domingo, março 20, 2016

0,05%


Estive ontem na Assembleia Geral de uma associação ambientalista.

Às tantas foi dito que as seis maiores (enfim, não sei o critério usado) associações ambientalistas terão, no conjunto, 20 mil sócios, dos quais 5 mil pagam quotas. Mil serão os que pagam quotas da LPN, a associação a que assembleia geral em que estava dizia respeito.

Havia duas listas candidatas aos órgãos sociais da LPN mas, para meu grande espanto, as duas procuravam mostrar que eram as melhores herdeiras dos velhos caminhos do movimento ambientalista, discutindo, pro exemplo, se a derrota do movimento ambientalista no processo da barragem do Tua se devia a falta de empenho ou a falta de suporte social.

Em nenhum momento se põe sequer a hipótese do movimento ambientalista ter vindo a somar derrotas simplesmente porque está errado no seu caminho.

E no fim lá fomos todos votar, num sistema em que somos todos iguais, mas uns são mais iguais que outros: os sócios da ralé têm um voto, os sócios da ralé mais velha têm cinco votos, e a aristocracia que em algum momento da sua vida passou pelos órgãos sociais da associação, tem dez votos.

Para pagar, somo todos iguais, mas para votar uns são mais iguais que outros.

A pergunta que as duas listas, e todos os outros, se deveriam fazer é a seguinte: "que razão têm os 99,95% de portugueses que não pagam quotas de associações ambientalistas para o fazer se estas organizações têm medo da democracia?".

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Gente mais capaz de pensar com as mãos

A Montis é uma associação de conservação da natureza (declaração de interesses: de que sou presidente) que foi beber os seus fundamentos a uma longa tradição de gestão directa de propriedades e, mais directamente, à ATN, a associação que gere a primeira (e até agora única) área protegida privada do país, a Faia Brava.

Em muitas coisas a Montis aproxima-se do modelo da ATN, em muitas outras afasta-se, muitas vezes exactamente por manter o interesse na experiência da ATN e entender que há caminhos de gestão alternativos ao que a ATN faz.

Numa coisa seguramente nos inspirámos na ATN: a preocupação de gestão directa, de ter pessoas a mexer no terreno, de não ter apenas uma gestão profissional dos terrenos, mas uma preocupação de envolvimento das pessoas comuns nessa gestão.

Na Montis, face aos recursos existentes, começámos por fazer passeios mensais que permitissem aos sócios (muitos deles contribuintes na campanha de crowdfunding com que comprámos os primeiros terrenos da Montis) ter contacto directo com os terrenos e a forma como as coisas evoluem.

Mais tarde conseguimos começar a ter acções mensais de voluntariado, para que houvesse oportunidade de sentir o custo e o gosto de gerir directamente pedaços de natureza. Eram, e são, pequenas acções, regulares, de maneira geral com poucos inscritos, mas que têm permitido o envolvimento de mais pessoas na gestão dos nossos carvalhais e ainda apoiar outras associações nas suas iniciativas.

Agora damos mais um passo: desenhámos um fim de semana de formação em engenharia natural, em que combinamos a formação, o gosto pelo contacto directo com a natureza e as necessidades de gestão de terrenos pelos quais somos responsáveis (neste caso um baldio com o qual temos um acordo de gestão).

Ainda há três vagas para quem se queira inscrever (no momento em que escrevo, a verdade é que estamos surpreendidos com a adesão ao proposto), mas esta primeira experiência é a preparação para um programa mais alargado de envolvimento de pessoas na gestão directa, permitindo que cada um tenha as suas opções, mas que saiba o que custa e o que permite uma gestão orientada para a valorização do património natural, que veja e faça o que se pode fazer, mas também as limitações práticas, que avalie e pense como se pode contar com os processos naturais para se obterem os resultados pretendidos, que veja claramente visto como evolui a natureza quando lhe damos tempo e atenção.

A partir desta acção afinaremos outras que procuraremos financiar através de uma nova campanha de crowdfunding, que decorrerá entre meados de Abril e meados de Junho, articulando gestão profissional (com recursos externos à campanha) e gestão voluntária (financiada pela campanha).

