terça-feira, abril 20, 2010

Os comerciantes de Bragança

O que muitos contribuintes da lista AMBIO previram mais que uma vez, há muito tempo atrás, parece estar a acontecer. Afinal, as contas dos estados são como as das grandes empresas, as contas das grandes empresas como as das mercearias, e as das mercearias como as das famílias. O mundo é governado pela interacção de múltiplas contabilidades de duas partidas: desde os sistemas económicos, aos balanços de azoto e fósforo no solo. Os sistemas económicos - como o solo - têm condensadores, pilhas, aqui ali: o capital é uma pilha de trabalho, e os solos têm poder tampão; mas a sua eficácia tem limites. Não precisamos de um Luca Pacioli para perceber que se a despesa ultrapassa os ganhos alguém terá que pagar a conta. Se as gerações vindouras forem mais prósperas do que nossa, é ético, parece-me, que cedam um pouco da sua riqueza em proveito dos seus ascendentes. Se assim não for, podem dormir descansados todos os não têm filhos, e não acreditam na vida eterna.

Na terra onde vivo, em Bragança, todas as semanas encerra um restaurante, e o comércio vive com a corda ao pescoço. O centro comercial – todo um símbolo do progresso – está às moscas; as lojas ou estão fechadas, ou não pagam a renda. As câmaras municipais, por seu lado, estão sobreendividadas, e cada vez mais dependentes do orçamento de estado (e.g. só 8 % do orçamento de Mogadouro, são receitas próprias).

Como o endividamento não é infinito – e as amortizações dos empréstimos empurrados para as gerações futuras afinal são descontados já manhã –, coloca-se uma questão urgente: como produzir riqueza?

Imagino um analista pago a peso de ouro, a fazer uma SWOT com uma plateia de autarcas e decisores intermédios. A primeira questão seria: – Meus senhores, onde estão as “forças” e as “oportunidades” da região? No turismo? «Pouco provável!» Na construção? «Acabou!». Na indústria? «Nunca existiu». Onde então, meus senhores? A medo alguém diria: – Isto foi sempre uma região agrícola … mas pouco sobra … a Europa … os preços … ninguém quer ser agricultor …

Não é bem assim, parece-me.

Na semana passada, enquanto admirava um rebanho de 200 ovelhas a pastar um pastagem de trevos subterrâneos dei por mim a fazer umas contas de cabeça. O vale onde me encontrava, tem cerca de 2.000 ha de superfície agrícola útil, repartidos por 5 aldeias, e pulverizados nuns bons milhares de parcelas. Os solos são razoáveis, mas sobretudo é possível uma integração eficiente entre os solos de sequeiro a meia-encosta, e os coluviões húmidos do fundo do vale. Por alguma razão os beneditinos aqui construiram um mosteiro, antes da fundação da nacionalidade. Rebanhos de ovelhas creio que são três, com perto 500-600 cabeças. Depois há uma vacaria, fenos e ferrejos, e, claro, bastante castanheiro. Produz-se alguma riqueza é certo, curiosamente mais nos relevos convexos de pouco valor num passado recente, do que no fundo do vale. Porém o abandono agrícola está em marcha. O monte avança, e as terras de cereal que sustentavam 2 almas por hectare na primeira metade do séc. XX, lentamente são tomadas pelas giestas. Os lameiros, esses, estão invadidos por infestantes pouco palatáveis; e até as hortas ficam de pousio.

Cada hectare deste vale pode sustentar, à vontade, 10 ovelhas; os australianos atingem estes encabeçamentos em áreas com 500 mm e precipitação. 2.000 ha, são então 20.000 ovelhas; metade do efectivo ovino de um pequeno concelho no alentejano. Uma prolificidade de 1,5, dá 30.000 borregos. A 40 euros o borrego, são quase 250.000 contos (sem contar com os subsídios).

Porque é, afinal, tão escassa a riqueza produzida neste vale?

