quinta-feira, setembro 30, 2010

Lei do Solo e Crise Financeira: como a corrupção urbanística destruiu a economia portuguesa

A crise de 2008-2010, dita financeira, tornou-se por fim orçamental: depois de o Estado Português ter sido chamado a resgatar bancos que perderam milhões em "Fundos Especiais de Investimento Imobiliário Fechado" (BPN), depois de o contribuinte ter sido chamado a pagar a infra-estruturação de milhares de urbanizações inúteis e desertas espalhadas pelos quatro cantos do país, depois de o erário público ter pago milhares de milhões de euros em expropriações de terrenos cotados a preços especulativos de milhões de euros por hectare para construir obras públicas… abriu-se um rombo no orçamento que nem um aumento brutal de impostos poderá colmatar.

E no entanto, toldados de fúria pelas novas políticas tributárias, os portugueses parecem esquecer-se de colocar a questão fundamental: qual o destino que tiveram os 180 mil milhões de euros de dívida privada que hoje devem à banca para pagar imobiliário? E o paradeiro de outros ainda inapurados milhões de euros de dívida pública também para adquirir solo para infra-estruturas de interesse público?

Na arena da opinião pública contemporânea do mundo ocidental, o fenómeno da crise financeira iniciada em 2008 protagoniza os debates e é causa maior de preocupações tanto da classe política como da sociedade civil. No panorama editorial proliferam monografias de escritura recente sobre o tema, cada qual oferecendo diagnósticos sobre as causas desta situação patológica e propondo diferentes tratamentos consoante as preferências ideológicas dos autores. Apesar da inevitável diversidade de opiniões que sempre resultam num tópico de tamanha complexidade técnica e política, sobressaem quatro consensos fundamentais entre a maioria dos investigadores: primeiro, que a etiologia desta crise é imobiliária e resulta de um empolamento excessivo dos preços dos imóveis; segundo, que o aumento dos preços do imobiliário drenou pela via hipotecária a disponibilidade financeira de praticamente toda uma geração de jovens famílias; terceiro, que a chamada financiarização do imobiliário, fenómeno irresistível das últimas duas décadas, reduziu em inúmeros países as políticas de urbanismo e do ordenamento do território à condição de epifenómeno de operações financeiras; quarto, que a ruptura do financiamento hipotecário iria inevitavelmente desmantelar a estrutura económica daqueles países onde os sectores do imobiliário e construção representavam elevadas percentagens do seu Produto Interno Bruto (PIB). Curiosamente, à medida que durante o biénio 2008-2010 o sector financeiro conseguiu obter resgates do sector público, na prática socializando as perdas e abeirando assim os Estados da insolvência, as atenções colectivas parecem esquecer-se das causas imobiliárias e preferir dar tratamento às consequências sociais — como se fosse preferível atenuar os sintomas de uma doença em lugar de curá-la na origem.

Se nos mercados editoriais anglo-saxónicos, franceses e espanhóis se encontra enorme oferta de estudos sobre estes temas, o mesmo não se verifica em Portugal onde são escassas as publicações monográficas ao dispor do público português tratando da evolução dos preços do imobiliário, à excepção de poucos relatórios empresariais ou administrativos. Mais raras ainda são as publicações que discutam, desde um ponto de vista da Economia Política e das Políticas de Urbanismo, o estado e o significado do património imobiliário português: sabendo-se hoje que Espanha sofreu a maior bolha imobiliária do espaço europeu, e que Portugal se lhe assemelha numa série de indicadores de análise do sector imobiliário, resulta desconcertante a escassez de escritos onde se faça uma reflexão pública sobre a matéria.

