Fui hoje ouvir duas conferências na Gulbenkian, uma do Miguel Araújo, previsivelmente interessante (e na verdade o motivo para ter lá ido) e outra de Lima Santos (e na verdade o motivo para ter esperado mais um bocado para me vir embora).
Fiz bem em ter ficado.
Lima Santos apresentou uma ideia em cuja viabilidade o próprio disse não acreditar mas que eu acho muito, muito estimulante.
Falava Lima Santos de um dos meus temas predilectos (alimentação e ambiente), identifica as alterações de dieta como mais perigosas ambientalmente que o aumento demográfico (por cada chinês ou indiano que muda de uma dieta tradicional para uma dieta americana, é como se nascessem três ou quatro novas pessoas do ponto de vista do consumo alimentar) e identifica o consumo de carne como o grande problema.
Eu teria duas observações de detalhe a fazer, uma quanto à necessidade de falar em consumo excessivo de carne por contraponto ao consumo de carne tout court, outra quanto à necessidade de separar a carne produzida a partir de rações feitas de cereais das outras carnes produzidas em terras impróprias para cereais. Mas isto são dois detalhes.
O interessante é a proposta de Lima Santos de criar uma taxa sobre os cereais usados no fabrico de rações, com o objecto de subir o preço da carne e diminuir o preço dos cereais para alimentação directa das pessoas.
As razões pelas quais Lima Santos não acredita na exequibilidade da proposta prendem-se com a oposição feroz que esta proposta teria dos produtores de cereais e dos produtores de carne, para além, naturalmente, dos produtores de rações.
Vejamos então como inverter a questão politicamente.
A primeira e mais fácil opção é a de introduzir a taxa progressivamente, isto é, criando um período de transição em que as taxas são baixas e vão crescendo. Isto permite suavizar o impacto inicial e dá tempo de adaptação aos agentes económicos.
Mas o fundamental é ver quem ganha e quem perde, para gerir apoios e oposições.
Perdem os produtores de cereais, os fabricantes de rações e os produtores de carne que usam rações porque todos eles perdem mercado com a subida do preço. E perdem os mais pobres que terão mais dificuldade em comprar carne.
Ganham os produtores de carne criada sem rações, ganham os produtores de todos od produtos que substituirão a carne (com os produtores de leguminosas, como feijão e grão, por exemplo), ganham os importadores de carne não sujeita ao mesmo imposto e ganha o Estado que arrecada a taxa.
Neste cenário o que é mais injusto é os pobres saírem perdedores, o Estado arrecadar mais uma taxa (neste caso, em rigor, um imposto) e o país perder competitividade global no sector.
Se para a questão do comércio internacional não vejo solução no quadro de uma economia aberta e comércio livre (mas o mesmo se passa com as renováveis, com implicações mais globais na competitividade do país, e isso não tem impedido a opção política de as apoiar), já para os outros problemas políticos parece-me fácil encontrar a solução: os recursos arrecadados com a taxa devem reverter para dois grandes destinatários: os pobres (admitindo mesmo que sejam entregues vales para a compra de carne, minimizando as perdas de mercado e melhorando a equidade) e os projectos de melhoria de eficiência e aumento da incorporação de alimentação não proveniente de cereais apresentados pelos produtores afectados.
Sim a proposta é de facto de difícil gestão política.
Mas é muito boa e eu não atiraria a toalha ao chão dizendo que é politicamente inaceitável porque tal como as portagens nas cidades, parece-me muito uma questão de detalhar a solução socialmente mais justa e economicamente eficiente.
Gostaria de ver o movimento ambientalista adoptar esta proposta.
henrique pereira dos santos
9 comentários:
Caro Henrique,
É de facto uma ideia interessante, e mesmo se se verificar inexequível, obriga a olhar para o nosso consumo (focando, este caso, na carne, mas é transversal ao consumismo moderno).
É indiscutível que a quantidade de proteína animal que é consumida per cápita é excessiva e sem paralelo na história da humanidade. É indiscutível que a fatura ambiental desse consumo é enorme. Ao mesmo tempo verifica-se que o preço de carne, devido a sistemas intensivas de produção, são estupidamente baixos, nomeadamente para as carnes de menor qualidade, como é das aves e suinos.
Não sei se por motivos socio-históricos (comer carne ou não significava ser rico ou não), mas a questão de reduzir esse consumo é, pelo menos em Portugal, geralmente visto como uma aberração de extremistas, apesar de alguma mudança nos grandes centros urbanos, onde surge com mais frequência oferta de refeições vegetarianas.
