Que as questões ecológicas no seu interface com a dimensão social e económica estão hoje no cerne da sociedade francesa, prova-o o exercício de concertação social sobre o mar que decorreu de inícios de Abril a 15 de Julho de 2009 nesse país.
Pudéramos nós, em Portugal, ter idêntica iniciativa. Mas a nossa sociedade está muito longe de ter compreendido, como já compreendeu a sociedade francesa embora com limitações, que é na questão ecológica que se joga o destino colectivo de um povo, hoje.
O exercício chama-se Grenelle do Mar. Porquê Grenelle? Grenelle é o nome da rua de Paris em que se situa o ministério do trabalho onde decorreu, em Maio de 1968, a célebre negociação entre o governo, os sindicatos e outros parceiros sociais, que deu expressão a algumas das exigências da revolução dos estudantes e dos trabalhadores que então se verificava, e ao mesmo tempo em parte a esvaziou levando a uma certa pacificação da sociedade.
Grenelle passou pois a designar qualquer debate, negociação ou concertação de múltiplos parceiros sociais, incluindo governo, associações profissionais, sindicatos, associações, instituições, com o objectivo de preparar legislação ou tomar posição sobre determinada matéria.
O Grenelle do Mar, de 2009, foi precedido pelo Grenelle do Ambiente, de 2007, de que resultaram já alterações legislativas de certa envergadura, e que ainda prosseguirão. Pela mesma época, também este ano, realizou-se o Grenelle das Ondas, centrado na questão da poluição electromagnética (antenas e telemóveis, alta tensão, etc).
A concertação, que representa uma tentativa de aprofundar o Grenelle do Ambiente no que toca ao mar, foi lançada pelo governo francês, e mais especificamente pelo ministro de Estado e espécie de vice-primeiro ministro, Jean-Louis Borloo, que é ao mesmo tempo ministro da ecologia, da energia, do desenvolvimento sustentável e do mar (com exclusão das pescas). Borloo é um antigo membro de um dos movimentos pioneiros da ecologia em França, Génération Écologie, criado por Brice Lalonde, que foi um dos fundadores dos Amigos da Terra em França, e também antigo ministro da ecologia e candidato ecologista à Presidência do país.
Quatro Grupos de Trabalho
O Grenelle do Mar iniciou-se com três meses de reuniões preparatórias, acompanhadas de uma ampla consulta pública na internet, tendo sido então constituídos quatro grupos de trabalho:
Propostas consensuais
Eis algumas das principais propostas:
Desde o lançamento desta concertação, muitas das mais representativas associações ecoambientais francesas aderiram e participaram com grande empenho, embora não sem algumas críticas. Os resultados foram de modo geral por elas saudados como positivos, se bem que tivesse ficado patente que não foi possível obter consenso nalguns pontos, dois em especial. Por um lado, o nuclear, verdadeiro tabu por parte do poder em França, manteve-se arredado da concertação, incluindo em matéria de despejos radioativos no mar. Por outro lado, não houve acordo em matéria relativa ao escorrimento de pesticidas para o mar.
Uma associação, por exemplo (Agir por l'Environnement et le Développement Durable, AE2D), que não integrou os trabalhos, lamentou a exclusão da questão do nuclear, bem como a deficiente abordagem de alguns temas, incluindo o desmantelamento dos velhos navios civis e militares, o perigo das algas verdes, a conversão ecológica de atividades atualmente ao serviço das armas e do nuclear em atividades ao serviço do desenvolvimento sustentável. A associação Armoor, que integrou os trabalhos, insistiu, embora sem obter ganho de causa, na necessidade de fazer o inventário da situação dos locais onde tenham sido feitos despejos de efluentes e resíduos nucleares, bem como de acabar com toda e qualquer construção de centrais nucleares no litoral, e de excluir a propulsão nuclear na conceção do «navio do futuro».
Na sua introdução ao Livro Azul acima referido, o ministro Borloo insiste que não se pretende reproduzir no mar os erros cometidos em terra. Mas... virá a ser assim? O aproveitamento energético e económico pode ser uma boa coisa se essa condição for cumprida. Mas pode também ser a porta aberta, a pretexto de ecologia e de sustentabilidade, capaz de levar a um novo domínio uma exploração económica desregrada, sem limites. Depois do desordenamento que reina hoje em terra, iremos assistir a uma multiplicação de estruturas construídas que transforme o horizonte marinho, hoje um repouso para os olhos de quem tem que enfrentar o caos urbanístico, numa multiplicação e amontoamento de eólicas e outras infraestruturas produtivas? É que aquilo que, com medida e senso, pode ser um valor positivo, pode também resvalar insensivelmente para a desmesura. Basta o que aconteceu em terra; que o mar se possa manter visualmente livre de aberrações humanas é o mínimo que se pode desejar. Sob perigo de a «ecologia» se tornar o ferro de lança da desordem.
José Carlos Marques
Pudéramos nós, em Portugal, ter idêntica iniciativa. Mas a nossa sociedade está muito longe de ter compreendido, como já compreendeu a sociedade francesa embora com limitações, que é na questão ecológica que se joga o destino colectivo de um povo, hoje.
O exercício chama-se Grenelle do Mar. Porquê Grenelle? Grenelle é o nome da rua de Paris em que se situa o ministério do trabalho onde decorreu, em Maio de 1968, a célebre negociação entre o governo, os sindicatos e outros parceiros sociais, que deu expressão a algumas das exigências da revolução dos estudantes e dos trabalhadores que então se verificava, e ao mesmo tempo em parte a esvaziou levando a uma certa pacificação da sociedade.
