terça-feira, fevereiro 09, 2010

A falta que faz o escrutínio público



"Nas áreas classificadas como RAN (reserva Agrícola Nacional) deve ser mantida a vegetação natural existente, se o proprietário assim o entender".

Garantem-me que isto está escrito no parecer de uma Câmara Municipal.
Não me custa acreditar porque vi dezenas (centenas? milhares?) de pareceres com o mesmo tipo de problemas.
O que este tem de útil é ser tão condensado e tão claro na demonstração do que pretendo.
A mais completa ignorância técnica (manutenção da vegetação natural na Reserva Agrícola Nacional?), a mais completa ausência de sentido de serviço público (se o proprietário quiser? Se é uma questão de gosto do proprietário, a que propósito o Estado comenta? se é uma questão de cumprimento da lei, o que está ali a fazer se o proprietário quiser?), a mais completa ausência de responsabilidade dos níveis hierárquicos pelos quais terá passado o parecer e, o que é mais que tudo, o tratamento de um parecer (que é o veículo de expressão do entendimento do Estado sobre a conformidadade legal de uma determinada pretensão) como se fosse uma mera opinião de café, uma expressão de gosto pessoal do técnico (nos pareceres mais sofisticados deste tipo aparece com frequência a ética, como se a ética não fosse uma questão irredutivelmente pessoal que não pode ser critério de decisão da administração pública).
Não se pense que este é um problema menor, este é provavelmente um dos maiores problemas de competitividade em Portugal, com uma administração refém dos interesses do Governo nas questões maiores (a administração rege-se pela Lei e não pelo programa do Governo) e ao Deus dará nas decisões quotidianas que levam os cidadãos e as empresas a perder horas sem fim a desembrulhar pareceres idiotas como este (este, de tão idiota, será dos mais fáceis de desfazer, mas se envolver, por exemplo, a conservação da toupeira de água, com toda a incerteza associada ao assunto e o reduzido número de pessoas que conseguem discutir o assunto de forma aprofundadamente técnica, pode resultar em anos de discussão, projectos e estudos).
Não se pense que isto se resolve com melhores técnicos (encontrei na administração dos melhores técnicos que conheço, embora também tenha encontrado dos piores, o difícil muitas vezes é distingui-los em tempo útil) apesar de eu saber que como diz um provérbio russo "cabeça que não tem juízo não dá descanso às pernas".
Isto resolve-se (lenta e dificilmente) com escrutínio público sistemático e responsabilização real pelos actos praticados pelos funcionários no âmbito das suas funções.
Mas temo que com a cultura de tratamento da informação em Portugal, sistematicamente procurando evitar o olhar do outro, isto vá durar anos e anos.
E com custos elevadíssimos para o movimento ambientalista: são pareceres destes que minam qualquer esforço sério de discussão racional da importância de figuras legais como a Reserva Agrícola Nacional.
Já agora, antes que o Governo caia e que haja novas eleições, se ainda não assinou, assine estas petições (a primeira sobre a Reserva Agrícola Nacional, a segunda uma quixotesca tentativa minha de limitar a intervenção do Estado numa sociedade profundamente anti-liberal):

Fundo Florestal Permanente (obrigado aos outros 118 moicanos que acreditam que os fundos autónomos de sectores maioritariamente privados não devem servir para financiar o Estado)
henrique pereira dos santos

3 comentários:

joserui disse...

Se estamos em maré de provérbios olhe este árabe: Se o pai toca tambor, não se admire que os filhos dancem.
O exemplo vem principalmente de cima — mas já não me acredito na tese muito em voga que vem exclusivamente de cima. Isto passa pela "accountability" que falei antes. Não há.
Assinei a primeira há tempos e divulguei. Porque não explica melhor a segunda? Não há post sobre isso? -- JRF

Francisco Barros disse...

"(obrigado aos outros 118 moicanos que acreditam que os fundos autónomos de sectores maioritariamente privados não devem servir para financiar o Estado)"

121 moicanos sff! :P

Estou um bocadinho farto que os orçamentos de alguns serviços públicos sejam lançados sempre por baixo a fazer conta com o ffp para tapar "buracos".
Estou um bocadinho farto de esperar 3 ou 4 meses pelas minhas ajudas de custo (que na maioria das vezes nem se referem a época de incendios) enquanto funcionáro público, à espera do dinheiro do ffp, dinheiro que nem sei se é do estado.
Estou um bocadinho farto de falta de transparência!

Francisco Barros

Miguel B. Araujo disse...

Pois, não sei se o escrutínio público, por si, resolve isto pois há limites para o que os cidadãos podem fazer em matéria de escrutínio. Que mais não seja por falta de tempo. Mas o que seria deveras importante é que disparates como este tivessem consequências na progressão na carreira ou mesmo continuidade das funções que estes técnicos desempenham na administração. Se tivessem consequências, acredito que o escrutínio fosse mais eficaz.