Sofia Loureiro dos Santos fez um post no simplex sobre o mundo rural e lembrei-me de lhe responder com um exemplo que era demasiado extenso para a caixa de comentários do dito blog.
Fiz por isso este post
Aqui fica o exemplo da forma como o Governo tem gerido o mundo rural.
No fim do Governo anterior, por sugestão de Moreira da Silva, então Secretário de Estado, o ICNB lançou um programa chamado "Escola na Natureza".
O objectivo era fazer com que todos os alunos do oitavo ano (+/- 130 000) passassem pelo menos três dias e duas noites em áreas protegidas em actividades pedagógicas com as suas escolas e professores.
Durante anos o programa vegetou na típica boa vontade portuguesa: era só uma noite porque era experimental, o ICNB pagava o alojamento e os monitores, as câmaras os transportes e as escolas (ou as famílias) levavam o que comer. O Ministério da Educação batia palmas.
Com isto conseguia-se que dos 130 000 meninos do 8º ano, entre 1000 a 2000 participassem anualmente (aliás em condições precárias).
O programa foi redesenhado (declaração de interesses: fui responsável pelo novo desenho): as escolas (ou as famílias) tinham de suportar integralmente os custos, as actividades eram feitos pelos professores, o tempo passava para duas noites, o ICNB geria o programa, negociava preços especiais para o programa (chegava aos cinco euros por noite e menos, por exemplo). Os alunos do apoio social não pagavam.
O ministério da educação opôs-se porque a existência de um pagamento era discriminatória (embora o programa anterior discriminasse 129 000 dos 130 000 alunos e os alunos do apoio social não pagassem no novo desenho do programa).
O ICNB lançou as bases do programa e instituições como a movijovem, que gere as pousadas da juventude e são do próprio Estado, nunca responderam aos pedidos insistentes para que fizessem preços especiais para um programa que lhes ia aumentar a ocupação das pousadas mais dificeis (as que estão fora das cidades) em alturas mortas (tempo lectivo e durante a semana).
O orçamento (que foi feito com valores por cima do que era possível obter em concreto) de movimentar os 130 000 meninos andava pelos 10 milhões de euros anuais, se não estou em erro.
Serão 260 000 dormidas, cerca de meio milhão de refeições em áreas maioritariamente rurais e de interior.
Facilmente as famílias financiariam cerca de cinco milhões anuais (40 euros por cabeça para transporte, alimentação e alojamento, três dias e duas noites).
Noutros países (de onde a ideia foi importada) este tipo de programas fazem parte do curriculum escolar e são obrigatórios, pagos pelas as escolas (complementarmente as famílias são chamadas a suportar parte dos custos)
Para além dos efeitos estritamente pedagógicos, para além dos efeitos de educação ambiental associados e de ligação ao património natural de Portugal, este programa era sem dúvida um poderoso instrumento de deslocar dinheiro do litoral (onde estão os alunos) para o interior (onde está a maioria das áreas protegidas).
O programa ajuda a viabilizar pequenos (ou médios ou grandes) projectos de alojamento, restauração e prestação de serviços. Para além disso permite estruturar a oferta de produtos locais (batatas e outras coisas que o sector desimportador produz) para dar resposta à procura gerada.
Não tenho dúvidas da enorme simpatia que o programa terá por parte de Humberto Rosa.
Mas tenho a sensação de que com a minha saída do ICNB (com o meu mau feitio e teimosia), o projecto andará a vegetar mais uns anos sem grandes efeitos na gestão do mundo rural.
Espero que me engane mas entretanto investe-se em coisas mais sexy, como banda larga, magalhães, nas estradas (só o erro de Jorge Coelho adjudicar estradas sem estudos de impacte ambiental tem um custo, numa das auto-estradas, que daria para pagar dez anos o projecto, sem qualquer contribuição das famílias), e noutras coisas que tal, à espera que as infra-estruturas criem riqueza.
O melhor é esperar sentado para evitar as varizes.
henrique pereira dos santos
4 comentários:
Henrique Pereira dos Santos
Compreendo a sua frustração perante o vegetar de um projecto que tem objectivos nobres e é exequível. Mas não é por se investir em banda larga e em Magalhães que esse programas não são feitos. Mais uma vez penso que os programas devem ser vários e complementares.
Cara Sofia,
Não se trata de qualquer frustração pessoal (o que tenho mais é projectos consistentes acabados ou deturpados por incompetência ou preguiça dos decisores, mas também tenho muitos outros que correram bem) mas sim de uma opção de fundo sobre o mundo rural.
O Estado (nem estou a dizer o Governo) desistiu de pensar no mundo rural e considera uma inevitabilidade o seu despovoamento.
O Estado considera as pessoas do mundo rural incapazes e considera as actividades do mundo rural como atavismos que não cabem no west coast of europe.
O Estado acha chiquíssimo comer carpaccio de presunto com marmelos caramelizados, mel e queijo mas acha medieval limpar o esterco do curral do porco, pouco avançado colher marmelos, um pouco estranho alguém que anda às abelhas e próprio de atrasados mentais guardar gado no monte.
É muito mais sexy inaugurar a quase inútil "auto-estrada da justiça" para Bragança, levar banda larga a todos os cantos e esquinas, investir em carros eléctricos que ainda virão e por aí fora.
Este é o problema central.
No dia em que o mundo rural for olhado como são os bairros de lata, isto é, como um espaço de pessoas e para pessoas que deverá ser tratado pela sociedade com uma dignidade mínima, então a banda larga, a acessibilidade (que está longe de ser resolvida com auto-estradas) e essas coisas todas serão bastante úteis como instrumentos de apoio ao desenvolvimento, deixando de ser esmolas para os coitadinhos que lá se deixaram ficar onde não lembra o diabo viver.
henrique pereira dos santos
Henrique Pereira dos Santos
A opção pelo mundo rural não é a da enorme maioria da população. Concordo que há que o preservar mas, na verdade, a percentagem de população que opta por essa vida é cada vez menor. O problema da terciarização é esse.
Claro que se olha para o mundo rural de uma forma sobranceira, mas em países que não têm essa realidade o sector rural é muito diminuto.
Cara Sofia,
Independentemente de voltar a chamar a atenção para a diferença entre população activa a tempo inteiro na agricultura e população do mundo rural, em qualquer dos casos são minoritários.
Não percebo o que isso implica a não ser que o seu diminuto peso eleitoral leve à desvalorização das suas preocupações.
Se o seu diminuto peso eleitoral fosse compensado com o peso mediático, como acontece com outras minorias, talvez não houvesse essa desvalorização.
Mas a questão de fundo é saber se os urbanos maioritários querem ou não ter o hinterland das suas cidades geridos.
Se o querem, pois terão de pagar essa gestão (antigamente pagavam no preço dos alimentos, hoje, em muitas regiões, terão de pagar de outra forma).
Se não querem, terão de saber que isso significa perder valor como nação, perder valor com os fogos, prder valor na actividade turística e por aí fora.
É só essa a questão.
henrique pereira dos santos
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