terça-feira, dezembro 01, 2009

O sapateiro e o rabecão



Por causa do meu post sobre os lobos e as serras de entre Vouga e Douro, acabei por ter acesso (o documento é público e existe na APA) a um relatório de monitorização do primeiro ano dos parques eólicos da região.
Voltarei, provavelmente, à fantástica (se procurarem no dicionário, fantástico não quer dizer bom, o que não quer dizer que a reportagem não seja boa, quer apenas dizer que o que me fascina na reportagem é ser fantástica, no verdadeiro sentido da palavra) reportagem que o Público fez sobre o assunto mas hoje queria centrar-me num aspecto concreto do dito relatório.
O relatório em causa identifica como principais ameaças às alcateias da zona as seguintes:
1) Os incêndios, porque são um importante factor de degradação do habitat;
2) O aumento da rede viária, porque são um importante factor de fragmentação do habitat, de perturbação e causa directa de morte de lobos;
3) A utilização generalizada de laços.
Todas estas afirmações adequadamente suportadas em referências bibliográficas.
Conheço este elenco de ameaças e reconheço-o como razoavelmente consensual entre os principais investigadores que trabalham em Lobo.
Mas a meu ver estão completamente errados.
Reconheço a arrogância da afirmação, no sentido em que agora aparece um ignorante em matéria de lobos a dizer que os principais investigadores na matéria estão todos errados, como se os outros fossem todos tontos e só ele o inteligente.
Eu sei que a interpretação citada no parágrafo acima é plausível e por isso gostaria de explicar muito bem que o que pretendo fazer é apenas confrontar estas afirmações com duas narrativas paralelas no tempo, feitas pelos investigadores do lobo e que são contraditórias entre si.
O que não é de estranhar visto que uma delas se suporta em matérias nas quais eles não só não são especialistas, como a não estudam: a dinâmica da paisagem.
À primeira narrativa não vou dedicar muito tempo (pese embora a existência de algumas dúvidas que tenha sobre ela e que talvez trate noutro post um dia destes) limitando-me ao essencial: as populações de lobo estão em perda, pelo menos se tomarmos como referencial os últimos 100 a 150 anos, e por isso os lobos destas alcateias estão especialmente ameaçados e fragilizados.
Partindo desta narrativa, procuremos reconstituir as condições em que viviam essas populações de lobo mais ou menos abundantes (pelo menos longe do limiar de extinção em que hoje são colocadas as populações de lobos ao Sul do Douro).
Em vez de adoptarmos a lógica básica que consta da primeira das ameaças descritas (os fogos queimam, logo destroem a vegetação, logo são um factor de degradação do habitat) adoptemos uma posição um bocadinho mais exigente e vamos verificar o que está efectivamente descrito de como seria a região há 150 anos.
"Um dos tractos de terrenos mais extenso, quasi todo inculto e sem arborisação, diz o engenheiro M. C. Corrêa Paes, é a cumiada que separa parte das aguas do Paiva e do Douro...
... onde há notável falta de madeiras, e onde as lenhas se vendem por subido preço, attenta a sua grande falta.
As cumiadas e parte das encostas das serras de Sernancelhe e da Senhora-da-Lapa, completamente calvas em grande parte da sua superfície, cobrem-se de vegetação no seu prolongamento para o lado do NO., de modo que na chã de Leomil, ao descahir para a vertente septentrional da montanha, vê-se o solo não só coberto de mato, mas também de olival.
...Acima das cotas de 600 a 800 metros (serra de Montemuro) sobr o Douro escasseiam a cultura e o arvoredo; n'esta parte mais elevada da serra a vegetação é rasteira, e o granito mostra-se em muitos pontos escalvado. Na cumiada há somentes fetos, giesta, sumagre, carvalheiras, urzes e outras espécies de mato e plantas herbaceas, nas quais todavia milhares de cabeças de gado encontram no estio a sua nutrição.
...A sua arborização (de uma outra área, mais perto de Sever) tem sido tentada por alguns particulares, mas tem-a estorvado a obstinada opposição dos povos, a quem a cultura prejudicaria um pouco, roubando-lhes a regalia do usu-fructo dos matos bravios.
...Se n'este concelho principalmente, e no de Albergaria, não está hoje arborisada toda ou quase toda a superfície de terreno que não vale a pena agricultar-se, ou que o não possa ser, deve attribuir-se tão grande mal a uma prática condemnavel e a um abuso que muito carece de ser reprimido. Refiro-me às queimadas que por este tempo (mez de outubro) se fazem nestes concelhos no matos altos, com o fim de obter e melhorar as pastagens para o gado lanigero que por ali se cria."
Penso que chegam estas citações do relatório àcerca da arborização geral do país, de 1868 (e poderia acrescentar muitas outras) para se ter uma ideia do que era a paisagem e o uso desta zona há cento e cinquenta anos.
Não tenho aqui à mão, mas se se ler "Montemuro, a mais desconhecida serra de Portugal", de 1940, do meu primo Amorim Girão, poderão ter um retrato de como era esta região há quarenta anos, que confirma o essencial do descrito (como o livro não é de fácil acesso, na única vez em que estive com a Presidente da Câmara de Castro Daire ainda lhe sugeri que o reeditasse, fica uma referência para uma tese de doutoramento de fácil acesso, tendo em conta os quase setenta megas, onde se reproduzem fotografias do livro de Amorim Girão que permitem ter ideia do que era aquela paisagem de fragas e vegetação rasteira).
Ora aqui retomamos a narrativa inicial da evolução da população de lobo.
Se a população de lobo era maior, mais contínua e menos ameaçada numa paisagem mais despida, com menos vegetação e com queimadas constantes, como se pode concluir que os actuais fogos são por um lado um factor de degradação do habitat e por outro um facto de ameaça destas populações de lobo? Eu não consigo compreender.
O mesmo poderemos dizer para as vias de comunicação, visto que estas populações já estavam bem ameaçadas antes da construção da A24, pelo que não pode ser este um factor primordial (pode, no máximo, acentuar dificuldades, mas não é a origem das dificuldades). E nem vejo como se possa dizer que estradas de onde os carros saem pouco são um factor indutor de perturbação maior de milhares de cabeças de gado, acompanhadas pelos seus pastores e os seus cães, meses a fio nos sítios mais recônditos da serra (convém lembrar que no Verão não pastavam aqui apenas as ovelhas das povoações da serra, que já de si seriam incomparavelmente mais que as que hoje por lá andam, mas também às dos povos dos vales mais próximos, nomeadamente Douro e Vouga, que eram aos milhares).
Os laços são para mim uma coisa ainda mais estranha: não só ninguém sabe se havia mais laços antigamente que agora, como o mais provável é que houvesse muitos mais antigamente, porque havia muito mais gente por ali, e com um ódio ancestral ao lobo que está mais que documentado.
O que veradeiramente é diferente é a disponibilidade alimentar: não só as milhares de cabeças de gado estão reduzidas a poucas centenas, como a população de coelho será, na melhor das hipóteses, 5 a 10% da que existia, como ainda a perdiz praticamente desapareceu com o abandono do cultivo de cereais de inverno nas cumeadas.
Ou seja, simplesmentes estes lobos têm é fome.
O resto diz mais respeito às histórias do capuchinho vermelho (histórias do centro da europa, passadas na floresta) que à realidade.
henrique pereira dos santos

