Tenho vindo a seguir com atenção alguma da discussão política que toca as matérias sobre as quais se debruçam as pessoas que escrevem neste blog. É fácil porque quase não há discussão sobre matérias ambientais, excepção feita à questão das renováveis.
Neste post e neste, por exemplo, do blog de apoio ao actual Governo, aparecem estribilhos frequentes sobre as renováveis que não decorrem da discussão da política energética mas sim da pura propaganda.
Independentemente das implicações partidárias de curto prazo, há um aspecto que me interessa discutir aqui: as implicações para o futuro de uma política energética de base ambiental.
Ao contrário do que poderia parecer, esta defesa cega da produção de energia a partir de fontes renováveis, omitindo os seus custos e deturpando as razões pelas quais faz sentido ter uma política de produção de energia a partir de fontes renováveis, é muito perigosa para a lógica ambiental da política energética.
E é perigosa porque no seu primarismo fragiliza o fundamento das posições ambientais e pode criar um efeito de boomerang indesejável.
Tentemos explicar com exemplos simples.
Não falando do meu serviço de dívida, um dos maiores agregados das minhas desequilibradas finanças é a conta da mercearia.
Ora eu tenho, a meias com os meus vários irmãos, uns bocaditos de terra que são suficientes para produzir batatas para o ano inteiro, mas estão a duzentos quilómetros do sítio onde vivo. Se eu olhar apenas para as despesas, pode parecer boa ideia ir lá cultivar umas batatas, com o que diminuo as tais despesas da mercearia. E aproveito, ponho uns feijões, umas couves e por aí fora, e reduzo significativamente as despesas de mercearia que hoje tenho.
De acordo com alguns posts sobre renováveis, os tais que dizem que a política de produção a partir de renováveis é um poderoso instrumento de resolução do problema do desenvolvimento do país porque nos liberta das despesas com a compra de petróleo, ao fim de um ano eu estaria mais rico porque tinha reduzido a importante fatia da despesa da mercearia.
Só que, e aqui a porca torce o rabo, é que para eu ir tratar das batatas incorri numa série de outras despesas que antes não tinha. Algumas são custos concretos, como o preço de me deslocar com a frequência necessária à boa produção de batatas, outras são despesas de oportunidade, por exemplo, o tempo que gastei a produzir batatas, que têm um determinado retorno expresso na redução da conta da mercearia, deixei de o poder usar noutras actividades de retorno mais elevado.
Posso portanto ter reduzido as despesas e ter ficado mais pobre porque o esforço de redução dessa despesa tem um custo maior que a própria despesa anterior.
Ilustremos agora com um exemplo mais geral, retirado de um dos ditos posts:
"A aposta nas energias renováveis, com os excelentes resultados acima indicados, concretizou-se nos seguintes vectores principais:
...
e) Biomassa: foram licenciadas 28 centrais."
Deixemos o pequeno detalhe de eu não perceber de que forma licenças, que são decisões administrativas, produzem electricidade e concentremo-nos na hipótese, evidentemente teórica, das ditas centrais serem todas construídas.
A tarifa para a compra de electricidade aplicável às centrais de biomassa é muito interessante. E reduzimos o consumo de petróleo, é verdade. Só que convém não esqeucer que para o resto da economia, isto é, para os consumidores de electricidade, criámos uma despesa adicional, já que tinham a energia a um preço e passaram a tê-la a um preço mais elevado.
Dir-se-á que isso não é um problema assim tão grande, visto que estávamos a comprar ao exterior e passamos a comprar internamente, obtendo um efeito multiplicador na criação de riqueza nacional.
Isto é em parte verdade, mas é tanto mais verdade quanto mais fechada for a economia. Porque se a economia for aberta, isto é, se o que produzimos tiver de concorrer lá fora com os produtos de todo o mundo e concorrer cá dentro com os produtos de todo o mundo, os consumidores irão optar por produtos que, por terem um custo mais baixo, decorrente de um preço da energia mais baixo, são mais baratos. O resultado é que os produtores nacionais, consumidores de energia, ou vão à falência, ou têm de compensar noutros factores de custo, por exemplo o trabalho ou as garantias sociais, o custo mais elevado da energia.
Estes são os tais custos mais fáceis de identificar, por analogia, as minhas deslocações para ir cavar batatas.
Olhemos agora para os custos de oportunidade.
Numa discussão anterior usei o valor de quatro jornas por hectare para o rendimento do trabalho de um homem a cortar mato (admitindo que as centrais de biomassa trabalham com mato, que foi a justificação política para a inflação da tarifa mas que é treta: a central de biomassa de Mortágua tinha cerca de 2% de matos no seu mix de combustíveis. Acontece que na maioria dos combustíveis das centrais de biomassa os custos de oportunidade seriam ainda mais elevados que para os matos que vou discutir de seguida).
A razão pela qual a tarifa tem de ser muito alta é exactamente para compensar os elevados custos de corte e transporte do mato para as centrais.
