Devo estar muito velho.
A enorme maioria das pessoas que conheço e que sabem o significado da expressão que uso no título do post conhecem-na apenas do excelente disco do Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta, um dos melhores disco de música portuguesa que conheço (podem dar aqui um salto, sobretudo os mais novos). Entretanto uma notícia de ontem diz que os discos vão ser reeditados em CD. Um grande abraço a quem o fizer, só num país de tontos seria possível estes discos ficarem eternamente proscritos da rádio.
Mas de facto eu ainda ouvi usar a expressão em conversas correntes, da mesma forma que ainda conheci bastante gente que distinguia o ch do x apesar de serem analfabetos que nunca aprenderam a ler nada (Intchada morreu a tua avó, respondiam, quando um urbanita resolvia dizer entchada por ouvir dizer satchola). Hoje penso que já é difícil ouvir usar pois canté e distinguir na fala o ch do x.
Ouço com alguma frequência o dito disco, que me fez lembrar a história da água de Alqueva que o Ecotretas conta para justificar a irracionalidade da bombagem nas barragens.
Foi quando o José Mário Branco, num evidente tom de troça, mas sempre com a qualidade inultrapassável que o caracteriza, canta (a partir de certa altura ajudado pelo coro):
"tanta propaganda na telefonia
a falar da grande crise da energia
com tanto desempregado quem diria
fala o aldrabão
e ri-se o patrão
isto inté que há-de mudar um dia
pois canté!"
Não que eu esteja a chamar aldrabão ao Ecotretas (hesitei em transcrever essa parte) mas pelo mesma lógica de raciocínio do GAC em 1975: como pode haver crise de energia se há tanto desempregado. Ou na versão moderna, para quê fazer eólicas se a água de Alqueva é despejada sem ser turbinada.
Diz o Ecotretas que dois terços da água de Alqueva foi desperdiçada (ver aqui).
Comecemos por uns dados simples:
no primeiro trimestre de 2010 a energia usada em bombagem em barragens foi de 94 GWh. Acontece que no mesmo período de 2009 foram usados 148GWh, isto é, bastante mais. Nos mesmos períodos a energia eólica produzida foi de 2,8 TWh em 2010 e 1,7 TWh em 2009. Ou seja, apesar de uma produção eólica muito maior, houve muito menos bombagem no primeiro trimestre de 2010 em relação a 2009.
Poder-se-á argumentar que isso se deve ao facto das albufeiras estarem cheias e por isso não ser razoável bombar, o que justificaria a exportação a preço zero da energia produzida a mais, que o distribuidor está obrigado a comprar aos produtores eólicos mesmo que não tenha mercado para essa energia. Mas o que não se pode dizer é que a bombagem é feita porque há eólica a mais, porque parece evidente a falta de nexo de causalidade entre a produção eólica e a necessidade de bombagem (a fantástica teoria de Pinto de Sá sobre a coincidência entre chuva e vento está mais relacionado com bobagens que com bombagens).
Em qualquer caso parece-me fantasioso argumentar com a energia potencial não turbinada em Alqueva porque todos sabemos que ninguém dimensiona os equipamentos para turbinar caudais que são excepcionalmente elevados, seria completamente irracional porque implicaria usar essa potência num número ínfimo de dias, sendo pois impossível de obter retorno para o investimento.
A lógica da turbinagem não tem nada com a dimensão física da energia produzida (não vale a pena discutir em Wh) mas sim com a dimensão económica da coisa (ou seja, só faz sentido discutir em euros).
Comprar energia barata em horas de vazio para produzir menos energia, mas nas horas de maior consumo, faz sentido se o aumento de preço compensar a diminuição da quantidade física.
Parece-me um conceito rudimentar o mercado da energia que até um ignorante como eu é capaz de perceber e explicar.
É por isso que não entendo por que razão o Ecotretas, sempre preocupado com a dimensão económica do mercado da energia (e bem) de repente resolve discutir esta questão evitando discutir a sua racionalidade económica.
Parece o actual governo a discutir as renováveis apenas nos aspectos físicos ou na diminuição das importações, esquecendo-se de discutir os aspectos económicos associados aos preços, a uma política incompreensível de intervenção administrativa no preço e esquecendo a coluna dos custos em que incorremos para ter a poupança que é referida como um bem em si.