O silêncio da opinião pública sobre estas matérias não obnubila, contudo, a dimensão macroeconómica do problema que lhes é inerente: o volume de créditos hipotecários em Portugal cresceu de 5 mil milhões de euros em 1990 para 104 mil milhões de euros em 2008 — um aumento superior a 2.000 % nos gastos nacionais[1] com imobiliário durante menos de um vinténio no qual o crescimento acumulado do PIB per capita não alcançou os 40% e a densidade demográfica aumentou menos de 10%[2]. Ora, tal escalada dos preços do imobiliário não pode ser explicada por um aumento dos custos de construção, já que estes se mantiveram relativamente estáveis ao longo das últimas duas décadas: esta subida dos preços da habitação foi provocada sobretudo pelo aumento dos preços do solo, o qual por seu turno foi exacerbado por fenómenos de acaparamento especulativo de dezenas de milhar de edifícios mantidos devolutos para que posterior “passe” com encaixe de mais-valias. Na medida em que parte significativa da dívida que hoje constrange a economia resulta do crédito hipotecário, pode dizer-se que o mercado imobiliário foi um canal para a transferência de capitais financeiros da economia produtiva para agentes não-produtivos dedicados à arbitragem pura dos valores do solo e suas benfeitorias edificadas: em 2008, aproximadamente 68% do total da dívida privada portuguesa resulta do crédito imobiliário a famílias e empresas[1], sendo presumivelmente dois terços desse montante devidos a pagamentos do valor do solo urbanizável. Segundo os dados do Boletim Estatístico do Banco de Portugal, em 2008 o saldo de crédito atribuído ao agregado construção + actividades imobiliárias + habitação somava 168.701 milhões de euros, somando o crédito atribuído ao agregado agricultura + pesca + indústria transformadora apenas 16.455 milhões de euros. O crédito total aplicado em Portugal nesse ano representava 248.389 milhões de euros. O PIB português em 2008 rondava os 180.000 milhões de euros.

Sendo a arbitragem do valor dos solos realizada em íntima simbiose com os processos de planeamento e ordenamento do território, importaria aos decisores públicos compreender os critérios segundo os quais tal redistribuição da riqueza é feita. Enquanto compete aos agentes financeiros estabelecer o agregado total de dívida a contrair para a aquisição de solo, é ao tandem promotores-planeadores que exerce a prerrogativa de espacializar, de alocar as valorizações fundiárias daí resultantes. Mais concretamente, no contexto das bolhas imobiliárias, é o sistema de planeamento territorial que detém a prerrogativa de decidir quais os terrenos que irão absorver por via do preço a disponibilidade de crédito hipotecário e, consequentemente, quem serão as personalidades jurídicas a fruir das rendas futuras que as hipotecas representam. De qualquer forma, uma vez que os rendimentos destas valorizações foram o destino último do passivo que hoje lastra o conjunto da economia, importa colocar a esse respeito várias questões: como classificar a sua natureza em termos de Economia Política? Quem detém legitimidade moral e política para os distribuir, e para os fruir? Em função da sua natureza, como devem ser tratados em foro tributário e administrativo?

Tais matérias, em rigor, pertencem ao domínio da Política de Solos ou política fundiária, teoricamente explicitada na ordem jurídica portuguesa pelo decreto-lei n.º 194/76, mas na prática contraditada pelos decreto-lei n.º 168/99 (Código de Expropriações), n.º 380/99 (Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial) e n.º 555/99 (Regime Jurídico das Urbanizações e Edificações), além dos diplomas legais de índole tributária em geral e imobiliária em particular. Ora, a exegese atenta da legislação urbanística e tributária portuguesa permite ler, em subtexto, o predomínio nunca explicitado de certos pressupostos da doutrina fisiocrática, designadamente um claro favorecimento dos interesses particulares da propriedade privada da terra enquanto factor económico, pois relega para segundo plano a sua função social (no provimento de habitação e infra-estruturas colectivas, por exemplo) e na sua importância insubstituível para o sectores secundário e terciário da economia. Recordemo-nos que esta antiga corrente de pensamento em Economia Política defendia à outrance os proprietários e os agricultores, contra quaisquer intervenções estatais, pois considerava-os os únicos agentes produtores de riqueza, catalogando de “classes estéreis” os agrupamentos de indivíduos dedicados à indústria e aos serviços. Cumpre dizer que o Código de Expropriações português em vigor, associado aos regimes dos loteamentos e das perequações urbanísticas, e coadjuvados pelas figuras da Reserva Ecológica Nacional (REN) e da Reserva Agrícola Nacional (RAN) aparentam, em diversos traços fundamentais, haver buscado a sua inspiração nos axiomas básicos da doutrina fisiocrática. Não resultaria daí qualquer contratempo se não fora essa doutrina uma base filosófica do Ancién Regime, cuja estrutura social se baseava no rentismo fundiário quanto à economia, na iliberalidade quanto aos mercados, e no absolutismo arbitrário quanto à política.

