terça-feira, fevereiro 16, 2010

O prazer de matar

O título deste post é um dos argumentos mais usados contra a caça, sendo supostamente uma sólida base ética para eliminar a caça.
Simplesmente trata-se de um argumento que não se pode chamar ad terrorem porque não visa criar medo nos outros, mas não anda longe porque visa impedir a discussão ética numa base racional: a discussão dos sistemas de valores em causa e a sua aplicação a situações concretas.
Na verdade o que é relevante na caça, para muitos dos seus participantes, não é o seu resultado mas o caminho que se percorre (o mesmo se pode dizer da tourada e de muitas outras actividades humanas). Esquecer isto procurando pôr nos outros sistemas de valores que não perfilham não é sério.
Tive um dia destes uma troca de mails com Pedro Melo, o proprietário da única reserva de caça que proíbe a caça a migradoras. Pedro Melo ponderou acabar com essa especificidade porque perde dinheiro com isso e, no caso das migradoras, não vê grande vantagem de conservação porque entende que a maioria vai ser caçada pelos vizinhos do lado.
E nessa troca de mails Pedro Melo refere: "se por exº cada caçador só abatesse uma perdiz por dia e dispendesse o resto do dia a caçá-las utilizando cartuchos sem chumbo: á partida parece um disparate, mas pergunto-me se os caçadores não aceitariam de bom grado caçar mais dias, aproveitar os prazeres da caça que são muitíssimos, dando em troca o sacrifício de trazer para casa uma só peça". Parece-me que está feita a demonstração de que o que motiva a caça, pelo menos para alguns, não é morte dos animais em si, mas toda uma actividade ancestral de relação com o campo. Poderia dar o meu exemplo, que nunca fui caçador nem tenho a menor vocação para caçador, mas houve um ou dois Verões em que andei aos passarinhos com uma pressão de ar e uns primos meus (actividade ilegal, mas evidentemente nunca detectada. Na altura nem sei se sabia que era ilegal, mas é possível que soubesse). Quando se feria um pássaro a regra era matá-lo o mais rapidamente possível para evitar sofrimento, de maneira geral torcendo-lhe o pescoço. Essa era sem dúvida a parte que mais me custava e não tinha nenhum gosto nisso. Os passarinhos fritos não eram maus mas não era isso que me fazia por ali andar. O que verdadeiramente me motivava era ter um motivo para andar pelo monte (noutras alturas ia pastar as vacas de um amigo meu, era também um bom motivo. A actividade era substancialmente diferente, embora me fosse igualmente prazenteira), era procurar, era conseguir, era ser mais esperto, mais silencioso, mais hábil que o pássaro, mas sobretudo ser capaz de fazer coisas que à partida eu diria que não sabia ou não era capaz. Pode-se discutir os sistemas de valores envolvidos nisto, mas nunca a partir da ideia de que todos os que caçam o fazem pelo prazer de matar.
Alexandre Vaz diz: "Ou se acredita que a vida é um valor que deve ser preservado ou não. Ou se acredita que todos os seres vivos se devem subordinar aos interesses dos humanos ou não."
Vejamos as consequências destes da adopção destes dois valores, começando por discutir o primeiro. Depois avaliemos a caça no quadro das actividades humanas, no contexto de um sistema de valores que adoptasse este dois princípios.