A questão é como alterar esta estado das coisas. Fazer aumentar artificialmente o preço de carne numa pequena parcela do mercado global (por ex. Portugal) distorce o normal funcionamento do mercado e será dificilmente "justo", com muitos efeitos colaterais indesejados. Também o aumento do preço não leva automaticamente a uma redução do consumo, mas provavelmente a um "shift" de consumo na direção das carnes relativamente mais baratas (e normalmente com maior impacte ambiental).
A alteração voluntária dos padrões de consumo é uma via com algum sucesso em países como Inglaterra, Holanda ou os escandinavos, mas tem um efeito global reduzido.
Um dos motivos da carne ser tão barata prende-se com os sistemas de produção. Uma forma de condicionar o surgimento desta carne no mercado é através de restrições nos sistemas intensivos de produção, que obriga a uma máquina pesada (logo cara) de fiscalização dos locais de produção, premeia os infractores e tem os mesmos defeitos da subida artificial do preço.
Por fim, e semelhante a outros produtos de grande consumo, a aderência voluntária dos produtores a sistemas mais amigo do ambiente, com a respetiva certificação destes sistemas e produtos, pode criar um mercado para produtos com maior valorização, compensando perdas de produção quando comparado com sistemas intensivas. Estes sistemas já existem em têm tido um crescimento no mercado interessante, embora ainda bastante marginal, e cujo público alvo são normalmente as classes sociais com maior poder de compra.
Portanto, como sair desta situação. Não havendo soluções milagrosas, provavelmente a melhor abordagem será uma mistura de todas estas vias, que permitem um maior equilíbrio em termos do funcionamento do mercado, e podem "empurrar" lentamente para produções e consumos mais sustentáveis.
Henk Feith
Queria apenas acrescentar duas notas à tua contabilidade. No caso português taxar rações implicará uma subida dos preços dos lacticínios (muito mais no continente do que nos Açores) e dos ovos, dois importantes grupos de alimentos na nossa dieta. Em contrapartida, áreas assinaláveis cultivadas com cereais, ou recentemente abandonadas pela agricultura, poderiam ser convertidas em pastagens extensivas com assinaláveis ganhos ambientais.
O que José Manuel Lima Santos escreve, ou diz, merece sempre a nossa atenção. Que pena não ser ele o novo ministro da agricultura! (receio que o recém empossado ministro da agricultura seja mais um defensor dos produtores de cereais sulistas, que apesar serem responsáveis por pouco mais de 5% do Produto Agrícola Bruto, capturam 35% das ajudas à agricultura).
Henrique
Tens sorte por viver em Lisboa e estares próximo dos locais onde normalmente decorrem ciclos de conferências com esta qualidade mas que infelizmente ficam quase sempre distantes para quem cultiva os cereais ou cria o gado que José Manuel Lima Santos referiu na sua intervenção.
Na tua análise noto que Lima Santos não refere acabar com a cultura de cereais, apenas em reduzir a sua incorporação na alimentação animal e orientar a produção para consumo humano directo (panificação e massas alimentícias). Foi notório nos noticiários e programas televisivos dos últimos meses, as inúmeras recomendações para retomar o hábito de comer sopa e de consumir leguminosas como alternativas mais económicas e saudáveis que a carne. Tal como os indianos e chineses, grande parte da nossa população quando passou a ter algum desafogo económico passou a comer muito mais carne, porque isso das açordas e hortaliças é comida de pobre. Mas em caso de crise económica voltam a prevalecer hábitos de consumo mais sustentáveis.
Importa recordar que sistemas policulturais tradicionais – onde os cereais em regime de rotação são parte integrante - constituem suporte para grande parte da biodiversidade actual do mediterrâneo. Se queremos recuperar a população de coelho de forma a viabilizar a futura libertação dos linces de Silves, teremos que cultivar algumas parcelas com cereal no interior dos matagais. Se queremos manter ou recuperar populações de abetarda, sisão, francelho ou águia-caçadeira, os cereais deverão continuar a ser cultivados em algumas regiões e, se necessário, financiados como serviço ambiental.
Com excepção dos solos mais produtivos da lezíria do Tejo ou dos barros de Beja, neste momento cultivar cereais de Outono/Inverno em Portugal é estar a perder dinheiro, a não ser que na exploração exista gado para aproveitar o restolho, o grão e a palha. E as alternativas para muitos dos agricultores são, para além do abandono da actividade, converter essas áreas em olival intensivo, vinha ou regadio intensivo, com consequências negativas sobre espécies prioritárias em termos de conservação.