A primeira causa está na posse da terra e nas estrutura da propriedade. Os donos da terra não se dão ao trabalho, e nem a alugam nem vendem. Como a propriedade está muito repartida também não vale a pena investir em meia dúzia de ovelhas aqui e ali; e em cereais muito menos. Cultivada a terra ou não, os impostos são sempre os mesmos! Sobra a pergunta: com que direito licenciados, polícias, militares, gente com emprego e reforma açambarcam a terra sem que dela, de algum modo, todos tiremos proveito? Que custo de oportunidade social têm os actuais direitos da terra?

As obras públicas são uma causa relevante do abandono agrícola, nunca referida. A construção surgiu como uma promessa de emprego relativamente bem pago, menos exigente do que o trabalho agrícola, e sustentado, embora sazonal. A procura de mão-de-obra nas obras públicas implementadas nas últimas décadas foi lida como uma mensagem para o abandono da terra. E milhares assim partiram ao engano.

Li nos jornais locais que os comerciantes de Bragança reivindicam apoios às suas débeis tesourarias. Deviam era manifestar-se em frente ao governo civil a reclamar a restituição do princípio da expropriação das terras, das sesmarias 1375. Para haver comércio, alguém tem que produzir riqueza.

Carlos Aguiar

[transcrição de um post enviado para a lista AMBIO em 16-IV-2010]

10 comentários:

João disse...

Não posso deixar de estar de acordo, por estranho que pareça.
É sempre um tema complicado, mas na verdade, o absentismo é, na maior parte das vezes, um crime de leza patria.
Além de descaracterizar a paisagem, impede a utilização do território por outros actores que poderiam rentabilizar o solo de outra forma (agricultura, floresta ou pecuária..), além disso, não pagam impostos que se vejam e por isso insistem em manter o solo à espera da galinha dos ovos de ouro...

Quem se quiser dedicar à agricultura, enfrenta um mercado de solo que tem como unico referencial a capacidade de construção, que deveria ser nula em solos rústicos.

Parabéns pelo post

Henk Feith disse...

Caro Carlos,

Concordo com o sentido do teu post e sinto-me reconfortado com mais uma voz que se levanta contra a perversidade dos subsídios analgésicos, que somente promovem a inércia e passivismo, à espera da reforma ou morte.

No entanto, se os teus cálculos batem certo, porque será que as pessoas não tomem iniciativa para desenvolver estas atividades? As pessoas não são ignorantes, e normalmente quando não desenvolvem certas atividades (por exemplo investimento florestal, tão apregoado por quem não tem noção da economia de gestão florestal) é porque não são rentáveis de facto.

Um abraço,

Henk

Nuno disse...

Gostei bastante de ler este texto, mas tenho que referir que as pessoas não vivem em determinado local somente pelo lucro mas pela qualidade de vida mais básica, e isto inclui transportes, escolas, centros de saúde e transportes.

Um exemplo:

A Câmara de Arouca começou á meses um programa que visava reactivar quintas abandonadas no concelho e atribuí-las a desempregados, juntamente com um ordenado base para iniciar a activade. Basicamente era um programa que colocava famílias como caseiros de proprietários que se voluntariavam para o efeito.

O resultado como se pode ver por esta imbecil reportagem que cede aos tiques mais populistas, foi que ninguém se voluntariou para tal.

http://www.youtube.com/watch?v=exa43xuFT3o&feature=player_embedded

A conclusão da "jornalista", Câmara, proprietários foi: "preguiçosos", "subsiodependentes" uma "vergonha", etc, etc

Ninguém, por uma vez que fosse se lembrou de perguntar porque motivo foram aquelas quintas abandonadas originalmente. Ninguém pensou que as necessidades de famílias não se resumem ao ordenado.

Como o Carlos Aguiar diz, há muito potencial agrícola nestas terras mas não vamos fazer de conta que não foi o abandono do Governo que contribuiu e contribui (Tua, por exemplo) para a sua ruína definitiva.

Nuno disse...

