sábado, junho 26, 2010

Cadastro? Era a fingir.

Em 24 de Julho de 2008 o novo regime jurídico da conservação criava no seu artigo 29º o Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados.
Já por diversas vezes comentei este diploma, umas vezes para dizer bem (aqui especificamente sobre o cadastro, aqui uma análise geral, outras para o criticar (aqui e aqui violentamente crítico)
Como já referi várias vezes, trabalhei nas fases iniciais deste regime jurídico e a proposta de criação de um cadastro foi feita pelo jurista que trabalhou o diploma connosco.
No essencial havia a visão clássica dos que estavam preocupados com a inventariação do património natural (que acabou por se reflectir no artigo anterior do mesmo diploma, que formaliza legalmente o Sistema de Informação do Património Naturalm cuja utilidade de consagração legal nunca percebi) e havia a visão pragmática dos que pretendiam dar força jurídica concreta aos resultados dessa inventariação.
Até hoje, com excepção do lobo, do azevinho, do sobreiro e da azinheira quase não existe legislação de protecção de espécies que não seja subsidária da legislação comunitária, o que impede Portugal de definir, com a necessária agilidade, medidas de protecção para valores que não estejam protegidos pela legislação comunitária a não ser através de áreas protegidas.
O que o Cadastro vinha fazer era tornar claro o que estava e não estava protegido, incluindo os limites das áreas protegidas (é bem possível que poucas pessoas tenham consciência de que há áreas protegidas cujo limite é, em alguns troços, controverso por nos seus diplomas de classificação existirem descrições de limites pouco claras ou impossiveis).
Por isso vale a pena transcrever o que é verdadeiramente o Cadastro, tal como definido na lei:

2 — O Cadastro, a aprovar por decreto regulamentar, sob proposta da autoridade nacional, contém informação sobre:
a) Os territórios definidos no continente e nas Regiões Autónomas e as áreas demarcadas nas águas sob jurisdição nacional, com interesse internacional, nacional, regional ou local, cartografadas a uma escala adequada à sua gestão;
b) Os ecossistemas, habitats, espécies e geossítios, identificados de acordo com os seguintes parâmetros, quando aplicáveis:
i) Descrição e distribuição geográfica;
ii) Razões que lhe conferem um reconhecimento internacional, nacional, regional ou local;
iii) Estado de conservação;
iv) Ameaças à sua conservação e, se atribuído, o respectivo estatuto de ameaça;
v) Medidas de conservação já adoptadas;
vi) Objectivos e níveis de protecção a assegurar;
vii) Medidas de conservação e orientações de gestão a adoptar.

Note-se que tudo isto é para cada valor classificado, da área protegida à espécie, passando pelos habitats.
Coerentemente o diploma considera uma gradação de gravidade das contra-ordenações em função do Cadastro:

"constitui contra -ordenação ambiental, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto:
a) Muito grave, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «criticamente em perigo»;
b) Grave, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «em perigo»;
c) Leve, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «vulnerável»."

Verdadeiramente este post é para chamar a atenção para um único artigo da lei:


"Artigo 52.º
Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados
O primeiro Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados é aprovado no prazo máximo de dois anos a contar da entrada em vigor do presente decreto -lei."

É só isto. Este prazo de dois anos termina daqui a um mês. E a aprovação do Cadastro é precedida de discussão pública (nunca percebi como esta exigência, colocada por mim nas fases iniciais do diploma, sobreviveu até à versão final aprovada, mas tiro o meu chapéu ao Governo por ter mantido este módico de decência democrática).
A lei quando nasce não é para todos.
É pena que o cumprimento da lei seja por todos (incluindo todos os que poderiam fazer propostas para o dito Cadastro) considerado tão irrelevante.
O governo que tanto quanto sei nunca demonstrou ser o cadastro uma prioridade, as oposições que nem fazem a mínima ideia de que o problema existe, a autoridade nacional de conservação (vulgo, ICNB) que tanto quanto sei nem sequer está a trabalhar para o cumprimento da lei, o movimento ambientalista, dormente e exausto, os órgãos de comunicação social que dormem o sono dos justos (até o provedor do Público justificou a ausência de notícias sobre um acontecimento na baixa do Porto com milhares de pessoas aceitando a peregrina justificação de que ninguém avisou o jornal previamente) e eu, que só a um mês do fim do prazo acordei do meu sono sobre o assunto ao precisar de consultar o diploma por razões que não vêem ao caso.
Certo, certo, é que a lei não vai ser cumprida.
Realmente razão tinha o John Lennon "I’m just sitting here doing time/ I’m just sitting here watching the wheels go round and round/ I really love to watch them roll".



henrique pereira dos santos

3 comentários:

João Branco disse...

O Henrique ainda se surpreende pela Lei ser ignorada?

Henrique Pereira dos Santos disse...

Não, João, não me surpreendo. Mas incomodo-me com o facto de isso se tornal banal e aceitável.
Incomodo-mo por tanto eu como o João estarmos aqui simplesmente a deixar andar o assunto, esquecendo a importância de fazer o cadastro (bem mais importante aliás que o cadastro em si) ou de cumprir as promessas solenes sobre a cartografia dos habitats feitas aquando da discussão e aprovação do plano sectorial da rede natura.
Incomodo-me comigo, com o João, com as ONGs, ao mesmo tempo que todos alegremente achamos que os recursos gastos nos eventos do ano internacional da biodiversidade é que é, ou que os recursos gastos em programas de conservação do lince insustentáveis é que é.
Incomodo-me porque pura e simplesmene desistimos pura e simplesmente de pensar no que verdadeiramente conta e é estratégico para correr atrás do que é importante e mediático.
Se tiver tempo (tenho um exame amanhã e muitas, muitas outras coisas em atraso, ainda vou ver se faço uma queixa para a Provedoria de Justiça.
Mas sei que é mais para me sentir bem comigo que para resolver de facto o assunto.
henrique pereira dos santos

G.E. disse...

Há alguma novidade em relação ao Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados? Se calhar era oportuno um novo post sobre este assunto. Fica a sugestão.