Estamos convencidos que é bom ter cada vez mais gente com cada vez mais conhecimento directo sobre gestão do património natural.

Democratizar o acesso à natureza faz sentido para nós, não apenas na componente da fruição, mas também na oportunidade para pôr as mãos na massa com os pés na terra.

henrique pereira dos santos

sábado, janeiro 23, 2016

O movimento ambientalista no meio da ponte


É hoje lançada uma nova associação ambiental, a Zero, que resulta de uma cisão na QUERCUS.

A QUERCUS é, ela própria, uma cisão do NPEPVS, que já era uma cisão da Sociedade Portuguesa de Ornitologia, e a QUERCUS já deu também origem, através de outra cisão, ao FAPAS.

Poderia ser, portanto, uma mera questão em torno de uma organização ambiental.

Não estou convencido disso.

No GEOTA há relativamente pouco tempo houve eleições disputadas, e a LPN tem neste momento em curso um processo eleitoral em que existe uma candidatura de continuidade e uma candidatura de ruptura.

Ao mesmo tempo, algumas associações entram em falência (como o CEAI), deixam de ter actividade ou, pelo contrário, reforçam a actividade, como a ATN ou a MONTIS.

Duranta anos critiquei (e mantenho muitas dessas críticas) um modelo associativo em que os sócios não ocupam um lugar central nas associações, que trabalham, essencialmente, para os seus financiadores, investindo tudo o que têm em projectos financiáveis, e para as suas estruturas técnicas profissionais, usando grande parte dos seus recursos obtidos na manutenção dos postos de trabalho entretanto criados.

É um modelo que pode funcionar bem (a SPEA é talvez a mais bem conseguida aplicação deste modelo) mas que tem o problema de estreitar as bases eleitorais das associações, e o seu enraizamento social, de tal forma que, meia dúzia de pessoas empenhadas, podem formar um sindicato de voto que ganhe as eleições, como aconteceu (aliás, legitimamente) na QUERCUS.

É também perfeitamente legítimo que quem perdeu o poder na QUERCUS desista de ficar, criticando e apresentando-se a votos, e prefira ir fundar outra associação, apelando ao simbolismo de reunir, como fundadores, grande parte dos anteriores presidentes da QUERCUS, e apresentando, como diferença substancial, uma centragem na sustentabilidade em detrimento da vocação de conservação e trabalho  no terreno que sempre caracterizou, pelo menos em teoria, a QUERCUS, o que aliás se traduz nos nomes das duas associações.

Ao contrário de outros países, como os Países Baixos, em que todo o pai de família é sócio da Natuurmonumenten, em Portugal não existe uma (ou mais) associação conservacionista que se centre no prazer e no gosto do uso da natureza, sem grandes preocupações de intervenção política.

Nesses países, há pessoas que entendem que a melhor forma de assegurar o seu prazer de contacto com a natureza é associar-se a outras pessoas com a mesma ideia e comprar e gerir terrenos onde existam oportunidades para uma natureza não condicionada pela actividade económica extractiva.

Em Portugal esta ideia de acesso à natureza é imediatamente entendida como um direito que deve ser assegurado pelo Estado, pelo que a associação mais bem posicionada para desempenhar o papel de uma National Trust, a LPN, sempre foi uma associação elitista dominada por académicos (nem os estatutos são democráticos, respeitando o princípio de "um sócio, um voto") cujo principal objectivo era pressionar o Estado para assegurar o que estes académicos definiam como bem comum (muitas vezes, com razão).

Os actuais movimentos que se verificam dentro das associações tradicionais, ou à margem das associações tradicionais, com a criação de outras organizações e movimentos, não me parecem ser uma mera repetição da matriosca de cisões que caracterizaram o movimento ambientalista dos anos 70 e 80, mas a reacção de pessoas comuns à longa letargia que desde essa altura se verifica num movimento ambientalista muito desenraizado socialmente, mas com grande acesso a recursos, a lobying e aos meios de comunicação social. Estas condições permitiram a instalação de uma estrutura técnica e profissional que podia dispensar os sócios para se manter.

