quinta-feira, novembro 25, 2010

A utopia da assépsia e a sustentabilidade

A referência a uma famosa entrevista do responsável máximo da ASAE no auge da sua fase Rambo. A entrevista pode ser lida aqui e apesar de antiga retrata bem a auto-satisfação da paranóia higienista
Um leitor, conhecedor e informado, continua agastado por eu usar hipérboles que contendem com o seu rigor técnico.
Fora essa embirração, tem dito várias coisas acertadas que me obrigam a corrigir os meus dois posts sobre a paranóia higienista.
Embora eu não esteja certo de que a legislação da segurança alimentar aplicada em Portugal (há os regulamentos comunitários, mas há a legislação nacional) seja tão inocente como é dito pelo leitor, doutra forma a actuação da ASAE já teria dado mais confusão que a que deu, a verdade é que os regulamentos comunitários sobre a matéria são bastante mais equilibrados que a prática em Portugal faria supôr.
Faz pois sentido corrigir os posts no sentido de diminuir a responsabilização da legislação e aumentar a responsabilização de práticas socias (incluindo a aplicação da lei) na questão da sustentabilidade associada à paranóia higienista.
Repare-se que o regulamento 852/ 2004, relativo à higiene dos alimentos, diz explicitamente que não se aplica "c) Ao fornecimento directo, pelo produtor, de pequenas quantidades de produtos de produção primária ao consumidor final ou ao comércio a retalho local que fornece directamente o consumidor final;". Mas logo a seguir diz: "3. Ao abrigo da legislação nacional, os Estados-Membros estabelecem regras que regulamentem as actividades referidas na alínea c) do n.º 2. Essas regras nacionais devem assegurar a realização dos objectivos do presente regulamento.".
Pois bem, o que faz o DL 113/ 2006, que adopta legislação nacional complementar a este regulamento? Não faz a menor menção a esta excepção prevista no regulamento e, se bem leio a legislação, acaba por aplicar a todos, incluindo os que o regulamento expressamente isenta, as normas do regulamento (é ler o regime sancionatório que aparentemente se aplica a toda a gente sem excepção, volto a dizer, se li bem, do que não estou certo).
Eu de facto conheço muito mal esta legislação. Mas como qualquer pessoa conheço a prática da actuação do Estado nesta matéria. Que, devo dizer, tem algumas virtudes.
Que a actuação do Estado português nesta matéria é um excelente exemplo da paranóia higienista que persegue a utopia da assépsia, lá isso é.
Não garanto que tenha feito uma leitura certa do que li, e sobretudo não tenho consciência do que não li que em matéria de enquadramento legal.
Posso ter escrito umas infantilidades sobre o assunto e merecer ser tratado como um infante, mas pelo menos que seja um infante com idade para ter aprendido a ler, quer o que está no diário da república, quer o que se passa à volta.
Volto a dizer, o custo social e ambiental desta paranóia está muito mal avaliado, mas suspeito que é terrível, tanto do ponto de vista da sustentabilidade, como do ponto de vista do desenvolvimento local, como ainda do ponto de vista do empreendedorismo.
Do ponto de vista do consumo o nosso movimento ambientalista, infelizmente, não se tem libertado do mantra dos três erres e tem descurado a análise dos mecanimos económicos que conduzem à insustentabilidade. Seria tempo de arrepiar caminho, nomeadamente no que diz respeito à alimentação, em que nos refugiamos numa defesa acéfala do modo de produção biológico.
Anteontem, numa conferência, Carlos Aguiar caracterizou muita da produção biológica como sendo a colocação de uma planta, ou de uma planta e um animal, entre o saco de adubo e a produção.
É apenas um exemplo de como o olhar ambientalista sobre o consumo, e em especial sobre o consumo de alimentos, precisa desesperadamente de ser refrescado e reforçado com mais e melhor informação.
henrique pereira dos santos

11 comentários:

Luís Lavoura disse...

Não percebi essa caraterização, da autoria do Carlos Aguiar, do modo de produção biológico. Pode explicar melhor?

Henrique Pereira dos Santos disse...

O Carlos corrigir-me-á se eu o interpretar mal, mas cvou tentar.
O contexto era o da apresentação do Carlos que classificou a agricultura como uma actividade de nutrient mining (no fundo, colectamos nutrientes que concentramos em áreas agrícolas, o que nos permite retirar a produção sem esgotar o fundo de fertilidade).
Quando explicava que para isto a agricultura biológica não é alternativa (continua a ser nutrient mining), o Carlos explicou que o modo de produção biológico admite o uso de estrumes e compostos que são produzidos, muitas vezes, do modo mais clássico que existe. Deu o exemplo de uma produção de aromáticas, se não me engano, que subsiste em função do estrume dos aviários alimentados com rações vindas do outro lado do mundo, e nesse sentido, sendo também uma actividade de nutrient mining, mas colocando ou um planta, ou uma planta e um animal entre o saco de adubo (a ração implica a tal planta, antes do animal) e a produção biológica.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Pacóvios, repito.