Falta ao pensamento urbanístico português produzir uma reflexão aturada sobre o estado do território nacional à luz das doutrinas que informam a legislação que enquadra as práticas do Ordenamento e Planeamento. A responsabilidade pelo caos edificado nas cidades e o abandono nos campos podem, com alguma plausibilidade, ser atribuídos à orientação fisiocrática da sua Política de Solos, agravada sucessivamente por uma série de actos legislativos que de modo cumulativo vêm acentuando, desde 1965, tal pendor. Naquele ano, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 46 673 (Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos), a prerrogativa dos direitos de urbanização foi entregue aos particulares, ipso facto privatizando a as mais-valias geradas pelos actos administrativos de planeamento territorial, legislando-se nesta matéria em exacto contrapelo ao progresso doutrinal alcançado nos restantes países ocidentais, quaisquer que fossem as suas ideologias governativas; a legislação manteve até hoje esse espírito, pesem embora os diversos actos legiferadores no sentido de produzir novas versões da mesma lei. Com a privatização dos loteamentos urbanos não se produziu qualquer liberalização do mercado de solos urbanizáveis, mas tão-somente a instituição de oligopólios fundiários semelhantes àqueles prolixamente criticados pelos economistas clássicos do século XIX, dos quais destacaríamos o luso-britânico David Ricardo. O Decreto-Lei n.º 794/76 (Política de Solos) revelou-se, nas três décadas que se lhe seguiram, largamente inconsequente. O Código de Expropriações (D.L. n.º 168/99) e a figura das Perequações Urbanísticas (D.L. n.º 555/99) mais não fizeram do que legitimar com todas as formalidades jurídicas e políticas um sistema político-económico no qual todo o incremento do valor do solo causado pela actuação da administração pública reverteria a favor dos particulares. Considerando-se que Portugal desde 1970 viveu pelo menos quatro decénios de expansão urbana — mais de 60% dos edifícios portugueses têm menos de 40 anos — e que os solos urbanizáveis praticamente não cessaram de valorizar-se entre 1965 e 2005, pode-se compreender melhor o protagonismo dos promotores de loteamentos privados na gestão do território nacional de há 45 anos a esta parte. De caminho, também se compreende melhor o destino último dos 65% da dívida privada dos portugueses (a qual equivale a 100% do PIB) que se destina a cobrir os preços do imobiliário.

Não obstante este panorama, a produção teórica do urbanismo português tem, na sua maioria, passado ao largo deste problema de natureza filosófica — à Economia Política também se designa classicamente por Filosofia Moral—, preferindo discuti-lo no âmbito de disciplinas técnicas em geral e de ambiente em particular.

Portugal atravessa hoje um período em que vários grandes ciclos se invertem. Inverte-se o ciclo financeiro — depois de vinte anos de expansão creditícia, o crédito hipotecário contrai-se. Inverte-se por consequência o ciclo imobiliário — depois de décadas de aumentos da procura e dos preços do sector, iniciaram-se as descidas de ambas as variáveis. Inverte-se o ciclo económico — a construção, motor de muitos anos, prepara-se para ser substituída nesse papel por outro sector. Os desafios para o urbanismo português são portanto novos. Urge enfrentar a difícil fase descendente do ciclo económico e imobiliário que agora se inicia com um discernimento claro dos aspectos técnicos, económicos e políticos das práticas urbanísticas. É necessário dar transparência aos processos de formação dos preços do imobiliário, tornar públicos os seus mecanismos, e distinguir entre funções técnicas e funções políticas. No quadro do ordenamento do território, a Agricultura, a Ecologia e o Urbanismo devem ser totalmente distanciados dos discursos legitimadores da redistribuição da riqueza pelos quais foram instrumentalizados nas últimas décadas. As crises são oportunidades de corrigir os erros e regressar ao essencial.

