de saber que este processo não será, com certeza, extensível a todas as espécies, este aspecto poderia ter uma papel bem mais relevante numa estratégia activa de conservação dos morcegos deixando de ser encarado apenas no quadro das medidas compensatórias para a destruição de abrigos conhecidos, mas como uma linha de acção e pensamento consistente e consciente de diminuição dos riscos de destruição dos abrigos actualmente existentes, sobretudo os considerados mais importantes e críticos.
Na realidade é possível que alguns dos abrigos mais importantes o sejam não só porque têm boas condições, mas também por falta de alternativas para os bichos.
Isto é válido para as espécies cavernículas mas também para as fissurículas. Admito (começando por admitir que não percebo nada da biologia das espécies o que significa que estou a meter a foice em seara alheia) que o exemplo de Tróia seja a demonstração de que as espécies fissurículas (consideradas de maneira geral raras e com populações mais ou menos descontínuas) estão muito menos ameaçadas do que supúnhamos.
Há já vários anos que venho tentando vender o meu peixe afirmando, sempre que posso, que estou convencido de que muitas espécies que consideramos ameaçadas por terem populações pequenas, de baixa densidade e descontínuas estão na realidade a reflectir a raridade e descontinuidade natural dos habitats de que dependem, tendo pois desenvolvido mecanismos de adaptação para prevalecer nessas circunstâncias. E para estas espécies só a informação da dinâmica populacional pode ser critério de atribuição do estatuto de ameaça e não a caracterização da população existente, naturalmente rara, esparsa, descontínua e de distribuição limitada.
Ora as fissuras (tal como as cavidades) tenderão a ser relativamente raras e descontínuas na natureza (que tem horror ao vazio) e por isso constituirão um factor limitante do crescimento das populações fissurículas muito mais relevante que qualquer outro e logo que, como aconteceu em Tróia, disponibilizamos fissuras em quantidade e qualidade, criamos as condições para ter uma notável população.
O que significa que as populações “naturais” têm uma grande capacidade de expansão, no caso de encontrarem as condições de abrigo para isso, o que convenhamos que é um sintoma de vitalidade e não de ameaça.
E se assim for, o corolário do que afirmei é o de que todas as espécies que têm vindo a colonizar novos abrigos (considerando novos, todos os que artificialmente foram criados nos últimos cinquenta anos, como a grande maioria das minas) dificilmente poderão ser consideradas ameaçadas e o essencial da política de conservação que as tem como objecto deveria concentrar-se sobretudo na gestão da disponibilidade de abrigo.
Claro que nalgumas circunstâncias todos estaremos de acordo que outros factores serão mais relevantes que a disponibilidade de abrigo, como será o caso do Maciço Calcáreo Estremenho onde há uma enorme oferta de abrigo e se dever, por isso, trabalhar a hipótese da capacidade de suporte do território para as espécies cavernícolas presentes estar limitada por outros factores. Mas convenhamos que essas são situações particulares, já que se todo o território fosse como o Maciço Calcáreo Estremenho ninguém falaria, em termos gerais, de elevados graus de ameaça dos morcegos cavernícolas mas sim de espécies concretas que poderão estar fora desta lógica e sobre as quais, provavelmente, teremos de desenvolver estratégias específicas de conservação.
Ora o que gostaria não era que me dissessem, mais uma vez, que eu tenho umas ideias estranhas sobre conservação, o que eu dou de barato, mas onde é que o meu raciocínio está errado ou onde é que os dados existentes o contrariam.
E é por isso que vos escrevo, meus caros colegas biólogos de conservação, sempre com “a angústia do guarda redes antes do penalty”, que vos dificulta a visão de uma natureza em profunda (e arriscada) mutação, mas cheia de oportunidades de possibilidades para sermos nós, às vezes, a marcar o penalty.
Após várias horas de concentração no espaço confinado do habitáculo de um carro, como aliás já tinha acontecido com o povo do Lobo noutra viagem a Montemuro (“a mais desconhecida serra de Portugal” dizia o Amorim Girão), a quantidade de informação trocada é incomparavelmente maior (mas mais imprecisa) que em meses de trabalho conjunto no ICN. E como eu funciono como a polícia americana (tudo o que me disserem sobre conservação pode ser usado contra as vossas ideias de conservação), retive um aspecto que, se percebi bem, me parece relevante do ponto de vista da conservação dos morcegos:
com frequência quando, por razões fortuitas, aparecem abrigos artificiais eles são colonizados por morcegos. É caso da torre de Tróia, é o caso do buraco na barragem Alqueva, é o caso das minas abandonadas, das casas abandonadas, etc. (ou as sondagens geológcas do Sabor, acrescento eu hoje)
Ora do meu ponto de vista, tendo o cuidado de saber que este processo não será, com certeza, extensível a todas as espécies, este aspecto poderia ter uma papel bem mais relevante numa estratégia activa de conservação dos morcegos deixando de ser encarado apenas no quadro das medidas compensatórias para a destruição de abrigos conhecidos, mas como uma linha de acção e pensamento consistente e consciente de diminuição dos riscos de destruição dos abrigos actualmente existentes, sobretudo os considerados mais importantes e críticos.
Na realidade é possível que alguns dos abrigos mais importantes o sejam não só porque têm boas condições, mas também por falta de alternativas para os bichos.
Isto é válido para as espécies cavernículas mas também para as fissurículas. Admito (começando por admitir que não percebo nada da biologia das espécies o que significa que estou a meter a foice em seara alheia) que o exemplo de Tróia seja a demonstração de que as espécies fissurículas (consideradas de maneira geral raras e com populações mais ou menos descontínuas) estão muito menos ameaçadas do que supúnhamos.
