segunda-feira, abril 05, 2010

Meritocracia


Tinha planeado fazer hoje um post leve sobre a águia imperial transcrevendo este apelo:
"As observações de Águia–imperial Aquila adalbertii têm vindo a aumentar no território nacional, sendo que, neste momento, o ICNB desenvolve um esforço dirigido para a detecção dessas aves.
Nesse âmbito, solicita-se a todos os ornitólogos que observem esta espécie que façam chegar essa informação ao Instituto, sugerindo-se, aliás, como meio mais eficaz o envio de um sms nomomento da observação para Carlos Carrapato (93 273 57 92), se se tratar de uma observação na região Sul de Portugal, e para Carlos Pacheco (96 561 71 47), se for uma observação naregião Norte.
Preferencialmente deverá ser remetida a seguinte informação:
- coordenadas GPS se disponível (se não for possível, referências o mais aproximadas possível do local);
- idade da ave (se possível);
- data e hora da observação e,
- conforme adequado, direcção de movimento, indicação dopoiso usado ou outra informação relevante.
Esta informação será muito importante para tornar mais fina a malha de recenseamento de indivíduos desta espécie e para possibilitar deslocações imediatas ao local dos técnicos envolvidos neste programa.
A identidade dos informantes será sempre associada a estas observações, designadamente se as mesmas forem divulgadas ou publicadas."
A ideia era chamar a atenção para o primeiro parágrafo, indiciador da fase de expansão da espécie, já que o assunto tem passado várias vezes aqui no blog.
Ao ler o jornal hoje de manhã fiquei com dúvidas sobre o que ia escrever, e ao ler o blasfémias, que remete para este post de outro blog, perdi as dúvidas.
Transcrevo o parágrafo de loucura normal que me fez tocar uma campaínha hoje ao ler uma entrevista do ex-responsável pelo PRACE (na opinião do próprio a maior reforma da administração pública desde o Mouzinho da Silveira, na minha própria opinião mais uma das muitas e vulgares campanhas de comunicação dos Governos Sócrates):
"O administrador da GERAP (a estrutura empresarial do Estado para gerir os recursos humanos que João Bilhim defendia) devia olhar para a Administração e identificar os perfis profissionais de que precisa. Depois, seleccionava as pessoas, dava-lhes formação e pegava na sua malinha e ia vender aos directores gerais esses perfis."
Este parágrafo de loucura normal é bem a ilustração do que está a desfazer por completo a administração pública: um académico, com um discurso coerente, olha para o trabalho que lhe entregam como a oportunidade da vida para se fixar na história do país. Invoca um passado notável qualquer (neste caso, Mouzinho da Silveira), equipara-se a esse passado e depois avança com propostas academicamente consistentes e coerentes, como se não soubesse que está a trabalhar numa ficção.
Como se não soubesse que os directores gerais têm apenas uma preocupação (a generalização é perigosa porque há excepções, mas com a partidarização e, sobretudo, a governamentalização dos serviços são cada vez menos e menos notórias essas excepções): saber qual o passo seguinte da sua carreira.
Quase todos eles aprederam o princípio básico da governação em Portugal: "proteger os amigos, perseguir os inimigos e aplicar a lei aos restantes".
O passo seguinte de maneira geral corresponde a uma de quatro opções: ascender a membro do Governo (passo intermédio para se colocar melhor para dois dos passos seguintes); permanecer até que surja uma oportunidade (sim, isto é o passo seguinte de muitos, o que implica mexer-se o menos possível); ser nomeado para a administração de uma empresa pública, onde se liberte dos limites de rendimento e das regras de gestão da administração; ser contratado por um grande grupo privado, de preferência para rentabilizar os contactos e trabalhar pouco.
Mas mais que isso, os directores gerais sabem que o sentido do passo seguinte não depende nada do seu desempenho, mas sim da teia de favores que se conseguiu urdir à volta de pessoas que subam na hierarquia do Governo, isto é, pessoas com capacidade para nomear gente.
Sabendo que é este o problema da administração (sendo que esta lógica tem vindo a descer cada vez mais na hierarquia, sendo cada vez mais usada por dirigentes de nível cada vez mais baixo), o que faz o académico?
Propõe um esquema irrealizável que pressupõe que os dirigentes da administração pública (começando pelos membros do Governo) perseguem o bem comum.
Como é evidente do modelo serão aproveitadas as partes úteis para aumentar a lógica de cativação do Estado pelos grupos de interesse, e postas de lado todas as regras que colidam com isso.
Alguém tem dúvidas que o problema do reconhecimento do mérito é um problema central da sociedade portuguesa?
Alguém tem dúvidas de que as nossas regras na administração pública são demasiado flexiveis no que toca à responsabilização dos responsáveis?
Enquanto não se atacar esse problema de frente, começando as reformas por se concentrar na responsabilização dos responsáveis, é evidente que visões de administradores de malinha a vender competências a directores gerais fazem parte da loucura normal em que se transformou a administração pública (incluindo Universidades e coisas que tal).
E isso ajuda muito à fuga de cérebros.
Ninguém está para aturar um jotinha qualquer, que dificilmente escreve o seu nome próprio num papel sem telefonar primeiro ao padrinho para saber o que pensa o chefe máximo do assunto, sobretudo quando se tem algum mérito próprio. E se em vez de um jotinha estiver um velho director geral sentado numa rolha, que toda a vida usou o mesmo princípio para se manter à tona de mares agitados o problema é igual.
henrique pereira dos santos

2 comentários:

Susana Nunes disse...

Não esquecendo que este problema vai dos mais baixos escalões (como funcionários de limpeza de escolas, câmaras e outras instituições públicas) ao topo do Governo. E que dificilmente o sistema mudará, dado que quem tem poder para o mudar é dos menos interessados em fazê-lo.

Anónimo disse...

Caro HPS,
Está a tocar num problema gravíssimo que vicia o estado de direito promovendo a cunha e o compadrio. A sua origem está na própria Constituição da República Portuguesa onde se pode ler: «Artigo 47.º (Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública) (.../...) 2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (.../...)»
Repare bem na oração: «em regra por via de concurso». É curioso que a regra virou excepção, e a excepção regra. Os partidos nunca se entenderam para escrever antes «exclusivamente por via de concurso público» nas sucessivas revisões que foram feitas!!!... Dá jeito a todos (veja bem o que se passa nas autarquias...). Esta promoção da incompetência, da imbecilidade, do carreirismo partidário e da corrupção, destrói o futuro de Portugal. Há universidades do Estado, em que o corpo docente foi seleccionado com base no critério da «urgente conveniência de serviço». Dá a impressão que nem estamos a falar do Estado, mas de alguém com cólicas intestinais persistentes... Ora com esta porcaria de sistema e de elites, do que é que está o HPS estava mesmo à espera?...

Ass. Um contribuinte português farto de ser esfolado.