terça-feira, março 23, 2010

Glorificando a caça

A pequena mancha preta ao meio é uma javalina, cujas duas crias estão tapadas pela vegetação e que calmamente se deixa estar tempos infindos por ali, a descoberto, demonstrando o seu conforto nesta aprazível margem de rio
Num comentário a este post disse-se que eu estou sempre a glorificar a caça. Não sendo verdade, eu não quero que o comentário deixe de ser verdadeiro, pelo menos em parte, de maneira que resolvi fazer um post a glorificar a caça para dar razão ao comentador.
A questão decorria de uma série de fotografias, acompanhadas de comentários, em que eu criticava a fúria "encercadoura" que grassa por algumas partes do Alentejo.
Parte dessa fúria de cercar (ou se quisermos, de viver em cercados, porque os donos se colocam do lado de dentro da jaula, numa espécie de jardim zoológico ao contrário) parece-me ser uma reacção ao falhanço do Estado em assegurar o equilíbrio dos diferentes interesses das pessoas.
Na realidade, por razões ideológicas e outras, os donos de terras no Alentejo foram desconsiderados na definição dos equilíbrios de interesses, e o Estado demitiu-se da sua função reguladora, permitindo a invasão de terras por caçadores, motoqueiros, ambientalistas, curiosos, ladrões de gado, todos e quaisquer uns.
Os direitos ancestrais de acesso às propriedades, sobretudo o direito de as cruzar sem pagar portagem, especialmente importante para rebanhos imensos, mas também para trabalhadores, migrantes ou não, caminhando a pé ou em animais, caçadores, almocreves, etc., deixaram de ser usados para as funções e nas condições que os fizeram nascer e passaram a ser usados para abusos variados na forma e feitio, sem que o Estado se tenha preocupado em garantir uma adequada defesa dos direitos de propriedade.
Os proprietários contra-atacaram vedando propriedades, umas vezes porque tinham razões económicas para o fazer, sobretudo a criação de gado ou a caça grossa, outras vezes usando esta justificação para simplesmente retomarem o controlo das suas propriedades.
Mais uma vez o Estado se demitiu da sua função reguladora, mudou de campo, e permitiu toda a espécie de abusos na vedação de propriedades (era sobre esses abusos o post de que este é uma sequela).
O investimento na caça começou a surgir numa altura em que a criação de porcos de montanheira não era ainda possível (como não foi durante décadas, por causa da peste suína africana) e os rendimentos alternativos estavam em queda acentuada em consequência da nossa adesão à Comunidade Europeia.
O resultado é hoje verificável, por exemplo, na propriedade cuja vedação, da forma como foi feita, critiquei no post anterior.
Nos cerca de três mil hectares da propriedade em questão existirão mais de mil comedouros, não sei quantos pontos de água, abrigos com fartura e gestão orientada para a produção de caça, quer miúda, quer graúda. Ver coelhos, lebres, perdizes, javalis não tem qualquer dificuldade, como não terá ver veados.
Para fazer o mesmo (mais uns cercados para deposição de carcaças que custam dez reis de mel coado) a LPN tem um projecto aprovado pelo LIFE, para lince e o abutre negro no montante de 2,6 milhões de euros nos nossos impostos.
Vale a pena discutir o que faz sentido: ir directo aos impostos dos contribuintes para financiar projectos pontuais, limitados no tempo e insustentáveis, ou glorificar a caça que permite fazer o mesmo, de forma consistente e sustentada a prazo?
Dir-se-á que tal como a caça é gerida há grandes problemas ambientais, há demissão do Estado na fiscalização e regulação da actividade e outras coisas que tal.
Inteiramente de acordo.
Eu até acho que mesmo para a caça grossa não há vantagem em tê-la toda cercada, mais ou menos domesticada, sobretudo agora que a actividade se expandiu tanto que muitos fazem gestão de habitat e das populações e portanto, mesmo sem cercados, é possível garantir bons troféus nas propriedades. Mas isto sou eu a falar que não sou gestor da propriedades e posso ter ideias erradas sobre a dimensão do furtivismo, do todo o terreno e de outros problemas mais que as cercas ajudam a controlar.
Mesmo com cercas, não seriam mais bem aplicados os 2,6 milhões a compatibilizar a actividade com a conservação? A garantir cercas permeáveis, a garantir passagens de pessoas, a garantir fiscalização séria do controlo de predadores e por aí fora?
Sim, eu sei, o projecto prevê a parceria com as organizações de caçadores e os proprietários. Mas a eficiência e a sustentabilidade é a mesma partindo da actividade para a conservação ou partindo da conservação para a actividade?
Eu tenho muitas dúvidas.
Agora sim, podem comentar um texto de glorificação da caça.
Da caça enquanto instrumento de sustentabilidade da gestão de populações e habitats, não da caça enquanto actividade em si, matéria que se discute noutro contexto.
henrique pereira dos santos

14 comentários:

Anónimo disse...

