Uma dessas questões, e não certamente a menor, é o do condicionamento da liberdade individual que uma medida destas representa ao pôr nas mãos do Estado decisões sobre o que deve ser a dieta ideal.
Não desvalorizo este argumento de maneira nenhuma e escrevi aqui e aqui contra a consideração de algumas dietas como moralmente superiores a outras.
No entanto o argumento da liberdade de escolha de dieta não pode ser usado sem uma avaliação de mais detalhe das implicações éticas que resultam das suas implicações ambientais.
Como é da natureza das coisas só os muito ricos têm total liberdade de escolha das suas dietas. Os outros têm uma liberdade condicionada pelo seu rendimento.
Importa por isso considerar o que são direitos básicos nesta matéria e o que são possibilidades abertas pelo grau de riqueza de cada um.
O direito básico será o de não morrer à fome. E este deve balizar a minha liberdade de escolha da dieta (deixando de lado a discussão sobre o direito de me deixar morrer à fome a mim próprio, que é uma discussão marginal neste contexto).
Portanto a pergunta prévia é a de saber se é possível satisfazer este direito básico adoptando uma dieta semelhante à americana (ou europeia, embora esta seja menos agressiva que a americana).
De acordo com o que Lima Santos disse na Gulbenkian, um indiano ou chinês com a sua dieta tradicional vegetariana ou quase consome 200 Kg de cereais por ano. Um americano cerca de 800 Kg, não porque coma 800 Kg de cereais (daria uma média de mais de dois quilos por dia) mas porque comendo muita carne usa um conversor de cereias em alimentos de muito baixa eficiência.
Significa que a progressiva adopção de dietas ricas em carne no resto do mundo que hoje não as têm, implicaria multiplicar a capacidade produtiva por três ou quatro. Isso já foi feito nos últimos cinquenta anos, mas o que se verifica é que o retorno de cada unidade de input energético na agricultura (e em especial na mais produtiva) é progressivamente menor, não sendo crível que se possam obter os mesmos resultados que se obtiveram com a revolução verde das últimas décadas.
O que é previsível nestas condições é um progressivo aumento do preço dos cereais, quer pela sua progressiva escassez, quer pelo previsível aumento do custo dos inputs energéticos (onde estou a incluir os fertilizantes, que não levantam apenas o problema da escassez energética mas também de nutrientes).
O resultado, muito antes de afectar o consumo de carne das dietas dos países ricos, é o aumento da fome nos países pobres.
E aqui retomamos a discussão ética: o que está em causa não é apenas a minha liberdade de comer o que quiser, é antes o confronto entre essa liberdade e o direito de não morrer à fome de terceiros.
Por isso a proposta de Lima Santos me parece tão interessante: a forma como intervém na minha liberdade de escolher uma dieta mimetiza os mecanismos de mercado, distorcendo o preço dos cereais usados para rações, o que levanta problemas que vale a pena discutir, sem dúvida, mas que me parecem problemas incomparavelmente menos graves que os que são levantados pelo aumento do preço dos cereais para alimentação humana, de que tivemos uma pálida amostra no ano passado.
Ou seja, intervém na minha liberdade de uma forma semelhante aos outros factores de formação do preço e não de forma coerciva. Eu mantenho a liberdade de escolha dentro do meu nível de rendimentos.
Claro que os optimistas dirão que a sociedade encontrará os mecanismos para sair desta armadilha como sempre encontrou, sem necessidade de intervenção dos Estados.
Isso é verdade.
Mas o que a proposta ajuda a discutir é o preço social das diferentes alternativas, incluindo as suas implicações éticas implícitas no argumento sobre a liberdade de escolha da dieta.
henrique pereira dos santos
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