10 comentários:

Lightnin' Jones disse...

Caro Henrique,

Também estranho esta referência ao fogo como uma ameaça para o lobo. É fácil constatar que a presença do lobo coincide com áreas onde a recorrência do fogo é elevada.

Paulo Fernandes

Anónimo disse...

Caso os lobos tenham fome é porque ficaram calaceiros, à semelhança das pessoas que vivem nas aldeias serranas, cujas hortas, graças às reformas e pensões sociais, situam-se no Continente mais próximo. Javalis há-os por todo o lado, os lobos que aprendam com os cães de agarre das matilhas de caça.

O lobo, ao contrário do fidalgo lince, devora tudo o que lhe aparece. Nas lixeiras que fecharam muitas vezes mataram a fome. É também muito fino e furtivo, pelo que não serão estradas ou fogos o pior dos seus males. Já o mesmo não direi dos laços, venenos ou tiros de furtivos. Caso o homem não o mate propositadamente ele vai-se safando.

O lobo vai bem e recomenda-se. Ainda há coisa de uns 30 e tal anos um estudo feito pelos cientistas da época dava como certa a sua extinção em Portugal num prazo máximo de 20 anos. Já passaram outros 20 e o lobo em lugar de obedecer à sentença de morte desprezou-a, tendo mesmo aumentado a população.

Mas é bom para uns poucos ir-se falando na escassez do lobo, sempre dá para esses bem-estabelecidos e organizados do regime irem ganhando umas massas em estudos e projectos.

Anónimo disse...

O Anónimo anterior repete a léria do "lobos há por aí muitos".

É como eu tenho ouvido dizer em relação ao lince desde à muitos anos e o resultado é que se vê.