A primeira questão é a de saber o que se define como o valor da vida. A discussão ética existe quando se confrontam dois valores e é preciso optar por prescindir ou diminuir um deles. Por exemplo, no caso da praga de ratos que refere Alexandre Vaz, o que está em causa não é apenas a discussão do valor da vida de cada rato, mas o facto da expansão incontrolada de ratos implicar perda de muitas outras vidas (sentientes e não sentientes). É portanto mais que duvidoso que o valor da vida esteja incluído no valor absoluto da vida de cada indivíduo (por isso é eticamente razoável matar em legítima defesa).
O que tenho vindo a dizer é que a caça pode ser um instrumento de conservação de muitos indivíduos que beneficiam das acções de gestão de habitat sem que sejam caçados, o que inclui muitos indivíduos de espécies não cinegéticas, borboletas, por exemplo, e muitos indivíduos das espécies cinegéticas que passam a ter mais alimento e condições de reprodução e que nunca chegam a ser caçados por homens (muitos são caçados por outras espécies, é aliás esse o objectivo das acções de conservação que visam aumentar a disponibilidade alimentar dos predadores de topo).
A ideia de que preservar o valor da vida é preservar a vida de cada indivíduo é uma ideia perversa, fortemente prejudicial para a conservação da vida, entendida não apenas como a vida de cada indivíduo mas também como o processo que permite a reprodução dos sistemas naturais.
Quanto à questão do antropocentrismo, o segundo valor de que fala o Alexandre, sim, eu e a grande maioria das pessoas deste mundo somos antropocêntricos, não percebendo por que razão a pequena minoria que pretende ter um quadro de valores diferente acha que tem o direito de o impôr à esmagadora maioria das outras pessoas.
Mas ainda que se parta de uma visão biocêntrica, a caça é das menores preocupações éticas de quem parte de um sistema de valores que postula a igualdade entre as espécies. Partindo do pressuposto de que todas as espécies estão num plano de igualdade, o primeiro problema não é o da caça de indivíduos que viveram sempre livres e sem contacto com o homem (e que tanto podem ser mortos por uma pessoa, como por outro predador qualquer) mas sim o problema da posse de indivíduos (por isso o problema da escravatura é um problema ético de primeiríssima grandeza, inaceitável em qualquer circunstância, ao contrário do problema da morte de terceiros que aceitamos em dezenas de situações, incluindo na guerra). O que significaria que partir de um sistema de valores biocêntricos deveria levar quem adopta estes valores a ser ferozmente anti-posse de animais. Sobretudo dos que são tratados sem qualquer respeito por aquilo que seria o seu comportamento natural, quer sejam postos em gaiolas para produzir ovos e leite, quer estejam nas nossas casas para que lhes façamos festinhas e nos compensem as carências afectivas, e não anti-actividades que respeitam a essência e a liberdade dos indivíduos, mesmo que no final os tratem violentamente (como na caça e na tourada).
Por alguma razão Jane Goodall (em cima, na fotografia), absolutamente insuspeita deste ponto de vista, afirmou que lhe parecia bem menos aceitável ter animais domésticos em casa que ter touradas (mesmo que ela seja, como penso que é, contra as touradas).
A ética é uma coisa bem mais complicada que frases soltas de belo efeito. E por isso os argumentos éticos sobre a caça têm de ser um bom bocado mais sólidos que os que por aqui têm aparecido.
henrique pereira dos santos

