quarta-feira, agosto 19, 2009

A modernidade útil



Farto da barragem de propaganda acerca do papel liderante de Portugal nalguns fetiches politicamente correctos (magalhães, pilhas de hidrogénio, carros eléctricos, energias renováveis e coisas que tal) achei por bem explicar que o que é novo não é necessariamente moderno, e o que é velho não tem necessariamente pouca modernidade.
A razão base para dedicar meia dúzia de minutos ao assunto, para além de estar farto desta barragem de propaganda, é que um dos campos onde é mais útil tornar o velho moderno é na gestão do mundo rural, matéria que me interessa particularmente.
O main stream da nossa investigação agronómica pretende substituir coisas velhas consideradas obsoletas por coisas novas. Isso tem alguma utilidade.
Mas útil, mesmo útil, era mesmo dedicar algum tempo a olhar para sistemas longamente provados ao longo dos tempos e resolver-lhes os estrangulamentos que os tornam menos competitivos.
Ou seja, olhar para os problemas concretos das pessoas e não para os problemas abstractos dos investigadores.
Nada me move contra a abstracção e a investigação pura, mas convenhamos que convém ter algum equilíbrio entre o que seria útil hoje e o que abre caminhos que amanhã serão úteis.
Um dos problemas centrais do mundo rural é a ausência de gestão de largas áreas.
É um problema com potencialidades: Miguel Araújo não se cansa de defender a ausência de gestão de largas partes do território como condição para a reconstituição de sistemas naturais complexos.
Esta não gestão, embora contendo a potencialidade a que se refere o Miguel, tem problemas sociais complicados de transição entre o que hoje existe e o que amanhã se poderá obter com a não gestão.
O que é mais complicado é gerir a acumulação de combustível associada a esta não gestão.
Existem várias opções possíveis para lidar com isto.
A opção dos diferentes governos tem sido a de reforçar o sistema de combate a incêndios de forma. É uma opção cara e razoavelmente insensata no médio longo prazo, se não estiver associada a uma política de gestão de combustível, já que quanto mais eficaz for a sua aplicação, maior é o risco estrutural de incêndio associado a cada ano seguinte.
Dir-se-á que a recomposição das matas autócotones criará condições para conter os fogos ou, pelo menos, suavizá-los. Este argumento é razoavelmente verdadeiro (é o que fundamenta a não gestão) simplesmente até que essa recomposição se tenha dado o risco de incêndio severo é muito elevado. E como essa recomposição é relativamente lenta, teremos de conviver muito tempo com os riscos da transição.
A evidência destes riscos levou a que Portugal, onde sempre foi usado o fogo pelos pastores, tivesse optado por reforçar a componente de fogo controlado. O mais curioso é que não partimos do conhecimento empírico que tinham os nossos pastores mas importámos (e ainda bem) Komarec para nos vir ensinar a fazer fogo controlado. Pela mão de Moreira da Silva, Komarec veio ajudar-nos a dar os primeiros passos, as pessoas que trabalharam com alguma proximidade de Moreira da Silva (Francisco Rego, João Bento, por exemplo) foram-se instalando na academia e quer no ISA (com Francisco Rego), quer na UTAD (com João Bento mas sobretudo com o grupo de Hermínio Botelho e Paulo Fernandes) criou-se um corpo de informação que estava maduro quando os desastres de 2003 e 2005 vieram demonstrar a falência da cegueira da gestão florestal do Estado e de combate puro e duro aos fogos florestais.
Adoptámos por isso mais uma técnica de gestão de combustível com base no fogo.
Entretanto persiste a ideia peregrina de que o problema se resolve cortando matos, primeiro vieram com as obrigações dos proprietários (como se fosse possível obrigar alguém a falir voluntariamente), depois vieram com a fantasia das centrais de biomassa e agora andam com a infantilidade dos sapadores como cortadores de matos. Uma ideia cara e pueril que não se percebe como se transforma em política do Estado porque basta fazer meia dúzia de contas de mercearia para se demonstrar idiota (é ver quantos hectares era preciso limpar anualmente e ver quanto custa o hectare para perceber. Algures já fiz umas contas dessas mas falta-me agora o tempo para as procurar ou refazer).
A única forma de garantir cortes de matos de dimensão apreciável é apoiando a agricultura que os usa para garantir a fertilidade dos solos (o que tradicionalmente implica uma agricultura de complementaridade com o gado), mas que eu saiba não existe uma única medida desenhada, nem uma única linha de investigação que tenha como objectivo tornar isso atraente para os agricultores.
Sobra pois o atávico pastoreio para gerir combustível em largas áreas. Ou seja uma área que os propangandistas do país moderno consideram uma reminiscência medieval ou, pior, um símbolo do país pobrezinho mas honrado de Salazar. Consequentemente, uma actividade a abater e substituir por amanhãs que cantam.
A menos que alguém se lembre de como o atávico fogo teve de estagiar nos Estados Unidos para vir de lá uma técnica moderna e sofisticada.
Por mim, aqui fica o meu contributo para alguém pensar nessa hipótese: o resumo de um artigo na revista Computers and Electronics in Agriculture:
"Virtual fencing is a method of controlling animals without ground-based fencing. Control occurs by altering an animal’s behaviour through one or more sensory cues administered to the animal after it has attempted to penetrate an electronically-generated boundary. This boundary can be of any geometrical shape, and though unseen by the eye, is detected by a computer system worn by the animal. The most recent autonomous programmable systems use radio frequency (RF) signals, emanating from global positioning system (GPS) satellites to generate boundaries. Algorithms within a geographic information system (GIS) within the device’s computer use the GPS and other data to determine where on the animal a cue, or cues, should be applied and for how long. The first commercial virtual fencing system was patented in 1973 for controlling domestic dogs. Virtual fencing was used for the first time to control livestock in 1987. Since then proof-of-concept research using commercial, as well as custom designed systems have demonstrated that virtual fencing can successfully hold as well as move livestock over the landscape. Commercial virtual livestock control systems do not yet exist but research continues towards this goal. Pending research needs relating to this method of animal control are discussed in light of currently available technologies."
Ou a referência mais antiga, onde o Fundo Florestal poderia gastar uns cobres. Em vez de kits de primeira intervenção no combate, para juntas de freguesia, que ficam a apodrecer nos armazéns, que tal uns kits para os rebanhos poderem ser contidos em espaços definidos com infinitamente menos trabalho e risco, fazendo dez vezes mais que o trabalho de uma equipa de sapadores a um décimo do custo?
E sempre dava para falar de modernidade e de vanguarda a propósito de coisas realmente úteis.
henrique pereira dos santos

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