terça-feira, fevereiro 08, 2011

O mistério da linha de Leixões, o TGV e Alqueva (ou o drama da aplicação dos dinheiros públicos)



Ao video cheguei fazendo um caminho que começou num comentário no blog a nossa terrinha
Num dos seus pertinentes comentários, o anónimo especialista de comboios que nos tem ajudado a discutir comboios e mobilidade, respondendo ao Nuno, que persistentemente questiona o fecho da linha de Leixões, tem uma resposta notável:
"O motivo principal [do fecho da linha de leixões para passageiros] parece-me ter sido as Câmaras Municipais, que no protocolo de re-abertura ... se tinham comprometido a comparticipar as obras nos apeadeiros previstos, depois terem dito que afinal não tinham dinheiro... Como da parte do Governo o interesse na linha também esmoreceu (com a saída da Ana Paula Vitorino)...".
Ora aqui está o retrato do país numa penada. Se o quisermos compor, é apenas acrescentar sobre as estradas e as scuts "Se queriam fazer as AE (que o povo também andou a exigir...) e não tendo o Estado dinheiro para as fazer, como é que estas haveriam de ser feitas?".
Esta no fundo é a versão transportes do que diz o Ministro da Agricultura sobre Alqueva: "Sejamos claros, sem apoios do Estado não há regadio que seja viável". Esta extraordinária afirmação, aliás de uma ignorância de bradar aos céus (tanto do Ministro como do jornalista que o entrevista e que chama a isto um facto incontornável) por esquecer que a maior parte do regadio do país não tem apoio do Estado e é em grande parte viável, mantendo-se há pelo menos quatrocentos anos, corresponde a uma ideia muito espalhada em quem decide sobre dinheiros públicos: é preciso fazer, o importante é encontrar a solução para fazer.
Raramente se pergunta mas fazer (com dinheiros públicos, insisto) para quê?
Se o regadio de Alqueva será sempre deficitário e não é viável sem o Estado (coisa que o movimento ambientalista diz há décadas, e que agora a KPMG vem afinal confirmar, como se lê hoje no Público), para que raio queremos nós o regadio e Alqueva? O que fizemos foi gastar uma pipa de massa num investimento, não para ter retorno, mas para continuarmos a perder valor todos os dias porque é politicamente insustentável assumir as perdas e parar a hemorragia de recursos.
O que nos torna mais ricos, produzir mais, com prejuízo, ou produzir menos, criando valor suficiente para ter lucro?
Ora toda a lógica da discussão do TGV segue as miragens anteriores: auto-estradas cujos efeitos económicos nos levariam ao Céu, Sines que nos colocaria no centro do mundo, Alqueva que libertaria o Alentejo da sua pobreza atávica e o país da sua dependência alimentar e muitos outros amanhãs que cantam, sempre com dinheiro dos outros.
Durante muitos anos os cofres do Estado tinham um limite claro e inultrapassável: o dinheiro libertado pela economia para o Estado. O problema agravou-se muito com a invenção de um sistema em que se faz agora, e os nossos filhos pagam depois, sem que os instrumentos que garantam esse pagamento sejam usados seriamente. Nada me move contra as PPP, mas tudo me move contra a manipulação das regras das PPPs que retiram o risco ao privado e o colocam no Estado, como é o caso do pagamento de rendas por disponibilidade, em vez da indexação ao tráfego.
O argumento é o de que o risco de adoptar esse modelo de pagamento é demasiado alto para o privado, o que conduziria a concursos de concessão desertos.
Bom, se assim é, é um excelente indicador de que as projecções de tráfego e económicas estão efectivamente com um problema de credibilidade.
E é fácil de explicar porquê, mesmo sendo os consultores muito bons. Tomemos um exemplo clássico: a contabilização das horas poupadas, que são um dos benefícios económicos sistematicamente usados nestes estudos.
Em primeiro lugar, se o tráfego for menor, também o número de horas poupadas é menor. Mas a objecção de fundo não é essa. A objecção de fundo é o pressuposto de que essas horas poupadas serão usadas a produzir riqueza, sendo por isso contabilizadas do lado dos benefícios económicos. Mas se o passageiro do TGV resolver usar as horas poupadas numa grande farra com a amante espanhola, não só não produz riqueza, como ainda vai acentuar os desequilíbrios económicos, sobretudo se usar champagne francês em vez de um raposeira super bruto, aliás bastante catita.
Para mim isto é tipicamente economia voodoo, mas eu não sou economista, sou simplesmente um pagante, coisa menor, como se sabe.
Não digo que muito deste investimento público não devesse ser feito e não tenha efeitos positivos, o que me parece é que seria preciso discutir um bocadinho mais.
Do que já consegui fazer download do estudo da alta velocidade há coisas que me parecem que poderiam ser afinadas. O anónimo especialista de comboios dizia que não havia previsões para agora, porque o projecto só entraria em operação em 2013, mas essa é uma afirmação imprecisa, um dos cenários é exactamente o de 2010. Onde já se verificam alguns desvios em relação à realidade (num dos casos, até favorável ao comboio, porque se afirma que entre Aveiro e Salamanca existiria uma auto-estrada sem pagamento (esta ideia de que as coisas pagas pelo Estado não são pagas, a mim faz-me muito confusão, portanto vou corrigir), sem portagem, o que passou a não ser verdade, como se sabe).
Do mesmo modo acho extraordinário que nas explicações sobre Leixões não existam os conselhos de administração da REFER e da CP, as explicações falam de decisões de presidentes de câmara e secretárias de estado, como se fosse função de políticos decidirem da abertura ou fecho de linhas.
O resultado é esta miserável maneira de tratar o dinheiro dos contribuintes, gastando dinheiro a levantar carris na Lousã, para depois dizer que afinal não se vai fazer o previsto, ou abrir uma linha que não serve para nada sem se fazerem investimentos complementares que afinal não se vão fazer, porque nada disso corresponde a estratégias empresariais claras, que os conselhos de administração defendem nas assembleias gerais de accionistas, mas sim aos humores do político do momento, que interfere permanentemente na gestão das empresas, onde os funcionários se sentem como baratas tontas a fazer hoje o que desfarão amanhã e onde os clientes não sabem o que esperar hoje das promessas de ontem.
Que CP e Refer tenham déficits gigantescos nestas circunstâncias não admira, o que admira é que ainda assim continuem a funcionar razoavelmente.
E entretanto, nestas brincadeiras em que os conselhos de administração destas empresas se deixam arrastar, sem grandeza mas com muito proveito próprio, foram gastos milhões de euros dos contribuintes (nunca é de mais lembrar, onde se incluem os impostos pagos pelos pescadores de rabo de peixe).
henrique pereira dos santos

