quarta-feira, janeiro 27, 2010

A ambiente e as contas do Estado


A cada novo Orçamento de Estado procura-se uma análise ambiental.
Infelizmente essa análise costuma partir de dois princípios que estão por demonstrar:
  1. o Estado é o grande actor em matéria ambiental;
  2. o carácter ambiental do Estado pode ser aferido pela dimensão e conteúdo das rubricas estritamente ambientais.
Há muito tempo que penso que a abordagem da generalidade do movimento ambientalista ao processo de decisão pública é deficiente.
Comecei a ter mais consciência desse facto na discussão sobre as razões que levaram Cavaco Silva a optar pela ponte do Montijo em detrimento da ponte do Barreiro (uma decisão ambiental e territorialmente completamente errada).
A generalidade do movimento ambientalista protestou contra os interesses obscuros e coisas que tal. Eu procurei argumentar que a questão decorria da falência progressiva do Estado português (na altura não usei esta ideia de forma explícita, mas o que disse na altura é para mim enquadrável neste processo).
O que estava em causa era a necessidade que o Governo sentia de fazer a obra, mas ao mesmo tempo não agravar o défice, razão pela qual aquela ponte foi a primeira feita em project finance (que agora se identifica melhor como parcerias público privadas). Nesse tipo de projectos o risco é uma questão central e a certeza (técnica e de tráfego) associada à construção da ponte no Montijo (exclusivamente rodoviária) era muito maior que em relação à ponte (rodo-ferroviária) do Barreiro.
Mais tarde tentei por diversas vezes influenciar posições ambientalistas sobre projectos, nomeadamente de estradas, por via da discussão da sua fundamentação económica (incluindo as delirantes previsões de tráfego em que muitas se baseiam).
E repetidamente tenho chamado a atenção para o facto da opção por parcerias publico privadas depender cada vez menos do value for money que da necessidade política de obra sem agravamento do défice (na realidade só se justifica fazer parcerias publico privadas quando a eficiência da gestão privada de um projecto é superior ao custo suplementar do crédito, por via do risco menor do Estado, da remuneração dos capitais e por aí fora. Para isso acontecer todo o risco tem de estar do lado do privado porque é esse risco que o leva a ser o mais eficiente possível na aplicação dos recursos).
Ora o que tem acontecido é que nós fazemos parcerias publico privadas por razões políticas e orçamentais, sem que daí resulte outra coisa que não seja o aumento da capacidade de fazer obra (uma questão politicamente importante) porque atiramos com o pagamento para as calendas (quem vier atrás que apague a luz).
Não se pense que este processo não tem efeitos reais na nossa capacidade de decidir sobre a qualidade do nosso quotidiano.
Só para dar um exemplo, o garrote do endividamento que liquida toda a liberdade de escolha no investimento público, traduz-se no facto do Estado prescindir de usar os seus bens imobiliários para garantir qualidade do espaço urbano, transformando-os no que a cidade precisa, para, pelo contrário, passar a patacos, os quartéis nas melhores localizações, os hospitais que abandona, as escolas de que não precisa, as lisnaves, as siderurgias, as cufs que tem nas mãos.
A fraude do Pólis, um programa de especulação urbana disfarçado de qualificação ambiental é, desse ponto de vista, paradigmático.
Por isso o Estado se entretém a vender licença, isto é, autorizações em sítios e circunstâncias que não o aconselhariam, com o argumento do desenvolvimento económico.
Desse ponto de vista, este Orçamento do Estado é tenebroso para a política ambiental do país, mesmo que tenha benefícios fiscais para os vidros duplos e para o isolamento dos telhados, que é bom, sem dúvida, mas é muito menos que dar um chouriço em troca de uma vara de porcos inteira.
A dívida do Estado é a maior ameaça ambiental que o país tem.
henrique pereira dos santos

8 comentários:

José M. Sousa disse...

Concordo com a última frase. Quanto às parcerias público-privadas elas existem não tanto por causa do défice, mas para transferirem recursos para grupos organizados que parasitam em torno do Estado. É a ideia do "Estado Predador"
O Tribunal de Contas tem publicado relatório atrás de relatório denunciando ao mau negócio para o Estado das PPP. Veja-se, por exemplo, a entrevista de um seu juiz jubilado

Henrique Pereira dos Santos disse...

A captura do Estado pelos grupos de interesse é uma das consequências da sua falência, é mais uma consequência que uma causa.
henrique pereira dos santos

José M. Sousa disse...

«[...]and a predator state, intent not on reducing government but rather on diverting public cash into private hands»

"The Predator State"

José M. Sousa disse...

Diria que vai a par. Desmantela-se o Estado sob o pretexto da sua ineficiência para, deste modo, transferir recursos para uns poucos.

José M. Sousa disse...

http://www.predatorstate.com/

Eduardo Freitas disse...

Quem não tenha ouvido há pouco Abel Mateus na SIC-N no "Negócios da semana", perdeu uma excelente oportunidade para perceber por que razão a "modernidade energética" de Sócrates e Pinho, é um exemplo acabado - e conseguido - de estratégia para o empobrecimento do país em ritmo acelerado especialmente dirigido para tornar mais pobres os que já são pobres.

Eduardo Freitas disse...

Caro Henrique Pereira dos Santos,

Concordo, não sei se pela primeira vez, consigo. «A dívida do Estado é a maior ameaça ambiental que o país tem.»

Mas a ameaça não é apenas ambiental. Diz respeito a problemas comezinhos como conservar o emprego, conseguir pagar a prestação ao banco, ter de pedir emprestado para conseguir servir a dívida acumulada ao mesmo tempo que o seu stock continua a aumentar, etc, etc.

Nuno disse...

"Mas a ameaça não é apenas ambiental."

É de facto total a ameaça, como dizia um cartoon do Luis Afonso: "Acha que o país não afunda na crise por causa do desenrascanço dos portugueses? Não. Só flutua porque temos muita cortiça."