12 comentários:

Henk Feith disse...

O antropocentrismo é a variante humana do egocentrismo que caracteriza todas as espécies. Se calhar, de todas as espécies, o Homem é o menos egocêntrico de todas, tendo incorporado noções éticas sobre o bem estar de outras espécies na sua motivação e atuação, algo praticamente inexistente nestas outras espécies.

Quando o egocentrismo de uma espécie se desenvolva num impacte que ameaça o bem-estar da nossa espécie, ninguém no seu pleno juizo contraria o nosso direito de de fazer prevalecer os nossos interesses. Isto vai desde um simples mata-moscas até o abate de um predador de topo que ameaça a vida de pessoas.

A real questão ética, se assim entender, não é o excesso de antropocentrismo da raça humana, mas sim a dimensão do impacto da população humana nas condições de vida e sobrevivência de grande parte das outras espécies existentes na Terra. E nesta perspectiva, há atividades relacionadas com a exploração de animais bem mais condenáveis em termos éticos que a caça.

Henk Feith

trepadeira disse...

Meu caro Henrique
Para passear no campo só fazem falta pernas e vontade,quando muito bonóculos.Nunca uma arma e matar animais.
Não percebo quem impõe a quem.Parece-me que caçadores serão pouco mais de 1% da população.
Não conheço nenhum agricultor que aceite,de livre vontade,a caça.Nem mesmo alguns que são caçadores.
A criação de animais em baterias,surgiu por ganância e,não por necessidade.
Vou tentar copiar para aqui algumas frases de um artigo escrito por Raimon Guitart,Laboratório de Toxicologia da Universitat Autónoma de Barcelona e Rafael Mateo,Instituto de Investigacion en Recursos Cinegéticos,na revista Apuntes de Ciencia e Tecnología,nº21 de Decembre de 2006.
"Sin embargo,perdices,faisanes,y otras aves cinegéticas son igualmente vitimas del plumbismo:un reciente estudío en el Reino Unido reveló que el 4,5% de sus perdices pardillas (perdix perdix)sofria de plumbismo.".
"En España el plumbismo ha sido descrito en ocho diferentes especies de rapaces de habitats terrestres,entre las que destacan el áquila real (aguila chysaetus)y la imperial iberica (A. adalberti),el buitre comun (Gyps fulvus)y el búbo chico (Asio otus).".
"...aunque los perdigones y las balas se retiren antes de cocinar...deja en la herida un rastro de partículas invibles del metal.Métodos modernos de detección lo han puesto de manifesto...".

RECOMENDO VIVAMENTE A LEITURA INTEGRAL DO ARTIGO.

Esclarecerá muitas das questões.

Saudações cordiais,
mário

joserui disse...

não percebendo por que razão a pequena minoria que pretende ter um quadro de valores diferente acha que tem o direito de o impôr à esmagadora maioria das outras pessoas
A discussão ética é muito interessante, mas fugiu-lhe a boca para a verdade. Também nunca percebi isto, se bem que não sou tão optimista como o Mário — 5% de caçadores deve estar mais de acordo com a realidade.
Gostava de saber quando é que o Portugal naturalizado vai ser também para os outros 95% da população.
De resto, nada de novo. O importante é o pagode. O convívio. As tainadas. No fim são abatidos milhares de animais? É uma pena, e tal como ao Henrique na sua infância, custou-lhes muito. Também lhes custa abandonar os cães e posteriormente envenená-los. Invadir o país todo, também custa. Ameaçar terceiros é o que lhes custa mais. Mas tem de ser, a vida é cruel. -- JRF

joserui disse...

tendo incorporado noções éticas sobre o bem estar de outras espécies na sua motivação e atuação, algo praticamente inexistente nestas outras espécies.
O bem estar? Não será o inverso muito mais frequente, ou natural se preferir? Também é algo praticamente inexistente nas outras espécies. E nem por isso serve de exemplo.
Quanto ao bem estar da nossa espécie, tenho dúvidas se o antropocentrismo signifique isso também. A esmagadora maioria dos humanos identifica-se muito pouco com os outros não sei quantos mil milhões. Exemplos abundam desde os descobrimentos e de muito antes.
Por fim, sem dúvida que há actividades muito piores. Mas pior do que isso é o insuportável relativismo moral da época em que vivemos. -- JRF

Anónimo disse...

O antropocentrismo tem muito que se lhe diga e pode-se manifestar em muitos graus. Há muitos caminhos possíveis entre a pessoa que usa casacos de peles, tem um 4x4 com 4000cc a gasolina e viaja no Carnaval para Aspen para beber chocolate quente numa esplanada com vista para as montanhas e as outras que não tomam antibióticos, não usam sapatos de cabedal, não têm carro e não matam melgas e mosquitos...
Eu mais do que tentar impôr aos outros o que quer que seja procuro ajustar o meu comportamento de acordo com a minha própria consciência. E por falar nisso, parece-me relevante sublinhar que mesmo que se tenha uma ética biocêntrica que é importante não perder de vista que o Homem tem (para bem e para o mal) uma consciência, e isso reveste o acto predatório de uma especificidade muito própria.

