A série de posts sobre o lobo resultam em grande medida do facto de eu ter dito que o lobo era uma espécie em expansão no Norte de Portugal e alguém imediatamente ter dito: "e a perda de alcateias no Alvão?".
Independentemente da discussão técnica sobre o assunto, a verdade é que esta é uma atitude muito frequente nos meios da conservação: a valorização do aspecto pontual que assinala a visão negativa da realidade e a desvalorização de tudo que sejam boas notícias.
Os conservacionistas gostam de dramas.
Na primeira metade dos anos oitenta trabalhei em Montezinho (não fui lá fazer uns trabalhos, vivi e trabalhei lá) e o lobo era então uma novidade nas conversas, ali no meio termo entre as velhas histórias com lobos, e as novas ideias de que parece que afinal havia mais do que se pensava.
Logo depois trabalhei na envolvente do Azibo. Aí não vivi lá, trabalhava no Porto, mas como era meu hábito na altura, quando trabalhava para uma área percorria-a a pé durante uns dias, com itinerários mais ou menos definidos mas comendo e dormindo onde calhava, vendo o que calhava e conversando com quem calhava. Estive uma semana inteira por ali, de mochila às costas. De lobos nem sinal nas conversas.
Trabalhei na segunda metade dos anos oitenta no PNPG, que percorri de lés a lés. Lobos? Eram quase só histórias do passado, e muito menos se falava de lobos na serra de Arga (não estou a falar de estudos académicos, que os havia muito pouco, mas do dia a dia das pessoas).
Na primeira metade dos anos noventa trabalhei para o Alvão (dessa vez não vivi lá, fiz algum trabalho para lá) e já se começava a ouvir falar de lobos com maior proximidade geográfica e temporal.
E de lá para cá foi sempre a aumentar. Por isso quando me perguntam por que razão eu digo, sem a menor reserva ou dúvida, que o lobo é uma espécie em expansão em Portugal, eu respondo que porque a razão me diz que o que ouvi nas serras do Norte de Portugal nos últimos vinte a trinta anos não me deixa qualquer dúvida.
Mas há outra razão para eu o dizer. É que esta dinâmica descrita é perfeitamente coerente com as dinâmicas da paisagem e das espécies presa do lobo.
Por volta dos anos 50 dá-se o pico da pressão sobre o território rural em Portugal. Daí para cá o abandono tem sido imenso. Ora o fim dos anos 70 e início dos oitenta coincide provavelmente com o período de maior escassez trófica para os lobos: por um lado a diminuição de rebanhos diminui as presas domésticas (incluindo o que daí resultava de necrofagia), a população de coelho atinge o seu pico mínimo (sim, o coelho, os especialistas que quiserem discutir a provável importância do coelho da dieta do lobo ibérico façam o favor de se chegar à frente) e a recuperação dos sistemas ainda não está suficientemente madura para que o aumento dos ungulados compensem essas duas perdas.
A partir dos anos 80 dá-se a inversão da disponibilidade alimentar, quando o desfasamento entre o abandono e a recuperação dos sistemas fica coberto e as populações de ungulados começam a cobrir as perdas das outras presas do lobo.
Estradas, eólicos, pedreiras, caça?
Quando uma raposa ronda um galinheiro e desaparecem galinhas, para quê procurar outras explicações para o seu desaparecimento?
Dramas de conservação há sim senhor, mas é com os perdedores deste processo, não é com o lobo.henrique pereira dos santos
9 comentários:
Quem são os "ungulados"? Veados? Cabras?
Sim, veados, cabras, vacas,javalis, etc.
Já ouvi várias referências relativas ao coelho como espécie importante para a alimentação do lobo, mas nunca encontrei nenhum estudo que o confirmasse.
Alguém tem conhecimento de algum?
Concordo com o Henrique, tudo o que não é desgraça não merece referência por parte do pessoal da conservação.
Um bom exemplo é o site da Quercus, que publica (e bem, a meu ver) vários textos a condenar projectos/infraestruturas/acções lesivas para a conservação do ambiente.
No entanto, quando os mesmos são chumbados ou abandonados, por decisão governamental ou porque os próprios promotores reconhecem as críticas feitas pela Quercus, não é feita qualquer referência no site.
Infelizmente isto é transversal às ONGA (tlv com a honrosa excepção da WWF).
A acrescentar à lista de ungulados, o corço, provavelmente a mais emblemática das recuperações recentes de fauna, pela sua importância na cadeia trófica do lobo.
A questão do coelho é em grande parte especulativa. É um dos assuntos que pretendo tratar na minha tese porque me parece muito importante nas dinâmicas populacionais em Portugal.
No caso do lobo o mainstream sobre o assunto diz que o coelho não é muito relevante com base em três ideias: o esforço de caça é excessivo face ao valor trófico do coelho, os estudos mundiais que existem sobre o lobo referem sistematicamente a importância dos ungulados em detrimento dos lagomorfos (onde se inclui o coelho), os dados empíricos de dieta alimentar na Península Ibérica detectam sistematicamente uma presença marginal de lagomorfos.
Quais são as minhas objecções a esta argumentação que parece sólida?