9 comentários:

Anónimo disse...

Manuel F. Santos:
O Alqueva faz lembrar aqueles teatros de vanguarda que muito poucos frequentam:
Financiam o edifício-teatro, dão subsídios à companhia para sobreviver e ainda oferecem os bilhetes aos assistentes à custa dos impostos, via mecenato.
No próprio site da EDP sobre barragens nem diz quanta electricidade seria suposto produzir, pois já admitem que será negativa no balanço anual. É uma reserva girante para garantir potência a qualquer custo, quando muito pouco se faz para diminuir a procura e que é muito mais económico ao País e ao ambiente.

JMN disse...

Não percebo o que há de misterioso na linha de Leixões: foi re-aberta tendo em conta o pressuposto de que se fariam obras para servir o Hospital de S. João e o interface com o metro em Leixões, entretanto houve uma pequena crise mundial (suponho que tenham ouvido falar) e deixou de haver dinheiro para fazer essas obras nos próximos tempos.
Sendo assim, não fazia sentido nenhum continuar a operar os comboios.
De misterioso pouco tem.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro JMN,
Isso não é assim tão linear.
1) Por que razão se abre uma linha que não tem condições de exploração?
2) Por que razão as autarquias se comprometem a fazer obras que depois se escusam a fazer?
3) Porque razão,se é uma mera derrapagam na sua abertura, não existe um calendário de obras adaptado às novas circunstâncias?
4) Se não existe dinheiro, por que razão se recuou no fecho de um conjunto de linhas deficitárias que eventualmente ajudariam bastante a resolver o problema do dinheiro nesta linha;
5) Se não exsite dinheiro para pequenas obras, por que razãose mantém o investimento em grandes obras como o TGV (o argumento do acordo internacional não pega: em Portugal argumenta-se que não se para por causa de Espanha e em Espanha argumenta-se que não se para, embora haja uns atrasos técnicos, por causa de Portugal).
A crise tem as costas largas.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