Pois é, falta-lhe alimento porque diminui drasticamente o número de cabeças de gado e porque há poucos ou nenhuns ungulados silvestres.
A tendência é para se diminuir o número de pastores, portanto o que é que fazemos? Pagamos aos pastores para lá andarem? Não me parece

Reintroduzimos corço e veado? Realmente é capaz de ser melhor ideia. Mas como é que isso se compatibiliza com uma paisagem cheia de caminhos excelentes feitos para as eólicas? Como é que se lida com o furtivismo? E com a perturbação que decorre da presença dos caminhos?

Tudo se resume ao seguinte: Portugal quer ou não ter uma população de lobo estável a Sul do Rio Douro?

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro último anónimo,
Não explica por que razão não lhe parece que se possa pagar para haver mais gado no monte.
Por outro lado passa como gato por brasas em relação à minha referência à diminuição de coelho.
Por fim, o problema do corço tem bastante pouco com o furtivismo e os caminhos: o corço precisa de matas de folhosas com umas clareiras com ervas e onde as houver ele lá está.
A questão de fundo é que ao identificar erradamente os factores de ameaça, o mais provável é adoptar acções de conservação inúteis ou pouco eficientes, como o controlo dos fogos e a distribuição de brochuras à população para passar a amar os lobos (como se alguém gostasse de ser tratado como um idiota a quem precisam devir uns meninos da cidade distribuir brochuras para saber o que é um lobo e como se relacionar com ele).
Como ter uma recuperação de habitat suficiente para ter populações de corço interessantes vai demorar muito tempo (embora esteja a caminho) a questão é mesmo a de ter gado no monte (primeira prioridade) e preencher os vazios a Leste, entre Leomil e Espanha, trabalhando convenientemente a conectividade, o que me parece bastante mais razoável e barato que andar a combater moinhos de vento.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Olá a todos

Eu tenho acompanhado com algum interesse as discussões sobre a conservação do lobo nos últimos post, apesar de achar sempre que há excessiva animosidade entre os intervenientes (autores de post e comentarios).

Para clarificar as coisas queria perguntar ao Henrique o que acha da construção do parque eólico no DOuro Sul? Segundo li algures o ICNB emitiu parecer negativo, por isso acredito que existam impactes negativos importantes sobre o lobo.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro anónimo,
Tenho intenção de clarificar num post o que penso da relação entre lobos e parques eólicos.
Quantro ao parecer negativo do ICNB, precisaria de o ler: eu não tenho opinião sobre este parecer cujo fundamento não faço a menor ideia, ainda para mais sabendo muito bem do que a casa gasta, sendo capaz dos pareceres mais sólidos, como das opiniões mais disparatadas.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Mesmo que os aerogeradores, para além dos míseros volts a preço de ouro, produzissem leite de loba para os lobinhos filhos de más-mães, e corços e borregos para alimentar alcateias, não deixam de ser o maior vómito que alguma fez se fez nas serras de Portugal.

Penso não ser necessário inventar efeitos nocivos sobre os lobos para se afirmar que os parques eólicos são um embuste (ver http://a-ciencia-nao-e-neutra.blogspot.com:80/2009/09/clusters-industrais-nas-renovaveis-23_30.html) e afearam por completo TODA a paisagem serrana em Portugal.

Miguel B. Araujo disse...

Há uns anos fiz um modelo de distribuição de lobo na Europa, que nunca cheguei a publicar, e que incluia uma série de variáveis clmáticas, densidade humana. Infelzimente não tinha dados de densidade de cabeças de gado qus seriam certamente uma boa variável. O modelos descartaram o clima como sendo uma variável importante e seleccionaram a densidade humana como única varíavel explicativa da distribuição actual.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Que seja esse o resultado não me surpreende, apesar de não saber que variáveis usaste e com que escala de detalhe.
Mas o problema de um modelo desse tipo é que não entra em linha de conta com as dinâmicas de paisagem e, sobretudo, não penso que não explica por que razão há áreas de baixa densidade humana sem lobos, com lobos em situação crítica e com lobos em situação confortável.
Aliás, como diz o Paulo Fernandes no primeiro comentário, se fizesses entrar no modelo a variável fogo, rapidamente irias ver que existe uma correlação positiva entre muitas áreas de fogo e a distribuição do lobo. Não porque elas tenham qualquer relação, mas simplesmente porque dependem de factores, que podem ser até diferentes, mas que em muitas áreas coincidem.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

A maior ameaça aos Lobos é a (in)actividade do ICN, agora na versão B!