"Embora não o tenha confirmado pessoalmente, sempre ouvi dizer que Álvaro Dentinho, um dos mais criativos arquitectos paisagistas das primeiras gerações, se insurgia de vez em quando contra a proibição de urbanizar Monsanto."
Começa assim o capítulo que escrevi sobre as cidades e paisagem.
Na realidade este parágrafo está desactualizado quando o publicar.
Ontem cruzei-me com Álvaro Dentinho na rua e resolvi esclarecer a dúvida confirmando que de facto na sua opinião a não urbanização de Monsanto foi um erro.
Nunca trabalhei com Álvaro Dentinho (penso mesmo que seria impossível) e cruzei-me com ele várias vezes mas quase sempre em contactos relativamente curtos (por vezes, como é costume com Álvaro Dentinho, com algum tumulto).
Gosto especialmente de contar a história de uma caminhada da Gulbenkian para sua casa, meio à procura de um táxi, meio deixando correr a conversa, que nos levou à porta do Corte Inglés. Notando o cansaço de Álvaro Dentinho propus-lhe atalhar caminho pelo Corte Inglés, subindo dois lances pelas escadas rolantes para seguirmos pelo cimo do Parque Eduardo VII, vencendo com pouco esforço a diferença de cotas. Como se lhe tivesse picado um lacrau, respondeu-me bruscamente que se recusava terminantemente a entrar numa feitoria espanhola. Diplomaticamente, e ajudado com certeza pelos espíritos que velam por pessoas como Álvaro Dentinho, respondi-lhe mansamente que percebia o seu ponto de vista, que no entanto só era válido se fóssemos dar dinheiro aos espanhóis e o que íamos fazer era gastar-lhes o dinheiro usando as suas escadas rolantes sem pagar nada. Sorriu, evidentemente cansado, e lá respondeu que vistas as coisas assim....
Percebo que o meu fascínio pela genialidade deste homem não seja partilhado por muita gente.
Ainda ontem quando me perguntou o que estava eu a fazer e lhe respondi que trabalhava na gestão da biodiversidade e na conservação da natureza, matéria que sabia que ele não apreciava por aí além, respondeu primeiro hesitante que não era bem assim, mas rapidamente disse assertivamente: "claro que sou um inimigo da natureza, evidentemente".
Penso que é aqui que nasce o meu fascínio, na sua capacidade de dizer coisas certas procurando a forma de as fazer parecer erradas, para obrigar o interlocutor a pôr o cérebro a trabalhar.
A fotografia de cima é de Miguel Silveira Ramos, faz parte da galeria da biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian e mostra num simples muro a capacidade criativa de Álvaro Dentinho, na forma como remata o encontro dos espaços exteriores com o passeio, a mesma capacidade criativa que o levou a criar os quadrados do pavimento do Tribunal de Rio Maior que são o modelo que Viana Barreto e Ribeiro Telles vão depois usar no seu jardim da Gulbenkian (O jardim de Rio Maior, de Álvaro Dentinho e Marques Moreira, se não me engano, foi estupidamente mutilados há pouco tempo, estou convencido de que sem que as pessoas que sobre isso decidiram tivessem consciência da opção cultural que fizeram ao substituir uma legítima obra de um mestre por um quadro de fancaria comprado na feira do relógio, de onde aliás se pode facilmente ir apreciar in loco o muro, e o conjunto a que está associado, fotografado lá em cima).
henrique pereira dos santos
2 comentários:
Caro Henrique,
Então, afinal, qual era a coisa que lhe pareceu certa no comentário aparentemente errado de Álvaro Dentinho?
O ser "inimigo da natureza" enquanto um ideal de natureza pristina e não intervencionável (não gerível)?
Cumprimentos,
Manuel Silva
Caro Manuel Silva, seguramente Álvaro Dentinho nunca defenderia a natureza pristina que chocasse com o pão dos seus filhos (estou a parafrasear uma intervenção que uma vez lhe ouvi).
Mas a verdade é que "como animais de clareira que somos, pelo menos desde que nos tornámos pastores e agricultores sedentários, uma das grandes actividades em que gastamos recursos é em no alargar de clareiras, combater as matas e tornar o mundo mais favorável às nossas actividades".
Neste parágrafo estou a citar-me a mim próprio (um dia procurarei reencontrar um comentário de Nietzsche sobre a citação de si próprio e que me lembro de ser bem interessante mas não sei reproduzir agora porque já o li há muitos anos, numa altura em li vários livros dele,sem perceber metade, claro, e agora nem sei onde procurar).
henrique pereira dos santos
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