Há já vários anos que venho tentando vender o meu peixe afirmando, sempre que posso, que estou convencido de que muitas espécies que consideramos ameaçadas por terem populações pequenas, de baixa densidade e descontínuas estão na realidade a reflectir a raridade e descontinuidade natural dos habitats de que dependem, tendo pois desenvolvido mecanismos de adaptação para prevalecer nessas circunstâncias. E para estas espécies só a informação da dinâmica populacional pode ser critério de atribuição do estatuto de ameaça e não a caracterização da população existente, naturalmente rara, esparsa, descontínua e de distribuição limitada.
Ora as fissuras (tal como as cavidades) tenderão a ser relativamente raras e descontínuas na natureza (que tem horror ao vazio) e por isso constituirão um factor limitante do crescimento das populações fissurículas muito mais relevante que qualquer outro e logo que, como aconteceu em Tróia, disponibilizamos fissuras em quantidade e qualidade, criamos as condições para ter uma notável população.
O que significa que as populações “naturais” têm uma grande capacidade de expansão, no caso de encontrarem as condições de abrigo para isso, o que convenhamos que é um sintoma de vitalidade e não de ameaça.
E se assim for, o corolário do que afirmei é o de que todas as espécies que têm vindo a colonizar novos abrigos (considerando novos, todos os que artificialmente foram criados nos últimos cinquenta anos, como a grande maioria das minas) dificilmente poderão ser consideradas ameaçadas e o essencial da política de conservação que as tem como objecto deveria concentrar-se sobretudo na gestão da disponibilidade de abrigo.
Claro que nalgumas circunstâncias todos estaremos de acordo que outros factores serão mais relevantes que a disponibilidade de abrigo, como será o caso do Maciço Calcáreo Estremenho onde há uma enorme oferta de abrigo e se dever, por isso, trabalhar a hipótese da capacidade de suporte do território para as espécies cavernícolas presentes estar limitada por outros factores. Mas convenhamos que essas são situações particulares, já que se todo o território fosse como o Maciço Calcáreo Estremenho ninguém falaria, em termos gerais, de elevados graus de ameaça dos morcegos cavernícolas mas sim de espécies concretas que poderão estar fora desta lógica e sobre as quais, provavelmente, teremos de desenvolver estratégias específicas de conservação.
Ora o que gostaria não era que me dissessem, mais uma vez, que eu tenho umas ideias estranhas sobre conservação, o que eu dou de barato, mas onde é que o meu raciocínio está errado ou onde é que os dados existentes o contrariam.
E é por isso que vos escrevo, meus caros colegas biólogos de conservação, sempre com “a angústia do guarda redes antes do penalty”, que vos dificulta a visão de uma natureza em profunda (e arriscada) mutação, mas cheia de oportunidades de possibilidades para sermos nós, às vezes, a marcar o penalty.
henrique pereira dos santos
2 comentários:
Aqui está um bom exemplo, transcrevo o abstract de um artigo de dois amigos meus (Jan Boshamer e Jan Piet Bekker):
“Abstract: Between 1988 and 2007, 34 reports of bats were received from offshore platforms in the Dutch sector of the North Sea. These reports involved Nathusius’ pipistrelle ( Pipistrellus nathusii) (26x), noctule (Nyctalus noctula) (2x), northern bat ( Eptesicus nilssonii) (2x), serotine ( Eptesicus serotinus) (1x) and parti-coloured bat (Vespertilio murinus) (3x). Their distribution over the 65 offshore platforms in the Dutch sector of the North Sea is described. A population of Nathusius’ pipistrelle on the mainland, monitored in bat boxes located in the north of North Holland Province was used to compare sex ratio, age composition, body condition and biometrics with the bats found on offshore platforms. Since the first report of a bat on a platform in the Dutch sector of the North Sea in 1988, there has been an increase in the number of bats reported from offshore platforms over five yearly periods, with the maximum number (15) occurring between 1998-2002. The records of Nathusius’ pipistrelle and most other bat species (with the exception of the noctule) on offshore platforms show no demonstrable bias towards platforms closer to the shore (most were recorded as distances of 60-80 km from the shore). Eighteen adult Nathusius’ pipistrelles have been recorded on offshore platforms in the Dutch sector of the North Sea, and 6 in their first calendar year. Half of the males (50%) were juveniles, while 87% of the females were adults. The sex ratio of Nathusius’ pipistrelles was biased to males during the autumn migration, whereas in spring most bats were females. No significant correlation was found in the numbers of reported Nathusius’ pipistrelles in autumn or spring and wind speed or prevailing wind directions, suggesting the bats were not blown off course. The body mass of both male and female Nathusius’ pipistrelles from offshore platforms was on average lower than for those from bat boxes in mainland North Holland.”
Será que os aerogeradores existentes no alto das nossas Serra (em locais onde não existam outros abrigos), poderão ser potencialmente utilizados como abrigos (principalmente temporários) no decurso das suas migrações/deslocações inter-sazonais?
Paulo Barros
Caro Henrique,
Recentemente tive uma conversa muito interessante com o Jorge Palmeirim (ele não sofre do teu handicap de ceifar em ceara alheia) sobre morcegos e gestão florestal, na qual ele afirmou que é muito provável que nunca tenha havido tantos morcegos que hoje em dia, devido ao aumento significativo de locais de abrigo para estas espécies quando comparado com a época pré-industrial (para não recuar ainda mais).
Ao mesmo tempo transmitiu a ideia que, com rigor, ainda se sabe tão pouco da ecologia dos morcegos, que alguma prudência seja adequada quando falamos sobre eles e o seu estatuto.
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