sábado, novembro 28, 2009

A rolha e o boicote


Henrique Pereira dos Santos afirmou neste post que boicotava uma marca conhecida de vinhos por ter substituído a rolha por um "screwcap" metálico (presumo eu, porque não é explícito).

Como terá sido para muitos, também estranhei a publicidade, sobretudo pela frontalidade em que assumiu um assunto sensível como os vedantes artificiais a substituir a clássica rolha de cortiça.

Acontece que, na verdade, não é a rolha que preocupa os boicotantes (nos quais me incluo), porque ainda ninguém apelou à utilização de rolhas nas restantes garrafas que usamos, todas com vedantes artificiais, para não falar das garrafas plásticas, elas totalmente feitas de produtos de origem fossil. Preocupa a sobrevivência do ecossistema montado de sobro, que passa obrigatoriamente pela valorização mercantil da sua produção. E a rolha é dos produtos com maior mais-valia do montado (mas não é o único, felizmente).

A rolha é um vedante de luxo, mesmo para o vinho, que somente nas últimas décadas se vulgarizou na embalagem dos vinhos. Antigamente, grande parte do vinho, mesmo o engarrafado, não usavam rolhas mas sim cápsulas plásticas (quem não se lembra das garrafas de 1 litro de vinho corrente, tão em uso nas zonas rurais até há relativamente pouco tempo).

Para compreender a substituição, devem esquecer um pouco a nossa lusandade (isto existe?) e ver o vinho como um produto de mercado global, em que se combate taco a taco com produtores de todos os continentes.

Os vedantes artificiais, nomeadamente os "screwcap" (ainda não encontrei tradução adequada), têm como vantagens serem mais baratos, mais práticos e não afetem a qualidade de vinho, como fazem as rolhas com TCA, substância que provoca o "sabor a rolha". A sua principal desvantagem é de não apoiar uma produção rural que suporte um ecossistema de elevada relevância em termos de biodiversidade (o montado de sobro), para além de ser de origem fóssil.

Em viagem recente à minha terra natal (Holanda), verifiquei que mais do que metade das garrafas de vinho comercializadas tinham como vedantes screwcaps ou rolhas plásticas. Ao questionar a minha irmã, pessoa com inteligência bem acima da média e razoavelmente consciente em termos ambientais, sobre a opção por vinhos com rolha natural, ela respondeu de forma surpreendente: "mas que bom que finalmente acabaram com aquelas rolhas chatas! São muito mais práticos os screwcaps, abro e fecho quando quiser. Antes era frequente querer abrir uma garrafa e não ter sacarrolhas à mão. Já tentaste fechar uma garrafa com uma rolha?". Ao explicar a importância do ecossistema montado para a conservação de muitas espécies ameaçadas, ela encolheu os ombros e afirmava que não era motivo para escolher uma garrafa de vinho com rolha de cortiça.

Para os portugueses pode ser uma argumentação inacreditável, mas para compreender o comportamento de grandes empresas como a do Montez Champalimaud que produz o vinho Quinta do Cotto, que procuram sobretudo os mercados internacionais, clientes como a minha irmã são relevantes, e se a sua satisfação passa pela utilização de screwcaps, que assim seja. Se esse screwcap ainda por cima
for mais barato e não tem o problema do TCA, então quem ainda tem dúvidas?

Quer dizer que devemos resignarnos com a invasão do mercado com screwcaps? De todo. Empresas como Montez Champalimaud são sensíveis a factores que afetam a sua imagem. Por isso, não é muito eficiente "boicotar" a compra desse vinho (é de gama média alta, vi o referido venho por uns 8€ no supermercado), isso não aquece nem arrefece a casa do Montez. Já muda de figura se passa a enviar
e-mails, dezenas, centenas, milhares de e-mails a chamar à responsabilidade da empresa as consequências da sua opção. Por isso, para além de não comprar o referido vinho (e as restantes que vão surgindo no mercado nacional), chateia-os, pedindo explicações sobre as suas opções.