O esforço de captura depende, entre outras coisas, da densidade de presas e da sua capacidade dese refugiar. Ora a população actual de coelho é apenas de 5 a 10% da população antes da mixomatose e o refúgio hoje é incomparavelmente mais abundante que nessa altura, pelo que o esforço de caça com êxito ao coelho seria incomparavelmente menor do que nos parece hoje (entrevistas com caçadores facilmente reconhecem que nos anos 50 bastava dar uma volta pela termo da aldeia para caçar dois ou três coelhos e isso hoje está longe de acontecer). Os estudos internacionais sobre os hábitos alimentares do lobo são feitos para países onde a relação entre a densidade de ungulados e a densidade de lagomorfos é muito maior que na Península. Os estudos da dieta alimentar do lobo são todos (os que conheço, há um dos anos cinquente em Espanha que ainda não consultei) posteriores à mixomatose, e portanto já reflectindo a escassez de coelho.
Há depois um conjunto de outros pequenos indícios que me levam a supôr que seja possível que o coelho tenha desempenhado um papel mais importante na dieta do lobo que o que lhe é atribuído.
Volto a dizer, é especulação, faltam dados empíricos, directos ou indirectos, que permitam passar a discussão para um terreno mais objectivo.
henrique pereira dos santos
Os conservacionistas, tal como o eléctrico, são filhos do povo... português, claro.
IsabelPS
"A questão do coelho é em grande parte especulativa."
Só como curiosidade:
http://www.flickr.com/photos/71608308@N00/5241298928/
(não sei a origem da imagem)
No estudo "Contribuição para o Estudo da Ecologia do Lobo Ibérico no Distrito de Vila Real" indicam que 6% da dieta dos lobos do Alvão era constituída por coelhos. Não me parece um número nada marginal. Provavelmente quantos mais houvessem, mais seriam caçados pelos lobos.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/2389/1/ulfc090554_tm_Marion_Carreira.pdf
Caprinos 81,90%
Ovinos 3,45%
Bovinos 1,72%
Equinos 0,86%
Corço 3,45%
Javali 0,86%
Canideos 0,86%
Lagomorfos 6,03%
Aves 0,86%
Claro que o coelho deve ser importante. Aliás, em Portugal as alcateias são pequenas, muitas vezes reduzidas a um casal. Um coelho não é marginal para um homem, muito menos para um lobo.
Seria interessante perceber se o desaparecimento do lobo não agravou a situação do coelho, ao retirar um super-predador e permitir a expansão de raposas, por exemplo.
A outra questão nos anos 80 é o aparecimento da doença hemorrágica viral, que após um início de recuperação da mixomatose, volta a dizimar as populações de coelhos. Mas penso que a recuperação do coelho é mais tardia, e posterior ao início da recuperação do lobo.
O que eu desgosto neste texto é que o autor, que mostra tanta capacidade de diferenciar os factos das opiniões, mistura sistematicamente os seus factos com as suas opiniões, atacando continuamente e de forma infantil grupos que não existem, como os 'conservacionistas'. Enfim, o Henrique acha que tem de estar sempre no papel de herói incompreendido. Parece sempre interessar-lhe mais ter razão do que ajudar a mudar alguma coisa. O que é pena. E mesmo que não seja isso que quer, é isso que as suas mensagens conseguem. Como disse, é pena.
Pedro,
O "claro" com que começa o seu comentário é como o claro que hoje ouço sobre a influência das condições do vento Leste nos fogos e o claro que o Colombo ouviu depois de pôr o ovo em pé.
Para a grande maioria das pessoas que trabalham com lobo ainda hoje não é nada claro (leia o relatório citado pelo frederico V, onde se passa mais tempo a discutir javalis e corços, e se passa pelos dados sobre coelho com a pressa com que se olha para uma curiosidade) que o coelho tenha tido importância para a dieta do lobo (embora provavelmente não para a sua recuperação actual, que é feita com base na recuperação dos ungulados, em especial javali e corço, mas com os dados deste relatório eu seja menos peremptório).
Duvido que a dinâmica do coelho tenha alguma coisa com as relações predador presa. Penso que genericamente se sobrevalorizam essas relações no estudo das dinâmicas e de sub-valorizam as doenças e as alterações de disponibilidade trófica relacionadas com as grandes evoluções sócio-económicas, isto é, as alterações à escala da paisagem e não do habitat ou da área de destribuição.
Este texto é um ataque aos conservacionistas? Ou é simplesmente uma análise das condições culturais que nos condicionam, a todos, nas interpretações que fazemos dos dados que temos?
Procuro de facto misturar as minhas opiniões com os meus factos: de maneira geral procuro demonstrar as minhas opiniões com base em factos.
Seria mais útil para a discussão explicar que erros tem o texto que explicar que sou um tipo irritante, infantil e essas coisas.
Duvido que alguém venha a este blog para saber de mim.
Onde está neste texto qualquer pretensão a herói incompreendido?
Limito-me a exprimir um conjunto de ideias, minoritárias, e a procurar explicar por que razão as perfilho. Onde está o heroísmo? A incompreensão ainda vá, mas heroísmo?
O que não percebo de todo é esta frase: "Parece sempre interessar-lhe mais ter razão do que ajudar a mudar alguma coisa".
Se há coisa que procuro é mudar alguma coisa: mudar ideias dominantes que acho erradas, não porque as ideias dos outros que acho erradas me incomodem, mas porque sendo dominantes dão origem a políticas e orientações de gestão erradas.
Pedro, há falta de dinheiro para conservar a marsilea quadrifolia, portanto todo o que for gasto em ameaças de conservação que na realidade não existem são pregos no caixão da marsilea.
henrique pereira dos santos
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