E porque carga de água deve ser a gestão dos terrenos da LPN insustentável? Não sei se será ou não. Imagino que dependa da capacidade desta organização em criar um modelo de gestao viável mas não entendo o fatalismo a priori de que tal acontecerá.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Penso que há um equívoco.
O que é insustentável é o projecto life, porque é um projecto a tempo determinado e sem continuidade na libertação de recursos, não é a gestão dos terrenos da LPN (que aliás não são o foco principal do projecto, que conta com os terrenos de terceiros).
Na verdade eu nem sei como são geridos os terrenos da LPN, portanto não faço a menor ideia da sua sustentabilidade e do seu saldo para a biodiversidade, mas parto do princípio de que têm um saldo positivo.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Henrique, pela parte que me toca muito obrigado.

Quero apenas acrescentar uma ou duas coisas. Faz lá as contas e vê lá quanto é que custa cercar um terreno de 3000ha com uma vedação daquelas.
Agora diz-me lá quantas perdizes, coelhos, lebres, javalis e veados é preciso vender para que se pague esse investimento.
Eu digo-te. É preciso lavar dinheiro sujo para que muitas reservas se tornem viáveis.

Dizes que no interior das reservas de caça que é fácil ver caça. Mas será que tens a noção de que muitas vezes estamos a falar de animais domésticos que se aproximam dos humanos à espera de alimento? Será que isso pode satisfazer o prazer de um caçador a sério (seja ele qual fôr)?
E então predadores? Nessa mesma vedação que referes já eu vi penduradas em tom provocatório os cadáveres de aves de rapinas nocturnas (que são protegidas por lei).

Lamentas a demissão do papel fiscalizador do estado, mas estás sempre pronto a defender um estado mais leve e não dizes de onde é que deveriam vir os recursos que tornassem possível uma fiscalização efectiva.

Alexandre Vaz

Anónimo disse...

Realmente é estranho a LPN receber 1 milhão de contos (lifel e lifell) para executar um trabalho que os caçadores há muito executam, com eficácia, às suas custas (recuperar o coelho). Mesmo a interessante ocupação de se andar a pedir às pessoas para não fazer mal ao lince (e os alimentadores para aves necrófagas) valerá assim tanto dinheiro?

Talvez o verdadeiro motivo que leva os caçadores a não pedincharem dinheiro público (tão escasso para muitos como o Quebra-ossos, tão abundante para outros como as ratazanas de esgoto) será vergonha e bom senso, algo que desde há alguns anos falta à LPN e às outras associações que se transformaram em agências de emprego com ligações ao poder socialista.

Anónimo disse...

Realmente é estranho a LPN receber 1 milhão de contos (lifel e lifell) para executar um trabalho que os caçadores há muito executam, com eficácia, às suas custas (recuperar o coelho). Mesmo a interessante ocupação de se andar a pedir às pessoas para não fazer mal ao lince (e os alimentadores para aves necrófagas) valerá assim tanto dinheiro?

Talvez o verdadeiro motivo que leva os caçadores a não pedincharem dinheiro público (tão escasso para muitos como o Quebra-ossos, tão abundante para outros como as ratazanas de esgoto) será vergonha e bom senso, algo que desde há alguns anos falta à LPN e às outras associações que se transformaram em agências de emprego com ligações ao poder socialista.

Anónimo disse...

Essa teoria das ligações das ONGA ao PS é interessante. Pergunto-me o que acontecerá se um dia o PSD chegar ao poder? Será que vão todas à falência?

Anónimo disse...

Seria interessante investigar-se para onde efectivamente vão os milhões de euros que associações como a LPN e congéneres recebem das empresas públicas e dos estafados cofres do governo da nação. Caso este simples exercício de transparência continue a não se verificar, será de todo esperar que a opinião pública considere as ADA como parte do problema das finanças públicas.

No site da LPN aparece alguma informação sobre o Projecto LIFE Lince Moura/Barrancos. Como algum do dinheiro entregue à LPN saiu-me do bolso, será que não poderiam disponibilizar informação sobre as verbas entregues a cada um dos membros do dito projecto, como paga do seu valioso trabalho a favor da recuperação do coelho? Até pode ser que muitos dêem o seu contributo sem retribuição pecuniária, contudo enquanto a opacidade perdurar, esses altruístas da recuperação das espécies nunca serão publicamente reconhecidos.

Trata-se apenas de pretender saber, em concreto, para onde vai o dinheiro. Será assim tão mesquinho, da minha parte, querer saber QUEM recebe QUANTO, sendo eu um efectivo financiador involuntário?

Anónimo disse...

Mas será que já se deu ao trabalho de consultar o relatório e contas (que são públicos) das associações que refere?

Henrique Pereira dos Santos disse...

