quinta-feira, abril 21, 2011

Ciência oculta

Um longo post. As minhas desculpas mas não consigo dizer fundamentadamente o que vou dizer sem me alongar. E o que está em causa, e as pessoas que estão em causa, não me permite deixar de procurar fundamentar cuidadosamente a minha opinião.


Dizem-me que parte do comunicado da LPN que comentei aqui, está fundamentado neste artigo.
Ou seja, que a ideia de que os incêndios provocam abandono estaria fundamentada neste artigo.
Fui ler o artigo inteiro.
E resolvi comentá-lo de tal maneira fiquei estupefacto com o que li.
O artigo está assinado por várias pessoas que considero, com algumas delas já trabalhei sem o menor problema. Outras pessoas conheço de ouvir falar. Em qualquer caso é um grupo de investigadores que na área dos fogos florestais estão entre os mais considerados em Portugal. E o artigo está publicado numa revista de referência.
E no entanto a sensação que me fica é a de que o artigo não tem pés nem cabeça e passo a tentar explicar esta minha opinião que será, de qualquer maneira, desconsiderada com dois argumentos:




  1. o de que não tenho curriculum científico em geral e neste tema em particular;


  2. o de que o que eu quero é polémica.
Nenhum dos argumentos colhem.
O primeiro, sendo genericamente verdadeiro (o genericamente é por causa de coisas como esta) é um argumento de autoridade ao qual não ligo nenhuma;
O segundo não é verdade. Preferia não escrever este post. Gosto é ainda menos de, com o meu silêncio, contribuir para deixar pairar a ideia de que o artigo em causa é mais que ciência oculta.
Vamos então à substância do artigo.
No essencial o artigo compara dois momentos do uso do solo (1990 e 2005, em Bragança e Mação, 2003, em Águeda). Junta a esta informação a informação sobre os fogos florestais. Em cada uma das três regiões compara áreas ardidas e não ardidas. Avalia as alterações de uso do solo, nas áreas ardidas e não ardidas e projecta tendências para os cem anos seguintes.
O artigo, em nenhum momento, discute quaisquer outros factores de alteração do uso do solo que não os fogos florestais, aplicando métodos estatísticos para verificar se os fogos explicam as alterações.
O estudo encontra então algumas evidências empíricas, em especial que as alterações de uso não são iguais nas áreas ardidas e não ardidas.
Só que de empírico pouco mais tem o artigo.
Daí para a frente tem inferências estatísticas e elocubrações sobre as inferências estatísticas.
Para demonstrar que uma área ardida de pinheiro ou eucalipto pode, no prazo de quinze ou menos anos ser transformada numa área de matos não é preciso nenhum artigo científico. Para demonstrar que numa área de ocorrência de pinheiro e eucalipto sujeito a fogos é natural uma evolução para matas mistas, também não é preciso muito trabalho científico. Mas até aqui eu dou de barato esta necessidade que a academia tem de provar o que todos sabemos (é aliás um papel importante da academia porque o que todos sabemos pode estar errado).
Mas há problemas bem mais complicados no artigo.
O primeiro é o problema do tempo: 15 anos não são suficientes para avaliar tendências de alteração de uso do solo, se quisermos, tendências de evolução da paisagem, sobretudo se, como se faz neste artigo, se esquece tudo o que seja enquandramento temporal e sócio-económico dessa evolução.
O segundo problema, a confusão entre dados e interpretação. O caso mais evidente diz respeito às alterações de área agrícola. O estudo verifica uma diminuição de áreas agrícolas maior nas áreas ardidas que nas áreas não ardidas. E conclui, audaciosamente porque sem nenhum dado empírico para o fazer, que o fogo foi um factor de abandono das áreas agrícolas. Ora a partir dos mesmíssimos dados empíricos eu posso dizer que as áreas agrícolas que vão sendo abandonadas ardem mais que as que mantêm o seu uso, isto é, que o abandono é um factor de susceptibilidade ao fogo. Ou seja, não é por arderem que as alterações de uso existem, é por haver alterações de uso que ardem. No caso das áreas agrícolas, bem entendido, porque no caso das áreas florestais o problema é mais complexo: o abandono permite a acumulação de combustiveis no sub-bosque (coisa que o estudo ignora, omitindo por completo qualquer análise mais pormenorizada que pudesse lançar alguma luz sobre a questão dos combustíveis), o que leva aos fogos, que conduzem a uma alteração do coberto, em especial para as espécies que não rebentam de toiça (um pequenino parágrafo passa como cão por vinha vindimada por esta característica essencial para discutir alterações do diferentes cobertos vegetais).
O terceiro problema é uma coisa que não percebo como é aceite num artigo científico com referees: de uma análise de quinze anos, com apenas dois pontos de observação (curtíssimo para uma análise com base em matrizes de Markov, que exigiriam pelo menos três pontos de análise, ou pelo menos cautela na análise de apenas dois pontos), num processo complexo como é a evolução de paisagens, onde actuam dezenas de factores, aceitam-se projecções lineares para cem anos, como se todos os factores, em especial os sócio-económicos, se mantivessem inalterados. E com base nessas projecções completamente fantasiosas tiram-se algumas das principais conclusões do artigo.
Conheço a má ciência, a boa ciência e as ciências ocultas.
Este artigo cai nitidamente no terceiro grupo.
Nada do outro mundo (honny soit qui mal y pense), a ciência, a boa, a legítima, faz-se ao longo do tempo, com contributos certos e errados e alguém virá um dia corrigir o que está escrito neste artigo, ou, o que é mais frequente e provável, simplesmente esquecê-lo porque está errado e não tem interesse.
Mas entretanto, porque os autores do artigo têm fortes ligações com uma ONG e porque as posições públicas das ONGs são definidas por grupos mais que restritos de pessoas, infuenciam-se políticas e afectações de recursos com base nisto.
Essa é uma das principais razões pelas quais as ONGs deveriam fugir como o diabo da cruz de processos fechados de definição das suas posições.
Mesmo (ou sobretudo?) que essas posições sejam definidas por investigadores eminentes.
É muito triste ver as ONGs preferirem a tecnocracia à democracia.
henrique pereira dos santos

1 comentário:

Paulo Barros disse...

Henrique, má ciência, ciência oculta e ciência manipulada (principalmente) é o que mais paira por essas revistas a fora.