Agora que despertámos de uma bolha imobiliária esmagados por hipotecas, urbanizações vazias e um Estado depauperado por uma crise financeiro-imobiliária, e contemplamos pelo menos uma década vindoura em que todo o crescimento servirá apenas para amortizar dívida, pensemos nas escolhas que fizemos enquanto colectivo. As mais-valias urbanísticas das urbanizações-fantasma e as cidades dormitório que hoje recobrem Portugal, vamos pagá-las três vezes: pelo ambiente que perdemos, pelas hipotecas que saldamos e pelos impostos que contribuímos.



[1] Fontes: Plano Estratégico de Habitação 2008/2013, IHRU; Boletim Estatístico do Banco de Portugal – Março 2009

[2] Fonte: Luciano Amaral: New Series for GDP per capita, per worker, and per worker-hour in Portugal, 1950-2007. Faculdade de Economia, Universidade Nova de Lisboa

20 comentários:

Carlos Aguiar disse...

Excelente texto, Pedro. Obrigado.

José M. Sousa disse...

Obrigado por esta análise, bem necessária!

Anónimo disse...

Olá Pedro. Obrigado pelo texto! Não posso deixar de sublinhar que a Política de solos não explica tudo. Ela não tem potestade nos EUA onde tudo começou.

Pedro Bingre do Amaral disse...

Olá, Zé [falaferreira]!

É verdade que a crise dos EUA tem afectado o mundo inteiro, e nada deve à política de solos em Portugal. Também é verdade que a crise portuguesa tão-pouco nasceu da crise das hipotecas subprime americanas, na medida em que ao contrário dos bancos centro-europeis, os bancos portugueses não compraram títulos financeiros feitos de "pacotes hipotecários" estado-unidenses... As famosas mensagens de tranquilização dos políticos e bancários portugueses de há dois anos eram correctas: "Portugal não deve temer a crise americana, porque o sector financeiro português não se expôs às subprime".

E por que motivo não comprou "subprimes" americanas? Porque as produziu para si mesmas, em solo português! O mercado hipotecário luso é uma imensa subprime que vinha crescendo desde os anos noventa!...

E no contexto altamente especulativo do imobiliário português das duas últimas décadas, quem ganhou? Não foram os construtores propriamente ditos — foram os loteadores de terrenos e aqueles a quem os americanos chamam de "real-estate flippers": indivíduos cujo único negócio consistia em adquirir imóveis, fechá-los por uns anos, e revendê-los por valores bastante mais altos alguns anos depois.

Com uma boa política de solos — e lei de solos — poderíamos ter conseguido evitar que se formasse esta imensa e escusada dívida.

Anónimo disse...

Olá Pedro Bingre!
Parabéns pela excelente reflexão, cheia de conteúdo, aliás como é hábito.
Correcta a ideia de um planeamento que no fundo tem gerido os "fundos" de expectativas, os direitos dos particulares, a glorificação do loteamento, com todas as suas consequências.
Tenho pena contudo que, no final de todo este pensamento, e é recorrente nas tuas análises desde sempre, pareças sempre querer apontar as baterias à existência de áreas de território que sejam, por razões ecológicas, culturais e outras, destinadas à não edificação. Tens sugerido, sublinho sugerido, desde sempre, assente nalgumas lacunas evidentes na demarcação destas áreas (que urge suprir), que a própria génese da existência destas áreas tem por objectivo permitir a valorização dos solos em redor!
Ora, isto só assim pode ser nos casos em que perdurou a ideia de que as áreas a estruturar se fariam com o recurso ao loteamento. E portanto, as alterações do uso do solo, de non-aedificandii para área de estruturação, conduziu geralmente às tais "mais-valias", que concordo a 100% são a vergonha do nosso sistema!
Mas, na sua ausência, acabariam as categorias de uso do solo?
Ou haveria categorias de uso do solo, mas todas com aptidão à edificação?
O problema está que o loteamento, a simples iniciativa do particular, com a total ausência do Estado, em definir a forma como o mesmo é estruturado, conduziram a isto.
O modelo a seguir, qualquer que seja, passará pela existência de áreas de Reserva Agrícola e Ecológica (e outras) e ao mesmo tempo pela decisão colectiva em saber como estruturar o território, retirando-se as mais-valias aos particulares (envolvendo-os mais como prestadores de um serviço no processo público e não como gestores / decisores).
Mas em todo o caso áreas non-aedificandii são cada vez mais estruturantes perante os desafios e os riscos que temos no território.
Cumps Duarte Mata