"Se não exsite dinheiro para pequenas obras, por que razãose mantém o investimento em grandes obras como o TGV"

Henrique, não sei se já reparou, mas das 3 linhas que a esta altura já deveriam estar a ser construídas, só está a ser construída meia.
Se isso é manter o investimento, não imagino o que seria se houvesse uma redução.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Anónimo,
Claro que há cortes, mas isso não explica por que razão se abre uma linha sem condições (quando a crise estava já instalada), por que razão não se fecham as linhas que se previam fechar, nem por que razão na escala de prioridades este investimento fica atrás de uma série de outros.
A crise obriga ao corte de investimentos, mas não define quais (embora fosse aconselhável um princípio básico: cortar o que tem menos retorno, manter o que dá maior retorno).
henrique pereira dos santos

Henrique Pereira dos Santos disse...

Já agora, caro anónimo, a sua afirmação, exacta, de que o que continuou é meia linha é um poderoso retrato da forma como o país está a encarar a gestão da escassez de investimento: fazendo meias obras que só têm utilidade quando completas, esperando que o meio feito coloque pressão sobre a metade que falta, em vez de fazer o que deveria ser feito: adaptar o investimento às obras que fazem sentido com o investimento disponível.
O mais grave desta atitude de casino (vamos fazer metade a ver se conseguimos que nos saia a taluda) é que o risco de ficarmos com a obra a meio, e portanto razoavelmente inútil, é tanto maior quanto gastarmos essa metade em investimento sem retorno, porque não serve os objectivos que determinaram o investimento.
Melhorar a linha de leixões, melhorar a gestão da linha do Norte (por exemplo, avaliando seriamente a criação da circulação entroncamento pampilhoa via covilhã guarda), avaliar o desenvolvimento de um eventual aeroporto em módulos e coisas desse género reduz enormemente o risco do investimento ficar a meio e sem utilidade, e uma realizado permite, com um grau de certeza bastante elevado, retorno que nos permita ganhar recursos para os investimentos maiores e de maior risco.
Mas é um leigo a falar, claro.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

"avaliar o desenvolvimento de um eventual aeroporto em módulos "

cada tiro cada melro: o aeroporto de Alcochete vai ser construído em módulos.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro anónimo,
Obrigado por me obrigar a ser mais preciso no quie pretendia dizer. O novo aeroporto é um novo aeroporto que pode ainda ser maior fazendo mais uns módulos.
Ora não é a isso que eu pretendia referir-me, mas à possibilidade de manter o aeroporto na Portela e ir construindo uns módulos noutros locais à medida das necessidades.
Sim, eu sei que a TAP acha um desastre ter dois aeroportos em Lisboa, mas o aeroporto serve para resolver problemas das pessoas e não problemas da TAP.
Sem perceber muito do assunto, podemos aparentemente usar a área de figo maduro para expansão, temos Montijo, temos o desvio das lowcost para outros aeroportos e temos aind a possibilidade de fazer módulos complementares onde se pretende fazer o aeroporto novo e fazêd-lo crescer à medida das necessidades.
Não sou especialista de transportes, mas ainda não vi explicado com clareza a razão pela qual a portela tem de sair de onde está.
E manter a Portela permite de facto um crescimento por módulos que era o que eu estava a pretender dizer.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Explique lá que mecanismos legais é que utilizaria para fazer o «desvio das lowcost para outros aeroportos».