IsabelPS

Nuno disse...

Atenção, a pecuária biológica pode ter essas características... ou não. A convencional, por outro lado, tem-nas de certeza. Conheço explorações biológicas que produzem os seus próprios germinados, vermiculturas, feno,etc. para além daqueles ainda que praticam regimes extensivos.
Isto como reacção ao facto de ainda hoje ser difícil encontrar ração não importada e sem transgénicos.

Quanto à produção vegetal e o estrume também existe uma minoria que se dedica ao velhinho método de ter pastos ou culturas forrageiras e recolher os estrume produzido na estabulação à noite /ou produção de estrumes verdes- conheço dois casos e ambos usam cavalos (não têm uso nem interesse para lacticínios). Dois locais aproveitam processos de compostagem industrial realizadas por uma empresa de tratamento de resíduos do Norte. Esta questão coloca-se muito menos em fruticultura biológica.

Percebo o que se quis dizer- a certificação de agricultura biológica não garante alguns parâmetros importantes- mas é preciso não deitar fora o bebé com a água do banho.

Cumps

Nuno Oliveira

Lowlander disse...

Ah bom! Nem tudo foi em vao portanto... acolho com grande satisfacao esta errata aos outros 2posts.
Com o teor deste post concordo muito mais.
Nao conheco a legislacao nacional portuguesa porque nunca trabalhei com ela. Se a legislacao complementar nacional foi mesmo redigida assim e estupido a (pelo menos, numa analise superficial) 2 niveis:
1 - Porque revela que os legisladores nacionais sao iletrados e incapazes de compreender o que o regulamento europeu pretende.
2 - Porque incompreendem tambem a funcao da legislacao complementar de Regulamentos Europeus, a legislacao complementar so tinha que referir o leitor para o Regulamento Europeu (que de qualquer das formas tem aplicacao directa e imediata no Estado Membro, medidas de harmonizacao legislativa sao desnecessarias e como neste caso, contraproducentes) e estabelecer o nivel de sancoes por contra-ordenacao.

Os Regulamentos Europeus demoram anos a ser redigidos e a ser votados na Comissao Europeia precisamente proque pretendem ser feitos com atencao das sensibilidades de cada um dos Estados Membros, se ha coisa que de que nos podemos queixar ate e da excessiva inercia que tal procedimento legislativo implica.

Lowlander disse...

Quanto a minha embirracao com a absoluta necessidade de rigor tecnico admito-a e nao peco desculpas nenhumas por isso.
Sem rigor na linguagem tecnico-cientifica a ciencia e tecnologia sao uma impossibilidade.

E ja agora, obrigado por corrigir as referencias de um dos meus comentarios: tem toda a razao, o pacote legislativo "H", entrou em vigor em 2006 mas as pecas legislativas 852, 853 e 854 datam de facto de 2004.

Cumprimentos.

Joao Dias disse...

Muito se tem discutido sobre a legislação,muitos argumentos discutidos cientificamente,todos eles com inteiro fundamento e razão de ser,mas como profissional do sector gostava de saber a opinião de quem defende o total rigor dos princípios do HACCP aplicados no integra na nossa gastronomia tradicional.

Gostava contudo de dar um exemplo,entre muitos outros que me a saltão a mente,e é comum em todo o Pais,para ilustrar a realidade desta lei;o arroz pica no chão.

À luz da lei,o transporte da ave tem que ser obrigatoriamente feito em carros próprios para transporte de ave;o abate e controle sanitário feito em matadouro certificado(há ainda a possibilidade de a ave ser rejeitada);a proibição,e bem, de ser transportada sem que passe pelo sistema de arrefecimento;só pode ser transportada em carros frigoríficos certificados para tal;o sangue,ingrediente chave para a confecção desta iguaria,terá de ser certificado pelo veterinário responsável pelo matadouro.
Já para não falar em sistemas burocráticos associados à documentação do abate.
Até aqui está tudo bem!
Conclusão:
-O não cumprimento de qualquer um destes requisitos pode incorrer em coima ou mesmo ser considerado crime de abate ilegal à luz desta lei.
-Em termos de custos,esta operação é praticamente inviável devido aos custos financeiros.O que é que acontece?-ou ignora-se a legislação e confecciona-se,ou simplesmente devido aos custos excessivos do processo deixa-se de confeccionar ,é mais um prato típico a cair no esquecimento e a ser substituído pelos hambúrgueres.

Mais do que discutir argumentos cientificos(também eles muito importantes)importa saber a opinião generalizada da actual realidade da gastronomia tradicional Portuguesa à luz destes princípios!

Como profissional do sector participei em várias reuniões sobre o assunto,algumas das quais presididas pelo Sr Presidente da ASAE,no sentido de tentar perceber onde "acaba a lei" e começa a cultura ancestral gastronómica de um povo.
Nunca houve consensos,mas houve sempre sensibilidade por parte das autoridades ao problema.