Meus caros,
1) Henk, de facto a questão da cometitividade internacional é importante e não tenho grandes resposta. Mas ainda assim é bom lembrar que também há outras desigualdades que temos e mantemos, como a carga fiscal (incluindo a taxa do IVA), a electricidade mais cara em função das renováveis e etc.. Ou seja, dentro de determinados limites, estas disparidades são suportáveis pela economia;
2) As carnes mais baratas de que falas são exactamente as mais afectadas pelo aumento do preço das rações. No outro lado da escala estarão as carnes que menos usam cereais e, portanto, com menos impactos ambientais, que ganham competitividade com uma medida deste tipo. Isso levanta problemas para alguns, claro, mas o objectivo ambiental pretendido é de facto atingido;
3) A mesma questão se põem em relação aos ovos e leite de que fala o Carlos, com razão. Mas com um mecanismo de feed back que use o resultado da taxa para suportar o consumo de leite e ovos por parte dos mais pobres, não nenhum drama e diminuir os consumos actuais de leite e ovos, obtendo-se o tal benefício amabiental (para além de reforçar a competitividades de quem produz menos intensivamente);
4) João Carlos, acho que tens razão no que dizes mas parece-me que o pagamento de serviços ambientais deve ter outra lógica que não pode ser misturada com esta proposta. O que está em causa na proposta, e a torna interessante, é a introdução de uma distorção no mercado por via fiscal, para os cereais usados para ração. O que é mais ou menos neutro (nunca o é totalmente) em relação ao que referes sobre a necessidade de produzir cereais de sequeiro em situações específicas por razões ambientais.
henrique pereira dos santos
Meus Caros, apenas uma questão simples. A economia organiza-se em torno de mercados, ou seja, onde há alguém que quer comprar o que outro pode vender e que o preço que se forma permita cobrir os custos mais uma margem de lucro para o vendedor. Existem no entanto situações de excepção em que o mercado não responde (ex. serviço dos ecossistemas) o que força a uma intervenção política (falhas de mercado) desde que a segurança do sistema esteja em causa e exista percepção da parte do consumidor de tal facto. Ora, não me parece que estejamos neste caso e nem imagino politicamente alguém a defender isto (parece-me mais: Big brother is watching you...).
Não vi a conferência do LS, mas pelo que conheço do seu pensamento a questão está em como nesta era de globalização dar um sentido agricolamente produtivo aos solos europeus (para além dos mais férteis) quando é mais fácil e barato produzir nos países em desenvolvimento. A Europa resolveu o problema dando ao mundo rural uma óptica cultural e de lazer para onde não é viável produzir...
Caro João,
Claro que se pode deixar o mercado resolver o assunto (foi mesmo por aí que Lima Santos começou).
E qual é o assunto?
É o facto do consumo excessivo de carne ter impactos ambientais muito complicados, que são dificeis de internalizar pelo mercado.
O mercado resolve-o fazendo subir o preço quer da energia, quer dos cereis, quer da carne até um ponto de equilíbrio novo, com menos consumo de carne.
O problema desta solução é que pelo meio morreram os mais pobres, sobretudo vegetarianos forçados, incapazes de suportar o preço crescente dos cereais.
Daí a proposta de internalização do impacto ambiental do consumo de carne por via de um imposto (nada de herético, é o que fazemos já hoje com a energia, com as taxas de acesso de viaturas aos centros de cidades, ou do ponto de vista social, com os descontos para a segurança social).
A proposta é difícil de gerir politicamente?
Claro que é, mas isso não significa que esteja intrinsecamente errada.
henrique pereira dos santos
Henrique, o nosso desacordo está aqui: "...O problema desta solução é que pelo meio morreram os mais pobres, sobretudo vegetarianos forçados, incapazes de suportar o preço crescente dos cereais...".
Não considero que estejamos nesta situação e se caminharmos para ela é no mercado dos cereais que se deve intervir e não distorcer/intervir em toda a economia. Abr, João
Não entendi.
A proposta é exactamente intervir no mercado dos cereais, criando uma distinção entre os cereais para consumo humano directo e os que são usados para ter preços historicamente baixos de carne (e já agora, leite e ovos) que resultam de elevada incorporação de combustiveis fósseis nos nossos sistemas de produção agrícola.
O mecanismo é aliás muito similar, embora de sentido inverso, ao usado para promover as energias de fontes renováveis como resposta à dificuldade do mercado internalizar os efeitos negativos do consumo de combustiveis fósseis.
henrique pereira dos santos
Estava a referir-me à estimulação artificial da produção de cereais (que foi o que a Europa fez no pós-guerra) enquanto o mercado não atingisse o equilíbrio, considerando que se estava perto de uma situação global de ruptura por falta de alimentos em partes do globo. De qualquer forma penso que estamos muito longe desta situação de catástrofe.
O que estás a propor, levado ao absurdo, poderia implicar a perda total da minha liberdade em escolher a minha dieta. Não gostava de viver nesse mundo. JM
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