Eu, que não tenho biblioteca, continuo convencido de que ganhávamos todos em introduzir racionalidade na discussão em vez de querermos esmagar o adversário para facilitar a dominância deste ou daquele modelo de produção de electricidade.
Entre outras razões porque o problema da electricidade é um problema relativamente menor na política energética do país.
Adenda: a bombagem, ao repôr energia potencial no sistema a partir das horas de vazio, permite que a potência instalada para responder aos picos possa ser menor, aspecto que não sei se será despiciendo do ponto de vista económico e ambiental
henrique pereira dos santos
14 comentários:
Excelente post! A dificuldade dos barragistas, nuclearistas e eólicos em pensar em termos de sistema eléctrico e energético ou nas consequências de um modelo de concorrência em mercado livre ibérico é absolutamente desafiadora.
Como dizes HPS, não sou um aldrabão. Fiz foi as contas! Que aparentemente ninguém quer fazer!
Que fique muito claro: Eu não sou contra as eólicas. Sou é contra o facto de poderem gozar das tarifas feed-in!
Quanto ao desperdício do Alqueva, não tenhas dúvidas: Foi um acto de má gestão a vários níveis... É absolutamente escandaloso! E não tem a ver com a turbinagem de caudais elevados: essa é uma desculpa de mau pagador! Mas quem é que lê o Ecotretas ou os comentários do Ambio? Vamos ter esperança...
Quanto aos nexos de casualidade e aos valores monetários, espera só mais um bocado. Não evito discuti-los, mas neste país ninguém parece ser capaz de os calcular. Vou ser o primeiro a fazê-lo!
A patuscada está quase pronta. Vamos ver se gostas do prato?
Ecotretas
Sei que estavam todos nervosos! Aqui vai o primeiro prato da patuscada da exportação de energia: 50.893.224,12 €
Ecotretas
http://ecotretas.blogspot.com/2010/04/50-milhoes-de-euros.html
Tretas,
Não percebo nada das tuas contas. Estás a dizer que mais valia parar as eólicas que exportar a menor custo, certo? Isso quer dizer que deixavas de ter as eólicas todas, não apenas nesses períodos (por razões óbvias de rentabilidade). O que significa que as contas, para serem bem feitas, implicam que faças as contas à inexistência de eólicas. O que até te facilita a vida: é só calcular a diferença de preço entre o que é pago às eólicas e o que é o preço de mercado e multiplicar pela produção eólica e ficas com o sobrecusto decorrente das eólicas.
Se quiseres o valor posso dar-to que está publicado em vários sítios.
Agora as contas que fazes não percebo para que servem.
henrique pereira dos santos
o que se pretende é menos eólicas (ou pelos menos que parem entre os 4 e os 5 mil MW), com menores tarifas, de preferencia
Anónimo,
O que eu pretendo é informação clara, antes de ter posições definidas.
Não tenho nenhuma certeza de que a energia mais cara seja necessariamente má e tenho a certeza de que os novos contratos de eólicas já são a preços mais baixos.
Mas convém ter em atenção que o preço das eólicas é fixo por quinze anos e das outras fontes varia todas as horas. Quem tem a certeza de que o preço do petróleo se vai manter nos próximos quinze anos faz muito bem em protestar contra o pagamento de um prémio de estabilidade de preços para as alternativas.
henrique pereira dos santos
HPS,
Não percebes, ou não queres perceber?
Entretanto, deste-me uma boa ideia! Vou depois calcular quanto ganhavamos com acabar com as eólicas, e importar essa energia directamente no OMEL.
Entretanto, essa comparação com o petróleo não faz sentido directo. Faz sentido é comparar com o carvão e o gás natural.
Ecotretas
Não percebo mesmo, meu caro. Não é não percebo as contas em si, o que não percebo é a utilidade de umas contas sem ser para avaliar a realidade subjancente. Ora calcular o que custa pagar à produção eólica em vez de importar, na forma como calculas, é um exercício inútil (basta pensar que ao produzirmos menos e importar mais estamos a diminuir a oferta e aumentar a procura o que evidentemente se traduz numa alteração de preço que invalida as contas que fazes).
Acho muito bem que se calcule o custo de produzir em vez de importar energia (mesmo com as limitações que referi).
henrique pereira dos santos
Esta questão das contas é verdadeiramente surpreendente.
No início da polémica eu imaginei que as contas já estavam todas feitas.
Quer de um lado, quer do outro.