Pedro Bingre do Amaral disse...

Olá, Duarte!

Creio que se acabássemos com os loteamentos particulares, ou pelo menos com a apropriação privada de mais-valias urbanísticas, conseguiríamos vários resultados:

1) Reduzir o nível geral de impostos, já que se cobririam dessa forma os encargos de infra-estruturação pública;

2) Assegurar que a procura de habitação fosse satisfeita a baixo preço encontrando-se bolsas de terreno contíguos à cidade, evitando-se quer as urbanizações de quintas dispersas por parte de loteadores avulsos em busca de fortuna rápida, quer a edificação dispersa por parte pessoas que não conseguem comprar casa na cidade e se vêem empurradas para a auto-construção nas courelas herdadas dos avós;

3) Assegurar que o mercado de solos rústicos se mantinha a preços apropriados para o arrendamento ou a aquisição por empreendedores agrícolas, e não — como agora — a preços astronómicos insustentáveis por quem quer somente cultivar a terra em lugar de especular com ela;

4) Acabavam-se as ganas privadas de lotear e urbanizar por todo o lado — e é fácil de imaginar como as áreas protegidas e as reservas poderiam respirar de alívio;

5) Deixaríamos de ser obrigados a concentrar-nos em urbanizações densissímas, como agora nos sucede para maximizar as mais-valias urbanísticas;

6) Deixaríamos de ter o solo a representar 2/3 do preço do edifício nas periferias das cidades. Por 600 € por m2 os construtores erguem boa habitação, e ainda colhem lucro; porque motivo havermos de ser condenados a pagar por exemplo, 2000 € por metro quadrado, só para enriquecer o loteador que conseguiu alvará para construir uns, digamos, 6000 metros quadrados de habitação por hectare, e ganhar assim (2000 €/m - 600 €/m) * 6000 m/ha] = 8 400 000 € em mais-valias urbanísticas por hectare?

Miguel Carvalho disse...

Presumo que o facto de todos os países europeus estarem com dificuldades económicas ao mesmo tempo que nós, seja pura coincidência.

Caro Pedro Bingre, há muito que concordo completamente com as suas críticas ao ordenamento do território, política de habitação, o problema das mais-valias, etc. Mas este texto parece-me vindo de quem não consegue ver o mundo para lá do seu pedaço.

Pedro Bingre do Amaral disse...

Miguel,

Por favor leia a resposta que dei ao José Ferreira ("falaferreira").

É certo que vários países do mundo estão também em crise, e que em vários deles o imobiliário é causa principal. O Miguel está atento ao que se passa fora do nosso pedaço, e não está sozinho ao fazê-lo — creia-me.

A crise ocidental foi catalizada por concessões imprudentes de crédito, sobretudo imobiliário.

Nos EUA, deu-se crédito a demasiados NINJAS (pessoas com No INcome, Jobs or ASsets), para comprar mansões acima das suas posses com hipotecas "subprime", isto é, potencialmente insolventes. Queimaram o dinheiro em construção cara; o solo era, graças às suas políticas de solos, relativamente barato. Muita desta dívida resultou mal-parada.

Na Islândia, em Inglaterra e na Irlanda, os bancos compraram milhões "pacotes" de títulos hipotecários subprime americanos que se tornaram mal-parados, empurrando os bancos para a falência. Na Irlanda, para piorar as coisas, os bancos concederam hipotecas subprime a cidadãos irlandeses, que compraram solo barato e edificaram mansões cujo custo se revelou, à mínima subida das taxas de juro, incomportável.