Grenelle passou pois a designar qualquer debate, negociação ou concertação de múltiplos parceiros sociais, incluindo governo, associações profissionais, sindicatos, associações, instituições, com o objectivo de preparar legislação ou tomar posição sobre determinada matéria.
O Grenelle do Mar, de 2009, foi precedido pelo Grenelle do Ambiente, de 2007, de que resultaram já alterações legislativas de certa envergadura, e que ainda prosseguirão. Pela mesma época, também este ano, realizou-se o Grenelle das Ondas, centrado na questão da poluição electromagnética (antenas e telemóveis, alta tensão, etc).
A concertação, que representa uma tentativa de aprofundar o Grenelle do Ambiente no que toca ao mar, foi lançada pelo governo francês, e mais especificamente pelo ministro de Estado e espécie de vice-primeiro ministro, Jean-Louis Borloo, que é ao mesmo tempo ministro da ecologia, da energia, do desenvolvimento sustentável e do mar (com exclusão das pescas). Borloo é um antigo membro de um dos movimentos pioneiros da ecologia em França, Génération Écologie, criado por Brice Lalonde, que foi um dos fundadores dos Amigos da Terra em França, e também antigo ministro da ecologia e candidato ecologista à Presidência do país.
Quatro Grupos de Trabalho
O Grenelle do Mar iniciou-se com três meses de reuniões preparatórias, acompanhadas de uma ampla consulta pública na internet, tendo sido então constituídos quatro grupos de trabalho:
- Favorecer o desenvolvimento harmonioso do litoral, melhorando o interface terra-mar;
- Promover o desenvolvimento de actividades marítimas competitivas e sustentáveis no plano ambiental;
- Valorizar as profissões do mar e agir para tornar as actividades marítimas atrativas;
- Instaurar uma nova governância nos níveis infranacional, nacional, europeu e mundial.
Propostas consensuais
Eis algumas das principais propostas:
- criação de uma «rede azul marinho», que ligue os estuários, em complemento da rede verde e azul resultante do Grenelle do Ambiente;
- desenvolvimento das áreas marinhas protegidas por forma a atingirem 10 por cento da ZEE (zona económica exclusiva) do país em 2012 e 20 por cento em 2020, sendo metade reserva de pesca;
- inscrição na CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies em Perigo) do atum vermelho e do tubarão-golfinho;
- criação de áreas marinhas protegidas nas zonas de reprodução dos peixes e habitats sensíveis;
- realização de um inventário da situação dos meios marinhos em matéria de saúde dos ecossistemas;
- concepção do «navio do futuro» e do «porto do futuro»;
- lançamento de um grande plano de «Energias Azuis» que permita investir maciçamente nas energias marinhas renováveis;
- constituição no país de uma fileira industrial de desmantelamento de navios e de uma Aliança das Ciências do Mar;
- criação de um Conselho do Arquipélago Francês que permita assegurar uma gestão integrada do mar, do litoral e das bacias hidrográficas respectivas e que faça o acompanhamento da execução dos compromissos do Grenelle do Mar.
Desde o lançamento desta concertação, muitas das mais representativas associações ecoambientais francesas aderiram e participaram com grande empenho, embora não sem algumas críticas. Os resultados foram de modo geral por elas saudados como positivos, se bem que tivesse ficado patente que não foi possível obter consenso nalguns pontos, dois em especial. Por um lado, o nuclear, verdadeiro tabu por parte do poder em França, manteve-se arredado da concertação, incluindo em matéria de despejos radioativos no mar. Por outro lado, não houve acordo em matéria relativa ao escorrimento de pesticidas para o mar.
Uma associação, por exemplo (Agir por l'Environnement et le Développement Durable, AE2D), que não integrou os trabalhos, lamentou a exclusão da questão do nuclear, bem como a deficiente abordagem de alguns temas, incluindo o desmantelamento dos velhos navios civis e militares, o perigo das algas verdes, a conversão ecológica de atividades atualmente ao serviço das armas e do nuclear em atividades ao serviço do desenvolvimento sustentável. A associação Armoor, que integrou os trabalhos, insistiu, embora sem obter ganho de causa, na necessidade de fazer o inventário da situação dos locais onde tenham sido feitos despejos de efluentes e resíduos nucleares, bem como de acabar com toda e qualquer construção de centrais nucleares no litoral, e de excluir a propulsão nuclear na conceção do «navio do futuro».
Na sua introdução ao Livro Azul acima referido, o ministro Borloo insiste que não se pretende reproduzir no mar os erros cometidos em terra. Mas... virá a ser assim? O aproveitamento energético e económico pode ser uma boa coisa se essa condição for cumprida. Mas pode também ser a porta aberta, a pretexto de ecologia e de sustentabilidade, capaz de levar a um novo domínio uma exploração económica desregrada, sem limites. Depois do desordenamento que reina hoje em terra, iremos assistir a uma multiplicação de estruturas construídas que transforme o horizonte marinho, hoje um repouso para os olhos de quem tem que enfrentar o caos urbanístico, numa multiplicação e amontoamento de eólicas e outras infraestruturas produtivas? É que aquilo que, com medida e senso, pode ser um valor positivo, pode também resvalar insensivelmente para a desmesura. Basta o que aconteceu em terra; que o mar se possa manter visualmente livre de aberrações humanas é o mínimo que se pode desejar. Sob perigo de a «ecologia» se tornar o ferro de lança da desordem.
José Carlos Marques
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