Afinal, à medida que os pressupostos de algumas contas vão sendo desmontados, parece que o ecotretas ainda anda a fazer contas (não sei o que andarão a fazer os outros "manifestantes", será que um comité que reúne o Pinto de Sá, o Mira Amaral, o Jorge Oliveira, o Clemente Pedro Nunes, a créme de la créme em contas destas ainda precisa da preciosa ajuda do ecotretas?).
Que ninguém desespere.
Ele ainda não fez as contas (vai ser, ao que parece, o primeiro a fazê-las), mas como acontece em todos os bons estudos de engenharia, já sabe qual "é" o resultado final.
O problema das contas ou ausência delas, é a falta de rigor nos pressupostos assumidos... Concretamente falando, os tais 50 milhões de euros gastos supostamente a mais, não considera que, para além dos gastos fixos com a produção das renováveis, os restantes custos com as outras energias consumidas foram significativamente influenciados em baixa pela abundância, quer de hídrica, quer de eólica. Ora um estudo bem realizado, deveria entrar com os 50 milhões menos o diferencial das restantes fontes de energia! para tal deveria ser considerado, os custos com e sem eólicas... Cuidado com o mercado de energia que não representa com a totalidade das transacções! existe também os contratos bilaterais e esses poderão não ser conhecidos...
Em todo o caso as vossas discussões são muito bem vindas, caros HPS e ecotretas.
HPS, Rui, Aires, et al.,
Não tenho qualquer relação pessoal/profissional com os autores do Manifesto. Que isso fique claro. Concordo com tudo o que o Manifesto diz, e mais nada (eg. nuclear).
Que fique igualmente claro que muitos andam a utilizar os meus cálculos sem citar a fonte. Que fique igualmente claro que há jornalistas que fazem o mesmo. Eu sei que citar o Ecotretas não é politicamente correcto!
Agora, porque raio não faz o pessoal contas? Até nem são difíceis de fazer. Para quem não leu o post dos 50 milhões em pormenor, o valor é quanto Portugal PERDEU com a exportação da energia. E este é o valor mínimo, porque se podem juntar muitos outros (eg. transporte). Em termos mais concretos, HPS, este é o impacto das tarifas feed-in, pois foi calculado com base no diferencial entre a tarifa de feedin média de 2009 (93.74 €/MWh) e o valor horário no OMEL.
As contas que vem a seguir vão ser ainda mais inconvenientes! Quanto é que Portugal GANHARIA por importar energia, em troca da não existência de eólicas!
Reparem que não é engano: Quanto mais exportamos, mais dinheiro perdemos!
Ecotretas
PS: Rui, eu ainda ando a fazer contas, porque ninguém as fez!!! Ou então, fê-las, não gostou dos resultados, e enfiou na gaveta a sete chaves. Alguém tinha que ser o primeiro. E já sei os próximos resultados porque tenho uns dados e uns gráficos todos jeitosos, acredita!
PS: Aires, se lestes correctamente o estudo que eu fiz, foi efectivamente utilizado o diferencial dos custos de energia. Houve um único período horário no trimestre em que compensou produzir energia eólica, tendo esse valor sido benéfico em 14626.48 euros!
Tretas,
A ERSE faz todos os anos as contas ao sobrecusto com eólicas. Mas faz ao ano todo, não extrapola de alturas de condições excepcionais (quer sejam excepcionais porque choveu muito, quer porque o petróleo disparou).
O problema não é não existirem contas é serem pouco claras e explicadas na propaganda (de todos os lados).
Para depois se poderem fazer opções de política conscientemente.
Ora o que acontece é que a enorme maioria das pessoas está a discutir o assunto com base em coisas muito pouco sólidas (como essas contas que fazes. São pouco sólidas não é porque tenham erros, é porque o seu significado é obscuro).
henrique pereira dos santos
HPS,
Onde estão essas contas que referes da ERSE?
Obrigado,
Ecotretas
Ora cá estou eu de volta, com boas notícias!
O custo das eólicas para o país foi, no primeiro trimestre de 2010, superior a 216 milhões de euros!
Dito de outra forma, esta seria a poupança, repito apenas no primeiro trimestre de 2010, caso não existissem eólicas no nosso país.
Vejam todas as contas explicadinhas em http://ecotretas.blogspot.com/2010/04/quanto-custam-as-eolicas.html
Ecotretas
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