Desculpem a repetição mas fui pesquisar o prosseguimento do caso de Arouca de que falei e descobri esta pérola:

http://www.arouca.biz/Noticias/Local/Camara_de_Arouca_nao_desiste_de_projecto_das_quintas_sociais_201003022386/´

Quer dizer, quem não for trabalhar para um local onde se encerraram os serviços de saúde, as escolas, onde não se garante água e saneamento em condições, onde fecharam as carreiras de autocarros, vai perder aquilo para que descontou e ao que tem direito constitucionalmente.

Populismo destrutivo no seu melhor e eis um bom programa transformado num castigo. Bestial.

Carlos Aguiar disse...

Henk, perguntas porque havendo oportunidades não investem os donos da terra numa actividade agrícola, seja ela a criação de ovelhas, ou outra coisa qualquer. A resposta é simultaneamente simples, e complexa. Simples, porque na sua racionalidade os donos da terra não encontram vantagens nesse investimento. Para quê arriscar, para quê inventar preocupações e incómdos, por uma escassa e inconstante margem bruta? A maioria destes proprietários têm rendas garantidas noutras actividades, ou então apoios suficientes da segurança social, dos subsídios agrícolas, e por aí adiante. O subsídios agrícolas são fundamentais, mas como bem o dizes podem ser perversos. A explicação mais complexa, curiosamente, resume-se numa pergunta: havendo quem queira trabalhar a terra, porque não o faz? Com esta questão aproximamo-nos dos direitos de propriedade e usufruto da terra, da estrutura da propriedade e da tributação da terra. Referi no post, embora ao de leve, os comportamentos induzidos nos proprietários da terra pela ausência de uma fiscalidade correctiva e pela permissividade dos nossos direitos da terra. Sobre o feito da estrutura da terra recorro ao maior agrónomo de todos os tempos: Lucius Moderatus Columella. Este homem notável, a quem o ocidente tanto deve, defende que a exploração agrícola mediterrânica modelo deveria ter 200 iugera, i.e. 50 ha, contínuos; curiosamente colegas mais experientes do que eu defendem o mesmo. A dimensão e a pulverização da terra têm um efeito devastador no Produto Agrícola Bruto nacional, efeito este sustentado pelo nosso sistema de subsídios agrícolas, e por alguns atavismos ideológicos que me escuso de comentar.

Carlos Aguiar disse...

Nuno, tem toda a razão. Acredito piamente no individualismo agrícola, por isso some à qualidade de vida a necessidade de ver crescer algo que é seu. A Câmara propõe uma espécie de sovkhoz, de servidão agrícola, sem qualquer sentido.

Anónimo disse...

Excelente post, como aliás seria de esperar do Carlos Aguiar. Mas eu gostaria que ele fizesse propostas concretas de reforma. O minifúndio é evidentemente letal para a nossa agricultura, mas como propõe o Carlos sairmos desse problema? O que pretende o Carlos dizer com "a permissividade dos nossos direitos da terra"?

Refiro ainda que eu, como proprietário absentista de minifúndios que sou, gasto uma boa data de dinheiro a limpar as minhas terras e gostaria bem de ter ovelhas ou cabras a fazer esse trabalho. Infelizmente isso geralmente não é possível porque as overlhas exigem um pastor, caso contrário, abandonadas em terras longínquas, acabam roubadas. E quem tem tempo para ser pastor de 10 ovelhas numa terra de um hectare? Não dá. O pastoreio exige propriedades de 50 hectares, como o Carlos bem diz, para que o pastor possa ter um rebanho de dimensão considerável.

Luís Lavoura

Carlos Aguiar disse...