Em Portugal e em Espanha, a banca não comprou títulos hipotecários americanos, por isso se ufanou de estar imune à crise americana. No entanto, a banca ibérica cometeu um erro: produziu os seus próprios subprime, oferecendo empréstimos a taxa variável para que os jovens e menos jovens comprassem apartamentos a um preço várias vezes superior ao custo de produção, e oferecendo também empréstimos a especuladores amadores. Quando a taxa de juro voltou a subir, em 2007, a bolha rebentou.

Porém, uma diferença separou Portugal de Espanha: cá as mais-valias urbanísticas foram entregues integralmente aos particulares, ficando ainda por cima a Administração Pública encarregue de pagar a infra-estruturação dos novos loteamentos; lá, a Administração cobrava mais-valias e os encargos de infra-estruturação a 100%. Foi por graças a esta diferença que o Estado português entrou em défice quando a bolha imobiliária acelerou em 2002-2003, ao passo que o Estado espanhol manteve vários de superávite no mesmo período.

Entretanto, países suficientemente avisados como a França, a Holanda, a Dinamarca e a Alemanha, dotados de mecanismos anti-especulação e de retenção de mais-valias, escaparam-se a criar bolhas imobiliárias no seu solo. Todo o seu sofrimento se reduziu aos rombos orçamentais causados pelos bancos da sua nacionalidade suficientemente imprudentes para terem comprado hipotecas subprime americanas titularizadas...

Isto é o que creio contemplar a partir do meu pedaço. Pode ser que a minha miopia não me permita ver mais longe.

Anónimo disse...

Pedro, concordo em absoluto que o fim dos loteamentos é urgente. Concordo que as mais-valias foram escandalosamente mal-distribuidas e que tem sido um planeamento à medida dos interesses dos proprietários.
Entendo que o planeamento e sobre tudo a estruturação do solo, embora envolvendo os privados, deve ter uma orientação pública e um controlo sobre a posse dos terrenos ou, pelo menos, mecanismos de perequação justos para a comunidade e assentes em planos públicos e claros.
Agora, continuo sem perceber, porque é que a existência de áreas non-aedificandii (REN, RAN, outras) aparece sempre, nas tuas análises, de mãos dadas com a especulação.
Não há planeamento ambientalmente sustentável sem áreas de reserva! E um mau planeamento do ponto de vista especulativo não depende das áreas, depende sim dos mecanismos com que se faz a estruturação do uso do solo, das mais-valias e da sua justiça.
Cumps. Duarte Mata

Miguel B. Araujo disse...

Pedro, O problema das mais valias urbanísticas é de facto bicudo. Mas quando transferes as mais valias dos privados para o Estado, transformas o Estado num especulador. E assim transformas o regulador em parte interessada. Não sei como se resolve isto. Miguel

Nuno disse...

Este texto abre olhos- é uma síntese que vou divulgar.

Anónimo disse...

É interessante notar como qualquer menção aos efeitos perversos que os Regimes Jurídicos da RAN e da REN têm sobre a especulação fundiária suscita sempre imensas resistências.

As servidões e restrições de utilidade pública - onde se incluem os SIC e ZPE da Rede Natura, os montados de sobro e azinho, os sítios arqueológicos, as linhas eléctricas, redes rodo e ferroviárias, áreas de protecção a Indústrias abrangidas pela directiva SEVESO II, enfim, uma lista imensa onde também se incluem a REN e a RAN - ao desvalorizarem o solo sobre o qual assentam, tornam-no mais apetecível para a caça à mais-valia directa por parte de quem tenha os contactos e o poder de as desafectar. Ou como diz a sabedoria popular "a ocasião faz o ladrão". Por essa razão as áreas non-aedificandi aparecem sempre de mãos dadas com a especulação.

Na ausência de taxação das mais valias urbanísticas (como actualmente sucede) quanto maior a for desvalorização de um prédio por via das condicionantes que o afectam, mais apetecível ele se torna para as jogadas especulativas - os PINs turísticos no Sítio Comporta Galé e o célebre Freeport são disso belíssimos exemplos.

