Antes de começar o episódio de vento Leste que a partir de amanhã ou depois submergirá o espaço mediático em labaredas (ainda que o vento se preveja fraco), lembrei-me de fazer mais um post sobre o outro mundo rural, o do não abandono, o que pode resistir ao fogo, como resistiu a quinta do Thomas quando pelas redondezas tudo era fogo.
Ao pensar no assunto apercebi-me de que a discussão sobre a competitividade do mundo rural foi durante muitos anos uma discussão sobre produtividade, ou mesmo sobre produção por hectare, ou produção sobre hora de trabalho, mas raramente uma discussão sobre valor criado.
Lentamente em algumas fileiras, o vinho, o azeite, para além da produtividade começou a discutir-se a criação de valor.
Quando José Roquete resolveu começar a vindimar as uvas brancas à noite para evitar grandes diferenças de temperaturas nas uvas até a adega do Esporão, não estava com certeza preocupado com a produtividade da operação mas com a diferença de valor que isso introduzia no seu vinho branco e que o mercado estava disposto a remunerar.
A mesma lógica têm algumas agro-industrias, como a dos laticínios, quando diversificam permanentemente os gostos dos yogurtes.
E a mesma lógica foi a da Renova ao criar o rolo de papel higiénico preto: uma pequena empresaa do sector (não à escala de Portugal, mas à escala global) tornou-se mundialmente conhecida, e acarinhada por muita gente, por ter a ousadia de olhar para o papel higiénico sem os limites que uniformizavam a produção mundial em torno do branco ou das cores claras e suaves. Uma das principais razões para a Renova ter sido capaz de fazer isto foi a consciência da sua pequenez no sector e a consciência de que nunca poderia competir com os gigantes do sector pelo preço, mas apenas pela diferenciação. Mesmo num produto que aparentemente não permitia grande diferenciação, como o papel higiénico.
É a mesma lógica que leva a Delta Cafés a fazer lotes de café a partir de cafés de mais de cinquenta proveniências, havendo alguns lotes com perto de dez cafés diferentes, ao contrário da meia dúzia de proveniências usadas pelos gigantes deste mercado.
Infelizmente as nossas políticas para o mundo rural foram sempre desenhadas por produtivistas, como é natural que sejam os homens da produção.
As nossas escolas de agricultura ensinam sobretudo a produzir, não ensinam a criar valor.
Por isso todos os nossos sistemas tradicionais de pequena produção diversificada, com forte integração de retalhos de terra agrícola e montes a perder de vistas foram considerados atavismos de que a modernização do país, e especificamente a modernização da produção agrícola, nos haveria de libertar, transformando-os em florestas.
Porque esses sistemas são inevitavelmente sistemas de baixa produção. Ironicamente, em muitos casos, mesmo para as florestas.
O mais que se tentou foi encontrar novas produções que substituissem as antigas, que à semelhança do azeite e do vinho fossem à partida reconhecidas no mercado como produtos susceptiveis de diferenciação e remuneração compatível com os elevados custos de produção.
Mas cabras, esterco e coisas que tal é que nunca seriam competitivos.
Ora o marketing, como dizia um dos directores de comunicação de uma das empresas que citei, é sobretudo informação e bom senso.
O que sabemos hoje é que o abandono dos nossos sistemas agrícolas tradicionais tem um custo elevadíssimo que se consome na paranoia dos fogos (e outros sintomas de falta de controlo social sobre o território).
É por isso de bom senso confrontar os riscos de abandono com os riscos de olhar para cada produtor como um criador de valor e não apenas um produtor de alimentos ou fibras.Talvez fosse tempo de olhar para esses sistemas sem ser pela sua produtividade, que será sempre baixa face aos territórios com condições naturais de maior produção, mas pelo lado da criação de valor.
Se a única produção possível num determinado sítio é o mato, pois olhemos para o mato e para a forma de lhe acrescentar valor, em vez de teimarmos em querer produzir trigo porque temos um déficit de produção alimentar.
Se a partir desse mato formos eficientes na criação de valor, se conseguirmos valorizar no mercado o que ele tem de único (por si, ou porque o pintámos de preto), é bem possível que no fim do dia tenhamos ganho o suficiente para ir comprar a outro lado o trigo que nos faz falta.
E criar valor não é necessariamente produzir mais, é vender mais caro porque se incorpora mais valor.
Seja porque se integra a produção para vender produtos mais diferenciados (é difícil aumentar o valor das amoras, mas é possível criar uma compota diferenciada), seja porque se incorpora em marcas (e marcas são associações de ideias) outros valores mais intangiveis que a produção de bens (por exemplo, o azeite Faia Brava incorpora a ideia de que a compra de cada garrafa representa a compra de 50 metros quadrados de terreno para a conservação da biodiversidade).
O que implica ganhar competências em três matérias que as nossas escolas de agricultura e os nossos cursos de formação para agricultores de maneira geral tratam muito mal: 1) comunicação, 2) comunicação, 3) comunicação.
henrique pereira dos santos
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