sábado, junho 05, 2010

Os indivíduos e as organizações

José Rui Fernandes mantém uma argumentação cruzada sobre ONGs, respondendo no seu blog, aqui e aqui, a dois posts que fiz sobre o assunto, um sobre gestão estratégica em ongs e outro sobre o que eu penso que deve ser uma associação.
Quero centrar este post num equívoco que me parece existir: o de que eu penso que os indivíduos são pouco importantes nas organizações e que o importante é estruturá-las profissionalmente.
O equívoco é enorme (provavelmente sou eu o responsável por não ter explicado bem o que penso) na medida em que é exactamente o contrário: é precisamente porque os indivíduos são imprescindiveis no lançamento, importantes no crescimento e úteis na sustentabilidade das organizações que entendo que a estruturação das organizações com o objectivo de lhes dar sustentabilidade económica é tão importante.
O recurso mais escasso das organizações é o tempo dos que nela colaboram.
José Rui Fernandes dá o exemplo do pequeno empresário que faz de tudo desde aspirar o escritório (se existir) até produzir o que é valorizado pelo mercado, antes sequer de pensar em contratar um colaborador qualquer.
Completamente de acordo.
Por isso num post anterior eu falava da necessidade dos pais fundadores terem bem consciência dos trabalhos em que se estão a meter quando fundam uma associação.
Pegando no exemplo da ATN, Associação Transumância e Natureza, (que juntamente com as Árvores de Portugal tem servido de ilustração a esta discussão, voltando eu a repetir que tudo o que digo sobre a ATN é a minha visão das coisas, não é a posição da associação sobre o que quer que seja), os resultados obtidos ao fim de dez anos, com cerca de seiscentos hectares de terrenos com gestão orientada por critérios de conservação da biodiversidade, saíram do corpo (e da carteira) dos pais fundadores (ana berliner e antónio monteiro). Sem eles, sem o seu trabalho, as suas ideias, os seus contactos, o seu dinheiro e alguma loucura, não havia resultados nenhuns para discutir neste momento.
A questão da sustentabilidade põe-se noutro plano: é que o que foi feito nos últimos dez anos não é repetível e, ainda que fosse, seria sempre uma opção de elevadíssimo risco.
De elevadíssimo risco porque se os dois morrerem de repente (ou por qualquer razão se desinteressarem ou forem impedidos de manter o mesmo empenho) o projecto sofre um abalo de que pode recuperar ou não, mas que teria com certeza custos incalculáveis para o seu desenvolvimento. Note-se que para alguns pais fundadores o problema da sobrevivência do que criam é um problema menor, o que os motiva é o trabalho de fazem e não o que sobra quando o assunto já fizer parte da sua história pessoal.
Mas para além deste risco, que é mais importante para os que acham socialmente útil o que criaram os pais fundadores que para os próprios, há a questão da sustentabilidade pura e simples.
E essa põe-se a dois níveis: nos próximos dez anos os pais fundadores manterão o mesmo grau de empenho e disponibilidade para o projecto? É muito pouco provável, embora possível. E é pouco provável por estritas razões físicas (a resistência e a energia vão-se esvaindo, assim como a capacidade de se enganar a si próprio, necessária para aceitar graus de risco insensatos que foram fundamentais em fases mais iniciais dos projectos) e por razões de história de vida e da relação com terceiros (filhos que crescem, amigos que nos desiludem, colaboradores que se cansam, apoios pessoais que sempre foram seguros e que se volatilizam sem darmos por isso até ao momento em que nos fazem falta, etc.). Poderia facilmente demonstrar empiricamente o que estou a dizer com uma série de posts, escolhendo um a um figuras de proa do movimento ambientalista em determinado momento e olhando para o contributo que hoje dão ao movimento ambientalista organizado, como Serafim Riem, António Eloy, Viriato Soromenho Marques, Miguel Pimenta (em casa de quem foi fundada a QUERCUS, onde está ele e os outros que a fundaram?), Valter Gomes, José Manuel Palma, José Alho, Jorge Palmeirim, Miguel Vieira, Joanaz de Melo, Macário Correia e muitos e muitos outros. Nenhum deles, que eu saiba, puxa a carroça em nenhuma organização ambiental, mesmo os poucos que mantêm uma colaboração mais ou menos regular com as estruturas a que pertenceram.