Imaginemos que em vez de estarmos encadeados com a modernidade de sermos fantásticos a produzir electricidade a partir de fontes renováveis à maluca, somos uns tacanhos matarruanos que apenas queremos cuidar da vidinha e, se possível, enriquecer retrogadamente, em vez de empobrecer com modernidade.
O resto são batatas.
Nessa altura o que nos vai preocupar é o que dá mais rendimento, isto é, o que verdadeiramente cria valor.
Partindo dos mesmos matos, em vez de eu subsidiar a electricidade para pagar os custos de cortar mato, repercutindo a elevação do custo no resto da economia e retirando-lhe competitividade, eu compro umas duzentas cabras para dar um uso alternativo aos ditos matos, tendo o custo de um pastor por duzentas cabras, qualquer coisa como anualmente cortar o mato de 50 hectares, em vez de subsidiar um homem para os mesmos 50 hectares (com as produtividades estou a comparar a produtividade de um super-homem com umas cabras manhosas, mas adiante).
Comparemos agora o resultado final da conta de exploração:
Com a central de biomassa, eu passei para a economia custos acrescidos, diminuindo competitividade para obter alguma poupança na compra de petróleo ao exterior.
Com o rebanho, eu mantive a importação de petróleo e em troca tenho cabritos competitivos e queijos competitivos, com o lucro dos quais pago o petróleo que importava e ainda fico com uns trocados para investir na investigação de formas de produção de energia a partir de fontes renováveis e, simultaneamente, competitivas.
Atenção, o preço do petróleo pode disparar e alterar todos estes pressupostos.
É verdade, resta saber qual é o ponto de equilíbrio entre investir agora em tecnologias em rápida mutação (e aumento constante de eficiência), face à alternativa de investir depois em tecnologias já mais eficientes com o dinheiro que entretanto ganhei a vender queijos e cabritos.
A discussão é tudo menos simples, porque é uma discussão sobre o futuro, ou seja, sobre a mais desconhecida das realidades.
Mas exactamente por ser tudo menos simples é que se deveria evitar que fosse simplex.
henrique pereira dos santos
5 comentários:
Obrigado Henrique por estes comentários. Em particular referente ao blog Simplex, onte tinha posto um comentário, que foi censurado!
O problema é que Portugal não produziu em 2008 43.3% de electricidade renovável, mas sim 27.8%. A nível europeu inventaram uma fórmula que nos favorece, e estes políticos cretinos tocaram de aproveitá-la... São todos iguais! Já em 2004 havia supostamente subido de 31% em 2003 para 34% em 2004, quando na verdade tinha havido uma descida de 35.4% para 22.5%!
Alguns dos dados que avancei aqui foram referidos pelo Expresso no início de Agosto (vide http://ecotretas.blogspot.com/2009/08/e-limpa-e-renovavel-mas-custa-milhoes.html); todavia, ainda não consegui o seu boletim estatístico para o confirmar efectivamente. Fazendo contas à mão com os resultados da REN (http://www.centrodeinformacao.ren.pt/PT/InformacaoTecnica/DadosTecnicos/PORT_DADOS%20Tecn_elect_2008.pdf) ainda dá valores inferiores, mas até acredito que deve haver mais uns factores de correcção!!!
Ecotretas
Henrique,
Eu teria começado o post com uma das tuas frases terminais:
"A discussão é tudo menos simples, porque é uma discussão sobre o futuro, ou seja, sobre a mais desconhecida das realidades."
Por ser uma discussão sobre o futuro, faz pouco sentido desenvolver o raciocínio usando como analogia as contas de mercearia que, por definição, são as contas do dia a dia.
Miguel
Miguel,
Hesitei várias vezes sobre clarificar ou não um ponto que pode não ser claro no que eu disse: mas eu acho ou não que faz sentido investir em renováveis. Não clarifiquei porque me parece óbvio para quem vai lendo este blog que sou favorável às renováveis e porque o texto já é muito comprido.
Pelas mesmas razões se calhar ficou confusa a contestação das contas que são feitas agora, com base na analogia da mercearia.
Sobre o futuro a única coisa que disse é que seria bom tirar do caminho esta propaganda simplista porque o problema é mais complicado que o da mercearia.
henrique pereira dos santos
Com os dados estatísticos da DGEG pude confirmar que os dados para 2003 e 2004 não são os mesmos que mencionei, embora a análise permaneça válida.
Para confirmarem a aldrabice que são as percentagens das energias renováveis vejam o quadro B.1 de http://www.dgge.pt/wwwbase/wwwinclude/ficheiro.aspx?tipo=1&id=3982, ou o tratamento que fiz em http://ecotretas.blogspot.com/2009/09/energias-renovaveis-simplexicadas.html
Fica aqui a nota, porque provavelmente serei simplexamente censurado...
Ecotretas
Bom dia.
A propósito deste assunto, sugiro a leitura do que tem vindo a ser escrito e discutido aqui:
http://a-ciencia-nao-e-neutra.blogspot.com/
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