Não,não estou a defender uma gastronomia sem qualquer controle de higiene ou sanitário,o que eu defendo e muitos colegas chefes de cozinha defendem é uma gastronomia tradicional assente em regras de higiene e em princípios de ética profissional.

Por estes caminhos não levará muitos anos para que as gerações vindouras nunca tenham ouvido falar,de por exemplo,um arroz de sarrabulho.

Cumprimentos,
João Dias

Antonio Gabriel Cerqueira Gonçalves disse...

Oi Henrique Pereira dos Santos, o blog Diário do Verde, do Brasil, ofereceu ao Ambio o Prêmio Dardos, veja mais aqui. Um abraço e continuação de um excelente trabalho. Parabéns pela conquista! Antonio Gabriel

Jaime Pinto disse...

Lembro-me da Taberna do meu tio Artur sem electricidade, água corrente ou WC. Num balcão tosco, por detrás de um vidro, carapaus e sardinhas de escabeche apresentavam-se em travessas de louça. Eram uma iguaria, de preferência se consumidos no dia seguinte ao da confecção.
Num pote de barro, perdizes envoltas em banha conservavam-se durante meses. Eram para alguns doutores de Coimbra, que se lambuzavam com as ditas em arroz a correr. Não se importavam de fazer 100 Km pela serra, sempre aos ss, só para as degustarem.
Não sei se alguém alguma vez apanhou diarreia devido aos carapaus ou perdizes conservados à moda dos aldeões. Sei que hoje elas são frequentes, até provavelmente mais que antigamente. Nesse tempo as crianças habituavam-se ao "que não mata engorda". Por certo seria mito, não as engordava, as crianças que me lembro, na serra, eram todas magras. Mas proporcionava-lhes anti-corpos. Vacinas mais que eficazes para os rústicos fazerem as guerras de áfrica com uma perna às costas, enquanto os jovens americanos, a braços com guerras idênticas nos vietnames, carregavam hepatites a torto e direito, sem dúvida por culpa dos cachorros e hamburgueres super higienizados.
O Ti Artur morreu e o negócio passou para o meu primo Afonso. Arcas frigoríficas, água corrente, e higiene mais que necessária sempre foi apanágio daquela tasca com nome de café. A chanfana era a melhor da serra. O Henrique PS por 2 vezes a provou.
Mas a comunidade europeia exige que nas aldeias das serras portuguesas se proceda de forma idêntica aos snacks das cidades de Bruxelas.
Ora meu primo, que não está para aturar fiscais que lhe ensinem como deve cozinhar para os clientes (ainda para mais a pagar boa nota pelo curso), ou que o multem por infringir regras exigidas pelos bruxeleses nos Tavares de Bruxelas, fechou portas.
Os clientes da tasca do meu primo, quase tudo família, amigos e conhecidos desde crianças, mas atrasados mentais que não sabem distinguir o cheiro da pipa do cheiro do incenso, têm de ter iluminados a olhar pela sua saúde. Não podem ser eles a escrutinar os locais onde se vende comida feita. O aspecto geral, o sabor da comida, a forma como as WC se apresentam, o conhecimento pessoal de dezenas de anos que têm dos donos das tascas, etc., de nada vale comparado com o rigor técnico-científico dos cientistas, satisfeitos que estão em terem fechado as tascas/pocilgas das aldeias, se preparam para a próxima luta da padronização higienista: a proibição do uso dos casulo das espigas de milho para limpar o...

Anónimo disse...

O Jaime Pinto não conhece com certeza os snacks de Bruxelas! Cidade onde o "steak américain" (nome belga do "steak tartare" francês, que é como quem diz, carne crua picada, temperada ou não ao gosto do freguês... nome aliás estranhíssimo porque não consigo imaginar um americano a comer tal coisa) se encontra em todo o lado nos balcões dos talhos já picado, coisa totalmente impossível em Portugal...

IsabelPS

Anónimo disse...

Pode ser que saia alguma coisa bem estruturada sµdaqui:

http://publico.pt/Sociedade/esta-a-nascer-uma-rede-nacional-para-aproveitar-as-sobras-dos-restaurantes_1468474

Por outro lado, a história de que o óptimo é inimigo do bom (exactamente o contrário do que dizia o meu Pai) abrange toda a espécie de necessidades não satisfeitas neste país:

"Acolhemos mulheres reencaminhadas pela Segurança Social, mas o Estado não nos reconhece como casa-abrigo e, por isso, não nos apoia financeiramente", denuncia Carla Branco. "Queríamos recuperar dois edifícios que nos foram cedidos para podermos receber mais 10 mulheres, mas não temos verba", critica.

A casa da ADDIM não cumpre os requisitos legais para ser uma casa-abrigo. "São quase tão exigentes como os de um hotel. Estas mulheres não precisam de uma copa e uma cozinheira, precisam de apoio psicológico e jurídico, de alguém que as ajude", critica Carla Branco.

http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.aspx?content_id=1722188

IsabelPS