Quanto ao que o Henrique parece considerar o aspecto central do prazer da caça, sugiro a leitura de um artigo escrito por mim há já bastantes anos e que considero pertinente neste contexto:

http://naturlink.sapo.pt/article.aspx?menuid=10&cid=12938&bl=1&viewall=true#Go_1

Saudações carnavalescas

Alexandre Vaz

Anónimo disse...

Só mais uma coisa: a discussão sobre a detenção de animais de companhia (que faz parte de um assunto muito mais amplo que inclui toda a domesticação animal) é também uma problemática interessantíssima cujo debate eventualmente merece honras próprias.
Eu tenho um cão, e objectivamente não vejo qualquer conflito entre isso e o que defendi anteriormente. Não percebo também a comparação que possa ser feita com as touradas ou a caça?

E não concordo nada que a ética seja intrinsecamente complicada, e a referência do Henrique a "frases soltas de belo efeito" é uma carapuça que não me serve.

alexandre vaz

Henrique Pereira dos Santos disse...

Está enganado, Alexandre, não ponho a tónica nos prazeres da caça. Os caçadores sim, põem, e como não tenho vocação para julgar os prazeres dos outros, limito-me a procurar perceber se há alguma questão ética de fundo que me impeça de aceitar que as pessoas devem ser livres de ter esse prazer.
Do ponto de vista da conservação a caça interessa-me tecnicamente: pode ser um bom instrumento sustentável de gestão de recursos.
O resto interessa-me pouco.
Mesmo este texto sobre ética foi escrito à enésima referência a uma ideia perversa que é apresentada como sendo eticamente indiscutível.
henrique pereira dos santos

Henk Feith disse...

Caro José Rui,

Ao comparar o relativismo moral e o absolutismo moral, para mim o último é incomparavelmente mais insuportável que a primeira.

Henk Feith

joserui disse...

Caro Henh Feith, isso até era escusado ser dito, já se tinha reparado. De qualquer modo, o obsolutismo moral apresentado como antónimo do relativismo moral — que para mim representa uma decadência social que pode ser observada por exemplo no comportamento deste indivíduo Sócrates que nos governa e mais interessantemente ainda na cáfila que vegeta à sua volta —, é enganosa.
Há acções certas e acções erradas, valores. As acções que estão certas ou erradas para os outros, também estão certas ou erradas para mim. Qualquer código moral que não contemple isto como mínimo, vale zero. Mas o zero é hoje muito valorizado e assim se chegou onde chegou e não se podia ter chegado a outro lado. É universalismo moral, não absolutismo. E a última frase, determinismo.
Mas ninguém nasce assim ou assado. Há um percurso, que volta e meia também se chama educação. Consta que acaba com a morte. JRF

Anónimo disse...

"limito-me a procurar perceber se há alguma questão ética de fundo que me impeça de aceitar que as pessoas devem ser livres de ter esse prazer"

Não se poderá dizer o mesmo da pedofilia?

Claro que há. Os animais (tal como as crianças) nem sempre conseguem fazer valer os seus direitos autonomamente.

Alexandre Vaz

Henrique Pereira dos Santos disse...

Alexandre,
No meu sistema de valores há diferenças substanciais entre crianças e animais (e respectivos direitos).
Da mesma forma que existem diferenças substanciais entre abusos de crianças que não se podem defender e o jogo ancestral de predador e presa (que evidentemente não é indefesa).
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

"No meu sistema de valores há diferenças substanciais entre crianças e animais (e respectivos direitos).
Da mesma forma que existem diferenças substanciais entre abusos de crianças que não se podem defender e o jogo ancestral de predador e presa (que evidentemente não é indefesa)."

Que fique claro que para mim crianças e animais não são a mesma coisa. Acho é que ambas devem ter direitos (diferentes).
Então e os direitos humanos? As pessoas à partida são todos iguais e não são indefesas. Porque é que precisamos deles? Apenas para nos defenderem de extra-terrestres?

Alexandre Vaz