E, no entanto, algum discurso em defesa das áreas non aedificandi refere frequentemente "a RAN, a REN e as outras". Essas outras, por vezes tão ou mais importantes para a conservação da natureza (e.g. a Rede Nacional de Áreas Protegidas, a Rede Natura 2000, os montados de sobro e azinho e o domínio público hídrico) mas também do património cultural e da segurança de populações (e.g. áreas de elevado risco sísmico ou de inundação por tsunami - como a Baixa Pombalina) raramente são referidas.

Nunca ouvi nessas discussões alguém defender com a mesma veemência a necessidade de preservar as áreas non aedificandi de protecção contra acidentes industriais graves como os que podem ocorrer no Barreiro, em Sines ou em Leça. Parece que de todas as áreas non aedificandi, apenas RAN e a REN têm um estatuto sacrossanto. Isso eu não consigo perceber.

Duarte Sobral

Miguel B. Araujo disse...

Caro Duarte,

Mesmo com boa vontade continuo sem entender a lógica da relação entre existência de área "non aedificandi" e especulação urbanística. A narrativa que apresenta é uma possível entre milhares de narrativas alternativas. O que determina a corrupção, com certeza, que não é a existência de áreas onde se proíbe a construção mas o facto de termos uma cultura avessa ao respeito da Lei.

Também continuo sem perceber na totalidade o argumento das mais valias urbanísticas. Em Espanha, onde resido, estas são sujeitas a elevadas taxas. Qual o resultado? Os agentes do Estado, que têm como função regular a construção, envolvem-se ao mais alto nível em actos de corrupção urbanística. Basicamente, todos ganham com a apropriação de mais valias: o proprietário, o vereador do urbanismo ou quem seja responsável pelas decisões administrativas conducentes à criação de mais valias urbanísticas, e a própria edilidade, como instituição e como partido que a governa, que desta forma vê os seus cofres se encherem à custa dos maiores despautérios urbanísticos. Note-se que em Espanha, onde se taxam as mais valias urbanísticas, a especulação imobiliária foi incomensuravelmente maior que em Portugal e os casos conhecidos de corrupção muito mais graves.

Com isto não pretendo defender a ideia de que não se taxem estas mais valias. Apenas que a simples taxação das mesmas não é solução e que sinceramente gostaria que me explicassem como se resolve o problema de ter um Estado que simultaneamente regula uma actividade e se beneficia da mesma se a decisão for uma e não outra.

Anónimo disse...

Caro Duarte Sobral:

"E, no entanto, algum discurso em defesa das áreas non aedificandi refere frequentemente "a RAN, a REN e as outras".

Falei da REN e da RAN porque são que frequentemente o Pedro Bingre se refere como causa para a valorização dos outros solos.
Mas enumerou bem as outras servidões. Estou de acordo.
Se os PDMs passassem a ter Planos de Mitigação e Planos de Adaptação para as Alterações Climáticas, bem como Planos de Risco (em que a questão da segurança alimentar de proximidade, o acesso à água em casos extremos, etc) veria que várias das figuras da REN e da RAN, sempre vistas como empecilhos (por vários prismas), seriam altamente actuais.

Caro Miguel Araújo:

"Mesmo com boa vontade continuo sem entender a lógica da relação entre existência de área "non aedificandi" e especulação urbanística"

Eu também não. Mas é sugerido que a existência destas áreas aumenta o valor do solo nas outras áreas. Não sou eu que digo.

Quanto a taxar as mais-valias: eu lamento que as receitas do Estado sejam conseguidas com altos impostos sobre mais-valias, sobre gasolinas, etc e já agora que para o PIB tanto conte fazer casas como conte fazer agricultura biológica. É triste.
Por isso defendo que o planeamento, daqui para a frente, e uma vez chegados a este ponto, que espero seja de ruptura, passe a pensar de outra forma a maneira de estruturar o uso do solo. E que seja de forma a que a actuação sobre a estruturação do solo assente sobre decisões de carácter público, que precedam um processo integrado que "esvazie" a especulação - (um processo público, naturalmente recorrendo a serviços privados, mas sempre enquadrados numa lógica pública)- é preciso definir-se bem o processo, assente em experiências europeias. Por cá, o mais semelhante que conheço em processo, por incrível que possa parecer, é o processo de planeamento de infra-estruturas viárias, portos, aeroportos...convinha que o acto de estruturar o uso do solo fosse mais debatida a sua efectiva necessidade. Realmente, não sei se conseguiremos acabar com a existência de mais-valias, mas o processo seria bem menos apetecivel para a especulação.
Duarte Mata

Anónimo disse...

