terça-feira, setembro 08, 2009

Os poderes públicos do mundo rural


A propósito dos posts sobre Thomas e Tomás, que podem ser lidos aqui e aqui, chegaram-me ao conhecimento alguns comentários do que eu poderia chamar "um representante das forças vivas do Concelho de Góis".
Não interessa o nome, porque acredito que o que vale a pena é discutir as ideias subjacentes a esses comentários e que são bem o espelho de alguns poderes públicos actuantes sobre o mundo rural.
Não quero generalizar e portanto deixo explícito que há muita diversidade nestes poderes públicos, há gente que pensa de maneira diferente, há gente que age de maneira diferente e há gente que se dispõe a ouvir os outros e a procurar soluções com os outros.
Mas que estes comentários poderiam ter origem em muitos e muitos dos que hoje são o poder público no mundo rural, disso não tenho dúvidas.
E por isso vale a pena olhar com atenção para os argumentos de quem se sentiu injustiçado com os comentários que fiz sobre o Thomas e o Tomás.
"Quanto ao autor do post e ... , não sei se alguma vez vieram a Góis…"
O primeiro comentário corresponde ao velho "para lá do Marão, mandam os que lá estão". Só que não se trata de tomar decisões mas de discutir opções. Com certeza as decisões ficam para quem está e tem legitimidade democrática. Mas pretender que mais ninguém no mundo pode discutir o nosso mundo é típico de uma certa estreiteza de vistas que se recusa a admitir que o nosso mundo ganha, e não perde, na relação com os outros mundos. Mas adiante, que voltaremos a encontrar sinais desta pequenez mais à frente.
"É verdade que houve uma grande trovoada que danificou parte dos terrenos do Thomas. ... Não se fez, naturalmente o trabalho ideal, mas fez-se o possível."
Cá está a tal ausência de ética de responsabilidade transversal à sociedade portuguesa. A culpa é da trovoada e fez-se o que foi possível, ou, para usar outra formulação, o que nos deixaram fazer. A culpa não é minha, é da trovoada e das limitações que temos. Discutir as razões pelas quais a trovoada teve este efeito, nomeadamente a responsabilidade dos poderes públicos no desleixo, durante anos, patenteado numa situação de risco acerca da drenagem de uma estrada? Discutir se no quadro dessa responsabilidade devem os poderes públicos fazer o que é possível ou o que é devido aos cidadãos pelos prejuízos causados pela incúria, desleixo ou incompetência? Isso é muito complicado.
"A escola do Colmeal que realmente fechou, tinha 5 (cinco) alunos, uma professora estrangeira e, realmente fechou. ... Mas, questiono: é sustentável, pedagogicamente aceitável, uma escola com 5 alunos a frequentar anos diferentes, todos estrangeiros, com uma professora estrangeira? Será esta integração essencial da comunidade estrangeira que pretendemos e desejamos?"
O que está aqui a fazer o qualificativo estrangeiro? Qual é o problema da professora estrangeira? Por que é que são estrangeiros os miúdos que filhos de estrangeiros vivem, e muitas vezes nasceram, em Portugal? Não se pense que este é um detalhe, bem pelo contrário, esta é mesmo uma questão essencial: para estes poderes públicos os estrangeiros são cidadãos de segunda. Os mesmos poderes públicos que se queixam da desertificação, que se queixam do abandono, que muitas vezes criam programas mirabolantes de fixação de pessoas e empregos nas suas terras, são os mesmos autarcas que tratam como filhos de um Deus menor os que voluntariamente, sem esforço para os poderes públicos, sem custos para os nossos impostos, resolvem adoptar como sua a terra que estes poderes públicos governam. Cabeças pequeninas que pensam pequenino têm tendência para se concentrar em coisas megalómanas e esquecer as pequenas e eficientes soluções que estão à mão de semear.
Olhemos então para as soluções alternativas, que nos permitem dispensar os alunos estrangeiros de professoras estrangeiras.
"Será que esses comentaristas sabem que existe uma residência de estudantes em Góis, com condições excepcionais para acolher as crianças dos pontos mais distantes do nosso Concelho?"
