domingo, outubro 17, 2010

Relatórios ou panfletos?

O que tem acontecido desde Julho. Repare-se como os fogos nocturnos se mantêm sempre, sugerindo que não são maioritariamente fogo posto, mas que resultam das condições gerais que dão origem aos fogos diurnos. Nesta próxima semana é natural que se dê um saltinho no número de fogos diários e se isso acontecer, o mesmo se verificará nos fogos nocturnos.

A Autoridade Florestal Nacional publica regularmente uns relatórios de ponto de situação dos fogos.
O último, já incluindo todo Setembro, pode ser lido aqui. Mas não é muito aconselhável para quem procura informação e não propaganda.
Porque a forma como a informação e a comunicação é gerida em matéria de fogos influencia muito as opções políticas (ou eu li mal, ou a Autoridade de Protecção Civil, depois de ter dado um salto dos 30 milhões para 100 milhões nestes últimos cinco anos, ainda vai ter um aumento de orçamento, apesar do aperto generalizado das contas públicas) achei por bem fazer uma leitura mais exigente deste relatório.
"Da análise do histórico (Quadro 1), constata-se que o total de ocorrências contabilizado até 30 de Setembro (20.927) é próximo do valor médio do decénio 2000-2009 (22.474). Apesar disso, o total de área ardida é cerca de 87% da média dos 10 anos anteriores (-18.577ha). A área ardida até à data é inferior em três dos dez anos da última década (2000, 2003 e 2005)."
Este é o último parágrafo do sumário executivo do dito relatório e subentendida fica a ideia de que se trabalhou bem porque houve mais fogos mas a área ardida foi menor. E aliás foi menor que a média dos últimos dez anos. E na última frase, um erro crasso de português, permite supôr que apenas em três dos anos do último decénio a área ardida foi inferior à deste ano.
Com a verdade (em rigor, meia verdade, porque a última frase ou é um erro de português ou é mentira, visto que o que traduziria a realidade era a frase corrigida "A área ardida até à data é inferior à de três dos dez anos da última década (2000, 2003 e 2005)") me tentas enganar tu, dir-se-ia.
O facto de serem mais ou menos fogos interessa muito pouco, porque dos mais de vinte mil fogos registados, apenas 169 (os grandes incêndios) são responsáveis por quase 80% da área ardida. Ou seja, o que seria importante comparar era se o número de grandes fogos aumenta ou diminui e se a área ardida nesses grandes fogos aumenta ou diminui (quer na área média por fogo, quer no peso total da área ardida no ano), o que poderia dar alguma indicação de um dispositivo capaz de responder às condições em que esses fogos, que são os que realmente contam, se desenvolvem.
Mas sobre isso o relatório diz nada.
"Comparativamente com os últimos 11 anos, o valor acumulado do DSR (índice de severidade diário) no ano de 2010 mantém-se superior ao valor registado em 2003 e 2006 e apenas inferior a 2005, conforme se verifica na Figura 2."
Este ano esta frase tem sido um must da propaganda à volta dos fogos. O que do alto de uns índices fantásticos, baseados no índice canadiano (pessoas sérias e sabedoras) e produzido pelo Instituto de Meteorologia (tudo muito científico, claro), nos querem convencer é que este ano foi terrível para os fogos, do ponto de vista meteorológico, mesmo pior que o ano de 2003, em que ardeu quatro vezes mais que o normal.
É uma tentativa pueril de atirar areia para os olhos das pessoas.
Na realidade o ano não foi fácil, mas está longe de ter sido um ano excepcional do ponto de vista do risco de fogo, o vento nunca soprou forte, o número de dias seguidos de vento Leste nunca foi muito grande e as zonas que arderam são zonas muito povoadas, onde há descontinuidade de combustiveis.
Mas o extraordinário é olhar mesmo para o gráfico que publico, onde se comparam os anos desde 2000, incluindo a média (que o relatório faz questão de dizer que é maior que a área ardida este ano, esquecendo-se de explicar que 2003 e 2005 desvalorizam esta média), mas também a mediana (que traduz muito melhor a verdadeira posição do valor da área ardida deste ano, que é superior à mediana, embora com pouco significado) e ainda o objectivo político com base no qual o dinheiro para o dispositivo de combate aos fogos foi muito aumentado.
A área ardida é um mau indicador mas qualquer que seja a perspectiva, a verdade é que o princípio estratégico em que assenta o dispositivo de combate aos fogos (apagar os fogos em fase nascente, pelo que todos os esforços para chegar ao fogo o mais rapidamente possível são justificados) está errado. Esse princípio pressupõe que apagando os fogos no seu início se resolvem grande parte dos problemas. Ora o que esse princípio consegue é resolver os vinte mil fogos que não são um problema e esgotar os recursos sem resolver os 200 que de facto fogem do controlo e dão origem a 80% da área ardida.
Estamos onde estávamos há cinco anos, com a diferença de que gastamos 100 milhões de euros onde gastávamos 30 milhões.
henrique pereira dos santos

3 comentários:

José Moreira disse...

Parabéns pelo post.
Lamentavelmente, trata-se de propaganda e da mais barata. "Não leva por dez , nem por por cinco...só vai pagar quatro , e ainda leva um brinde!" Qualquer propagandista de feira faria melhor.
A manipulação - não só dos números - é, e sempre foi, a melhor arma da incompetência interesseira.
Gasta-se mais e não se melhora a eficácia no combate aos fogos.


...
"(que traduz muito melhor a verdadeira posição do valor da área ardida deste ano, que é superior, embora com pouco significado, que a mediana)"...parece-me conter uma gralha.

Cumprimentos,
José Moreira

Henrique Pereira dos Santos disse...

Obrigado. Está corrigida a asneira (há uma diferença entre gralhas e asneiras e esta era mesmo uma asneira).
henrique pereira dos santos

Pedro Almeida Vieira disse...

100% de acordo, Henrique. Basta aliás verificar que tivemos mais de 50 incêndios com área ardida superior a 500 hectares. Quando um incêndio atinge estas proporções, a área ardida acaba por estar dependente mais da manutenção das condições meteorológicas e da continuo de combustível - e quase nada do combate. Ou seja, podem arder 500, 1.000, 5.000, etc.. Este ano, se olhados os meios gastos, foi um descalabro...
E a AFN continua doce e candidamente a ser a voz do dono...