Caro Duarte Sobral:

"E, no entanto, algum discurso em defesa das áreas non aedificandi refere frequentemente "a RAN, a REN e as outras".

Falei da REN e da RAN porque são que frequentemente o Pedro Bingre se refere como causa para a valorização dos outros solos.
Mas enumerou bem as outras servidões. Estou de acordo.
Se os PDMs passassem a ter Planos de Mitigação e Planos de Adaptação para as Alterações Climáticas, bem como Planos de Risco (em que a questão da segurança alimentar de proximidade, o acesso à água em casos extremos, etc) veria que várias das figuras da REN e da RAN, sempre vistas como empecilhos (por vários prismas), seriam altamente actuais.

Caro Miguel Araújo:

"Mesmo com boa vontade continuo sem entender a lógica da relação entre existência de área "non aedificandi" e especulação urbanística"

Eu também não. Mas é sugerido que a existência destas áreas aumenta o valor do solo nas outras áreas. Não sou eu que digo.

Duarte Mata

Anónimo disse...

Olá Pedro!

Desculpa reafirmar: associação que fazes com a crise é forçada [política?]. Existem várias razões que me fazem crer que o valor do metro quadrado em Portugal (e, portanto, a lei de solos) não são uma importante explicação para a crise.
1) A crise é global e não nacional. Portanto as principais explicações para ela dever ser encontradas nesse plano. Os bancos portugueses não compraram subprime; mas precisam de revender os seus empréstimos em bolsa (que, como se sabe, conecta todo o mercado de crédito do mundo). Quando os subprime assustaram os investidores da bolsa, o crédito enxugou para todos.
2) Em segundo lugar, as crises estão ligadas a formação de expectativas variações no valor lucro e não ao valor do investimento. Importa mais a expectativa de crescimento do valor das casas, que o seu valor num dado momento. Foi a desaceleração do crescimento do valor do metro quadrado, e não o seu valor em si, que causou a crise.
Numa coisa tens razão: a Lei de solos definiu quem ganhou no tempo das "vacas gordas". Mas daí até explicar a crise vai um grande passo.
Abraço Zé

José M. Sousa disse...

Uma possível solução para o problema que o Miguel Araújo apresenta era essas mais-valias reverterem na totalidade para a fazenda pública e não para as autarquias. Outra era acabar com ou reduzir significativamente as próprias mais-valias, regulamentando todo o processo, preços, etc.

Unknown disse...

Pedro antes de mais obrigado por este texto e por todos os outros que tem publicado sobre este assunto, graças aos quais a nova lei dos solos não passará despercebida de alguns portugueses.
Ressalto no entanto a necessidade absoluta de todo este tema encontrar forma de se tornar entendível com a máxima eficácia por qualquer leigo com direito à preguiça.
Quanto ao problema do Miguel Araújo sobre os interesses especulativos do próprio estado ao lucrar com as mais-valias, penso que a questão fundamental está no processo de formação dos preços.
O estado devia expropriar os solos rurais que mudam para urbanos ao seu valor inicial dependente do seu rendimento.
Depois estes terrenos deveriam ser colocados em leilão, ou lota tal qual como o peixe.
Aí os preços dos terrenos a urbanizar seriam formados revertendo todas as mais-valias para o estado.
(Na lota de peixe há um preço máximo tabelado abaixo do qual são feitas as ofertas)

Anónimo disse...

Uma imagem vale mais que mil palavras:

http://av.r.ftdata.co.uk/files/2010/03/Portugal_housing.jpg

IsabelPS

Anónimo disse...

Na "mouche", Isabel.