O segundo problema de sustentabilidade é o que decorre do facto das condições dos primeiros dez anos serem normalmente irrepetiveis nas organizações. O caso da ATN é a esse nível bem demonstrativo, com os financiadores holandeses e suíços pouco dispostos a continuar a drenar recursos para uma associação que tarda em garantir a sua própria sustentabilidade.
Acresce que nesta, como em qualquer organização deste tipo, incluindo a Árvores de Portugal, qualquer doador, mecenas, sócio quer saber que garantias tem de que o seu dinheiro não é gasto sem deixar rasto, isto é, como se garante que daqui a vinte anos o meu donativo de hoje não foi considerado "um vôo cego a nada". A confiança na permanência dos projectos é essencial numa política de captação de recursos.
Se é verdade que a Árvores de Portugal cresce em número de sócios muito mais facilmente que a ATN (tem um tema abrangente, simpático, que existe em todo o território, ao contrário da ATN, muito marcada pelo reduzido âmbito geográfico da sua acção), também é verdade que terá mais dificuldade em mobilizar apoios mais substanciais porque a compra de terrenos por parte da ATN é uma garantia de que aconteça o que acontecer, é mais provável que o meu donativo mantenha a sua utilidade porque os terrenos continuarão afectos à conservação.
Este aspecto é central na confiança que um projecto suscita nas pessoas e instituições.
Mas mais que tudo, trabalhar a sustentabilidade de uma organização, estruturá-la, conseguir aos poucos delegar tarefas em terceiros (tarefas delegam-se, mas responsabilidades não, princípio muito esquecido), resolver os problemas financeiros até niveis que não criam grande ansiedade e não tolhem a actividade diária da organização não é desvalorizar o esforço voluntário dos que verdadeiramente fazem crescer e funcionar as associações, pelo contrário, é libertar o bem mais escasso de qualquer organização (o tempo dos seus elementos imprescindiveis) para as tarefas que só eles, e mais ninguém, pode fazer.
É libertar os dirigentes, os verdadeiros motores das organizações, para o que caracteriza a sua função: antecipar o futuro e preparar a organização para ser eficaz nessas condições.
Estruturar bem uma organização é quase inútil quando os indivíduos que as tornam únicas não prestam, não sabem ou não querem.
Uma das mais dramáticas consequências das falta de estruturação das organizações de ambiente em Portugal (acredito que em muitos outros países também) é o estado de exaustão com que os seus melhores dirigentes passam a pasta, o que conduz de maneira geral a um afastamento mais ou menos radical, mais ou menos temporário, e a uma incapacidade de integrar contributos posteriores destes dirigentes no desempenho futuro da organização.
Steve Jobs é evidentemente uma mais valia da Apple como assinala o José Rui Fernandes e é dificilmente substituível. Seria dramático para a empresa que ele perdesse o seu tempo a fazer coisas que podem ser feitas por outros, em vez de se concentrar no que o torna insubstituível. É por isso que a Apple não o põe a atender telefones. E é por isso que se é verdade que para começar ele teve de atender telefones, como qualquer pai fundador, quanto mais cedo se libertar dessa tarefa melhor para a organização. Tal como em qualquer ONG.
O ideal nas organizações é que os trabalhadores trabalhem e os dirigentes dirijam. Pode haver fases temporárias em que o essencial é aspirar um escritório e a única pessoa disponível seja o dirigente máximo. Nessas circunstâncias um dirigente digno das suas responsabilidades fá-lo-á sem qualquer constrangimento.
Mas finda a tarefa vai tentar perceber o que falhou na organização para identificar a origem de tamanho desperdício de recursos. E se for falta de dinheiro para pagar a quem aspire o escritório, sabe que só tem três soluções:
ou corta nos custos, ou aumenta os rendimentos, ou faz as duas coisas ao mesmo tempo.
Se assim não for, se se achar que é normal que seja o dirigente máximo da organização a aspirar o escritório eu seguramente não poria um tostão numa organização com essa cultura de gestão.
henrique pereira dos santos

4 comentários:

joserui disse...