Boa sorte!

Henk Feith

3 comentários:

Henrique Pereira dos Santos disse...

Henk,
Eu percebo a lógica da tampa de rosca em vez da rolha.
E sei que os produtores de vinho competem em mercados, sendo por isso escravos dos consumidores.
No capítulo de um livrito que em princípio editarei no meio do ano que vem uso exactamente o exemplo da cortiça e da rolha para ilustrar como os factores que influenciam a gestão de uma paisagem podem ter ciclos temporais completamente desfasados (a procura de rolhas pode variar em função de decisões tomadas quase diariamente e a oferta de cortiça varia em função de descisões tomadas há quarenta anos atrás).
E sei ainda que o meu boicote vale nada.
Simplesmente não quis deixar passar em claro que isto é um assunto que cabe aos consumidores resolver, mesmo que como dizes, e bem, o peso ambiental da decisão seja provavelmente ínfimo em relação ao conforto.
Por mim espero que os produtores de rolhas puxem pela cabeça para fazer vedantes de cortiça mais confortáveis para os consumidores, da mesma maneira que os produtores de cerveja já começaram a prescindir do abre-garrafas.
henrique pereira dos santos

João Menezes disse...

Há duas questões aqui levantadas. A primeira diz respeito essencialmente aos países do sul da Europa e é cultural, para quem beber vinho é mais do que apenas ingerir um líquido agradável e a questão de uma rolha de cortiça faz toda a diferença na sua forma de estar e lidar com a natureza, com o mundo rural, com o terroir e com a sociedade.
A segunda releva do eventual potencial de customização e angariação de mercados em povos e em particular em consumidores que não possuem cultura associada ao vinho e nem têm particular interesse por esta. Quanto mais barato, mais fácil e mais associado a sabores tradicionais (o caso do Lancers ou do Mateus Rosé, são paradigmáticos nesta óptica) mais fácil esta penetração, ou seja, quanto mais low cost maior o seu poder para alargar a base de consumidores.
Em Portugal, não há nenhuma razão para ter como alvo esta segunda óptica. Internamente temos todas as condições para posicionar o vinho como produto cultural e diferenciado e externamente não temos qualquer possibilidade de produzir em quantidade e competir com origens como a África do Sul, Austrália, Califórnia ou outros produtores de massa. Pelo que apostar neste tipo de diferenciação e posicionamento pelo custo e pela facilidade é suicidário para a nossa indústria do vinho (aliás a estratégia do Mateus Rosé é hoje irrepetível, o seu sucesso prendeu-se com a originalidade e o pioneirismo na época). Se juntarmos a isto o facto de o anúncio em causa ter sido publicado internamente, então estou com HPS.
“Por mim boicoto”.
JM

Susana Nunes disse...

Interessante debate. Por acaso também já me deparei com a mesma situação num supermercado e acabei por chegar à conclusão de que também tenho tendência a boicotar os vinhos com este novo tipo de rolhas. A questão de ser mais ou menos prático é muito relativa porque, por exemplo aqui em França, muitas vezes as rolhas de cortiça são substituídas por rolhas precisamente com o mesmo formato mas feitas a partir de um material diferente (uma espécie de borracha). O que, evidentemente, não torna a abertura mais prática.
Mas, indo um pouco mais longe, e deixando de lado a nossa "lusandade", penso que o vinho português não precisa se aventurar no mercado low-cost. Em Paris, encontra-se facilmente em qualquer supermercado pelo menos uma ou duas garrafas de vinho português. Quem as compra não é pelo preço, que de qualquer maneira nunca seria inferior ao do vinho francês, mas precisamente por ser português. Para além disso, para os franceses, o som da abertura e o cheiro da cortiça fazem parte do ritual. E eu não sou francesa, mas gosto do ritual!