Alexandre,
Nunca me viste defender um Estado fraco nas suas funções essenciais, bem pelo contrário, há por aí bastantes posts em que defendo um Estado forte nessas funções essenciais, como seja o monopólio da violência legal, que inclui as forças armadas e todas as forças policiais e de fiscalização. E o dinheiro para isso deve vir dos impostos.
É exactamente por isso que defendo um Estado ligeiro noutras coisas, para que os recursos do Estado cheguem para o que ninguém pode fazer em vez do Estado.
Torcer a argumentação dos outros para teres razão não te dá razão, apenas põe em evidência a seriedade que pões na discussão.
Como disse no post e mais uma vez finges não ler, o controlo de predadores é um problema que considero sério e de cuja fiscalização o Estado se tem demitido, portanto não vale a pena atribuir à caça o que resulta da combinação entre a falta de juízo de alguns gestores e da falta de fiscalização do Estado. Pode fazer-se, e há muito quem faça, gestão de caça sem controlo de poredadores ou com controlo de predadores generalistas quando se justifica (uma matéria discutível tecnicamente mas que é uma das medidas do plano de acção do lince, como talvez saibas).
O Sr. José Guilherme tem muito dinheiro ganho nas obras públicas de que é um grande empreiteiro. Se lhe apetecer gastar dinheiro numa propriedade, perdendo dinheiro que é dele, por que razão tem de aturar acusações graves de lavagem de dinheiro, não fundamentadas em nada, como as que fazes? Por uma razão simples: porque conversa irresponsável como a tua é irrelevante para os interesses do Sr. José Guilherme (os legítimos e os ilegítimos, se os houver) mas é-lhe muito útil para se defender de acusações reais e concretas (como a da estupidez da cerca tal como foi feita e do tráfico de influências que indicia uma alteração de limites de ZPE que no essencial só afecta a sua propriedade) pegando em acusações como as tuas para demonstrar que as acusações não passam de conversas de garotos.
Seria o mesmo que eu dizer que és pago pelo Sr. José Guilherme para criar a ideia de que os ambientalistas fazem acusações completamente infundadas de maneira a descredibilizar as críticas sérias do movimento ambientalista.
É absurdo não é? Claro que é. Como muito do que dizes nesta matéria.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Henrique, eu tenho apelado ao monge budista impregnado de espiritualidade zen que existe dentro de mim, para que a paciência não me abandone, mas estou seriamente a chegar ao meu limite. Imagino que esta seja uma boa notícia para ti, já que acredito que ficarias satisfeito por me ver desaparecer definitivamente deste blogue. Alegra-te então esse dia está cada vez mais próximo.

A tua acusação de eu torcer a argumentação dos outros para ter razão só pode ser uma piada. Será que não tens a noção que és o campeão disso?

Ilibares a questão do controle de predadores com a falta de fiscalização é de uma desonestidade profunda. Se calhar também se devia perdoar os ladrões porque a culpa deles existirem tem a ver com a falta de policias na rua.

A minha referência à associação entre a actividade cinegética e a lavagem de dinheiro não apontava especificamente para ninguém em particular. É sabido que existem proprietários, (nomeadamente oriundos da Andaluzia) ligados à construção civil e ao tráfico de drogas que têm usado o nosso país para lavar dinheiro através da caça e da agricultura. Não sinto que sejam indispensável ter provas concretas para traçar este retrato. Aliás, tu próprio referes que houve "tráfico de influências" no assunto da alteração dos limites da ZPE, e eu pergunto-te se tens provas? E se denunciaste a situação junto do ministério público?
A minha referência à lavagem de dinheiro era apenas para rebater a ideia de que as reservas de caça são auto-sustentáveis e que como dizias não precisavam de subsídios (ao contrário da LPN).
Quem é que distorce os argumentos?

Por último, a tua argumentação sublinhada sempre com insultos pessoais penso que te qualifica muito mais a ti do que a mim.

Alexandre Vaz

Henrique Pereira dos Santos disse...

Eu escrevi:
"não vale a pena atribuir à caça o que resulta da combinação entre a falta de juízo de alguns gestores e da falta de fiscalização do Estado."
Alexandre Vaz respondeu:
"Ilibares a questão do controle de predadores com a falta de fiscalização é de uma desonestidade profunda."
Eu fui acabar o jantar.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Henrique, nós sabemos ler.
Será que nem sequer tens noção do que acabaste de sublinhar?
O que estás a dizer é que as atrocidades que são cometidas por proprietários, gestores, guardas e caçadores são apenas o resultado de "falta de juízo". Eles nem são mal intencionados, não é? Coitados, não têm a culpa de estar mal preparados... Se calhar a culpa é do Estado que não lhes deu a formação adequada...

Com os votos de uma boa digestão

Alexandre Vaz

Gonçalo Rosa disse...

Alexandre,

Depois deste teu último comentário, parece-me haver pouco mais a acrescentar. Esperava um pouco de mais honestidade intelectual da tua parte.

Gonçalo Rosa

Anónimo disse...

Gonçalo, acredita que não tenho o desejo de prolongar mais esta discussão, mas não percebo mesmo a que é que te estás a referir. Podes por favor ser mais claro.

Obrigado

Alexandre Vaz