Só umas notas: eu no pequeno empresário refiro contratar colaboradores não directamente ligados à produção -- e as dores de crescimento entre o momento em que isso não é possível e o que eventualmente passa a ser. Como nos escalões de IRS... há aquele ponto em que aumentando o salário, o contribuinte acaba por receber menos líquido, porque aumentou de escalão. E essa situação pode durar anos.
O problema que refiro na prática associativa, é que a tendência é essa fase durar para sempre. É o que tenho observado.
De resto, não quero dar a ideia que discordo genericamente. Eu concordo com o que diz e até diria que não existe só uma forma certa de fazer as coisas nas associações. Também não achei que desvalorizasse os indivíduos, mas achei que de certa forma julga que se chega a uma existência de longo prazo apenas pelo modelo de gestão. E o que eu digo é que às vezes (muitas vezes) nem nas empresas.
O facto de a primeira década da ATN não ser repetível não invalida o facto de ela ter existido com resultados positivos embora "saídos do corpo" dos fundadores. Eu estranhava era se fosse de outra forma. Porque para mim é hoje inegável que a cultura de voluntariado e colaboração por cá é bastante deficiente.
Relativamente à Árvores de Portugal, potencialmente é verdade que tem um tema que está perto das pessoas e pode crescer a um ritmo maior que a ATN que está lá longe. Se estabilizasse na entrada de um sócio por semana seria bom, ou o possível, não sei. Não se pode falar de uma tendência com tão pouco tempo de existência. Mesmo assim, ao fim da tal primeira década seriam pouco mais de 500 sócios... isso é bom? É mau.
Por fim, a questão não é achar normal ou ser uma cultura de gestão. É mais uma cultura de gestão da realidade e ser normal por esse motivo... por ser a realidade. -- JRF

Pedro disse...

Tenho acompanhado com imenso interesse os seus posts sobre este tema. No essencial concordo com as suas palavras e completam reflexões que tenho feito.
Só uma pequena correcção neste post - hoje o Joanaz puxa novamente a carroça no GEOTA.Tal como já vi suceder na LPN com Eugénio Sequeira.
E estes factos dariam para escrever mais uns posts, certamente.

Henrique Pereira dos Santos disse...

José Rui,
A ATN sobreviveu dez anos, apesar do modelo de gestão, mas muitas e muitas outras organizações não, e essas é mais difícil discutir porque as desconhecemos.
Três anos é um período razoável para dar sustentabilidade a uma associação que começa de novo (quando o processo está em marcha as questões são mais complexas). Mas há uma condição sine qua non: nunca esquecer esse objectivo em cada decisão ao longo dos três anos.
Pedro,
O Joanaz voltou (por não ter a certeza do que se passava hoje é que puz a hipótese deque ainda houvesse alguns mais envolvidos nas organizações) porque a organização sobreviveu enquanto o Joanaz foi tratar doutros assuntos.
É essa a minha questão. É preciso preparar as organizações para funcionarem sem os pais fundadores (ou sem as lideranças carismáticas e prolongadas). Não porque seja melhor não ter pais fundadores presentes ou lideranças carismáticas, mas porque haverá sempre uma altura em que não estarão presentes.
E nesse momento ou as organizações morrem, ou se aguentam até ao ciclo seguinte de crescimento.
O que defendo é que é possível aumentar muito a resiliência das organizações com meia dúzia de opções de gestão.
henrique pereira dos santos

joserui disse...

Caro HPS há outro assunto sobre o associativismo ambiental com que podia complementar os seus posts: porque é que há tantas? Porque é que aqui há uns tempos falou em fundar outra? As que existem não são reformáveis e/ou não lhe interessam?
É que eu tenho como paradoxal considerar a participação cívica baixa (e não são histórias da carochinha como as do Gonçalo Rosa que me fazem mudar de opinião -- por falar nisso, e o Banif caro GR, não há resposta?), mas depois as associações multiplicam-se, a maior parte com dois ou três a trabalhar e meia-dúzia de sócios. -- JRF