Luís, para uma política efectiva de promoção do uso agrícola e pastoril da terra são necessários dois intrusmentos fundamentais: casdastro único actualizado e cartografia de terras. Não temos nem um nem outro (em tempos discutimos estas questões, quando o Luís escrevia na AMBIO). Não pode imaginar, aliás imagina certamente, como as pessoas se moem umas às outras nos meios rurais, como perdem tanto tempo e se desgastam, por causa das marras e dos direitos de passagem. Com um cadastro e uma cartografia que permita com um PDA com GPS saber a quem pertencem as terras, os seus limites e a sua qualidade e é possível então corrigir comportamentos com uma política fiscal. A política fiscal ofereceria aos detentores da terra três soluções para reduzir os custos fiscais: a associação, o aluguer da terra ou a sua venda. Não posso é aceitar esta lenga-lenga de que a CE e os sistemas de preços são os culpados do abandono das terras agricolamente úteis. A realidade mostra-nos que existe por parte dos decisores políticos um medo visceral, historicamente fundado, é certo, de mexer no status quo dos direitos de propriedade e da sua fiscalidade.

Anónimo disse...

Carlos Aguiar,

eu estou totalmente de acordo consigo quanto à necessidade de um cadastro atualizado apoiado por uma cartografia em sistema GPS das propriedades rústicas. Aliás, já escrevi isso mesmo uma vez no blogue em que escrevo (Speakers' Corner). Uma questão relevante seria saber quem pagaria essa cartografia, mas não quero entrar por aí.

Porém, essa cartografia seria uma condição necessária mas não suficiente para resolver os problemas. Pôr em prática uma política fiscal minimamente justa que forçasse os proprietários rurais a associar-se seria depois necessário, e será extremamente difícil imaginar uma tal política.

Eu diria que a coisa terá que ser feita manu militari, isto é, com meios coercivos de força imediata, como foi feito com a demarcação das zonas de caça. Ou seja, o Estado terá que, ele mesmo, delimitar as tais zonas de exploração com 50 hectares e depois forçar os proprietários nessas zonas a designar uma entidade gestora comum e a alienar a essa entidade os seus direitos de gestão. Só com instrumentos fiscais, ou com incentivos, não iremos lá.

Luís Lavoura

Rui Rufino disse...

Caro Carlos Aguiar,

Excelente post. A questão do abandono da terra deveria estar sempre na ordem do dia.
O problema é certamente complexo e de difícil solução. Às causas que apontou acrescentava apenas a falta de proprietários com iniciativa, quer porque os que restam têm já muita idade quer porque os que herdaram a terra não têm qualquer vocação e/ou conhecimento da agricultura.
A divisão da propriedade associada ao prolongado abandono da terra alterou de forma significativa a paisagem rural. Deixo-lhe um exemplo da minha experiência pessoal. Quando eu era miúdo (nos anos 60/70) costumava passar férias em casa do meu avô, que fica perto de Seia/Oliveira do Hospital. Nessa altura na aldeia havia muito gado ovino, que ainda era levada para a serra da Estrela durante o Verão e para os campos do Mondego durante o Inverno. A terra era cultivada e havia prados, naturais ou semeados, um pouco por todo o lado. Hoje a paisagem é dominada pelo pinhal e eucaliptal e pelos matos de giesta e esteva. A aldeia perdeu boa parte dos seus habitantes e o número de cabeças de gado é hoje muito reduzido. Este é talvez o retrato de grande parte do Portugal rural, especialmente nas Beiras.
Apesar deste quadro penso que é possível encontrar soluções que possam viabilizar o aproveitamento da terra e aumentar a sua produtividade. Se calhar apoiando iniciativas empresariais que se apoiem no desenvolvimento de parcerias com os proprietários, não através de subsídios directos mas de medidas de natureza fiscal equivalentes àquelas que são dadas aos investidores estrangeiros.
Nem todos os proprietários são avessos à colaboração. Uns amigos meus têm um terreno com cerca de 5ha na PN da Costa Sudoeste e cedem-no para pasto a um criador de ovinos da zona, com vantagens para todos. Para eles porque mantêm o terreno sem acácias e sem mato, para o pastor porque pode criar mais ovelhas do que aquelas que a sua própria terra lhe permititia e para os alcaravões porque continuam a ter onde nidificar.

Cumprimentos,

Rui Rufino