Finalmente um erro factual dos meus posts anteriores. Tinha apenas referido duas soluções alternativas para as crianças em idade de escola primária: perder três horas de carro a levá-las e trazê-las ou enfiá-las numa camioneta às seis e meia da manhã e recolhê-las às oito da noite (note-se que as camionetas não passam à porta de casa, passam na estrada alcatroada mais próxima, a uma boa meia-hora a pé, mas deixemos esse detalhe). Afinal existe uma terceira solução: a institucionalização voluntária de crianças em idade de escola primária, internando-as numa residência na sede do Concelho durante toda a semana (onde suponho que alunos de idades muito diferenciadas estarão em condições mais ou menos semelhantes). É uma solução mais espartana que a de Esparta, cujos filhos eram entregues ao Estado para os educar a partir dos sete anos de idade. Em Góis, e acredito que em muitos mais sítios, vai-se mais longe e começa-se logo aos seis anos de idade. O resultado pedagógico deve ser incomparavelmente melhor que o obtido por uma escola de cinco estrangeiros com uma professora estrangeira. Os poderes públicos têm razão: eu conheço pouco aquela realidade local. Nunca me tinha passado pela cabeça que a loucura normal dos poderes públicos tivesse chegado tão longe no absurdo das soluções de gestão do mundo rural.
"Porque se omite o facto da CM ter ao seu serviço 15 (quinze) carrinhas carrinha certificadas para transportar (de qualquer local) as crianças até à escola?"
Omiti este aspecto porque me pareceu irrelevante para a discussão. Mas mais uma vez errei. Vale mesmo a pena discutir se a melhor solução é mesmo ter quinze carrinhas a drenar para a sede do concelho criancinhas ou desenhar uma rede de escolas que permita racionalizar trajectos e diminuir tempos de deslocação. Por que razão devem todas as escolas fechar e ser tudo concentrado na sede de concelho? Por que razão não é possível ter mais duas, três, quatro escolas espalhadas no concelho? Não vale a pena esta discussão? Ou simplesmente se desistiu do mundo rural e tudo se concentra em sedes de concelho artificialmente empoladas com estes tipo de lógica, que a prazo irá também matar as sedes de Concelho?
"Será que os técnicos ... querem combater os incêndios apenas com rebanho de cabras? Talvez com um Kit de combate a incêndios às costas (perdoe-me a ironia…)?"
O que esta frase representa de completa incompreensão do que está em causa na gestão do fogo é arrepiante. A ideia de que a gestão de combustíveis nem sequer entra na equação dos fogos que está na cabeça de responsáveis directos pela gestão do fogo em concelhos especialmente frágeis face ao fogo ajuda bem a explicar o desastre que é a nossa política de gestão de fogos.
Não admira por isso a frase que se segue:
"Porquê brincar com a equipa de sapadores que terá limpo o Adro da Capela e não Igreja? Por acaso diz-se quais eram as condições meteorológicas? Por acaso sabe-se que as equipas têm que ser sustentáveis e que, para isso, têm de prestar serviços? Por acaso sabe-se que este Adro está incluído numa das ZIF´s constituídas em Góis?"
Penso que fica tudo dito sobre a forma como estamos a gastar os recursos do Fundo Florestal Permanente e do resto do Estado. Quem não compreende que os sapadores florestais não são bombeiros, embora possam fazer combate quando é preciso, e ao mesmo tempo é responsável numa autarquia como Góis, é natural que ache as cabras inúteis na gestão do fogo e a limpeza de adros de capelas por sapadores uma coisa normal. O que não acho normal é que todos nós achemos isto normal e sejamos coniventes pelo silêncio.
Não, não é o Estado central que não presta, não, não são poderes inatingíveis que nos tramam, somos nós, nós os que sabemos que as coisas são assim e nos calamos.
São os nossos jornalistas que não investigam, são as nossas ONGs que só aparecem para dizer inanidades quando arde uma qualquer área protegida, são as nossas associações sócio-profissionais que estão mais preocupadas em assegurar os empregos que em discutir opções de política, são as nossas entidades gestoras de ZIFs, profundamente infiltradas por estes poderes fácticos, são as nossas empresas mais preocupadas com os interesses clientelares que com os clientes.
Somos nós, sim, fracos com um Estado excessivamente forte e com os muitos pequenos poderes com que nos cruzamos, mas muito fortes com os pequenos Thomas e Tomás que caem na asneira de quererem simplesmente que os deixem fazer as suas opções de vida de forma independente e em paz e sossego.
henrique pereira dos santos

2 comentários:

Henk Feith disse...

Para quem conhece um pouco da folclore chamado poder local, não fica surpreendido com este diagnóstico de Henrique (o programa humorístico Telerural peca por defeito).

Henk

Anónimo disse...

Excelente post!

Infelizmente há menos pinhas nos pinhais que "representantes" desses no interior esquecido deste país.