Aparentemente o dinheiro tem estado mais difícil, os meios de comunicação social estão preocupados com a sua própria sobrevivência e o lobying é pouco útil porque não há recursos para canalizar.

Uma boa oportunidade para que as pessoas comuns se organizem e façam das associações o que quiserem, centrando a sua actividade na vontade dos sócios.

Longa vida à Zero e a todas as outras que a precederam, o que não será um produto do acaso, mas da atenção que as direcções dedicarem aos sócios que as elegem.

quarta-feira, dezembro 23, 2015

É poucochinho para os caracóis


Gonçalo Calado diz (ou melhor, o Público diz que Gonçalo Calado diz) "O Estatuto da UICN não é oficial [para as autoridades portuguesas] mas é o primeiro passo para estas estarem de aviso, para quando houver uma revisão da Lista Vermelha das espécies portuguesas o caracol a poder integrar".

Aqui, já em 26 de Junho de 2010, eu lembrava que o Governo, a Administração e as pessoas comuns, incluindo o movimento ambientalista, se estavam nas tintas para o facto de se estar toda a gente nas tintas para a obrigação legal de criação de um Cadastro Nacional dos Valores Classificados.

Eu sei que esta ideia de fazer um Cadastro Nacional dos Valores Naturais, bem como a possibilidade de qualquer pessoa fazer propostas para a integração de valores nesse cadastro, bem ainda como a obrigatoriedade de discussão pública destas matérias que a academia, de maneira geral, trata como coutadas privadas, foi uma ideia a que só foi possível dar forma legal por um conjunto de circunstâncias excepcionais.

E sei que esta ideia é uma ideia ultra-minoritária que acabou adormecida na lei da nação, como acontece, normalmente, às ideias socialmente minoritárias que por circunstâncias fortuitas (uma das quais, ter sido eu um dos principais redactores desta parte do regime jurídico de conservação, que sou um radical da participação pública e da operacionalidade dos instrumentos legais, outras das quais o jurista (Pedro Gama) que apoiou a proposta de regime jurídico, de quem, aliás, é a autoria da ideia do Cadastro, ser um jurista externo ao meio da conservação e de cabeça arejada, outra das quais, coisa rara, estar na presidência do ICN, uma pessoa com visão estratégica e pés assente na terra (João Menezes) e ainda estar a tutela política da conservação nas mãos de Humberto Rosa) acabam na lei geral.

Mas não deixo de me incomodar, e sentir com uma das minhas maiores frustrações profissionais (e a competição é dura) por ver toda a gente, até pessoas como o Gonçalo Calado (que penso que também esteve envolvido na elaboração deste regime jurídico) ignorarem olimpicamente o poder que a lei lhes põe na mão, para ficarem à espera de um Estado incompetente e sem respeito pela lei.

Aqui se diria que "a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" mas aparentemente Marx está fora de moda e os trabalhadores não querem assumir o seu destino nas mãos, preferindo a dependência de um Estado que, não sendo falhado, é demasiado povoado, nas suas instâncias de decisão, por falhados que ali estão por acaso e mais ou menos temporariamente à espera do lugar seguinte.

Citando, quer a lei, quer coisas antigas escritas sobre o assunto:

Art.º 29º do DL 142/ 2008 de 24 de Julho, "5 — Na elaboração da proposta de actualização (do cadastro) a autoridade nacional deve ter em conta as propostas apresentadas por qualquer entidade pública ou privada ou pessoa singular, desde que devidamente fundamentadas em informação científica."

Qualquer cidadão pode apresentar, fundamentando cientificamente (o que não significa que tenha de fazer um doutoramento sobre o assunto), propostas de inclusão de qualquer valor no cadastro referindo:
i) Descrição e distribuição geográfica;
ii) Razões que lhe conferem um reconhecimento internacional,
nacional, regional ou local;
iii) Estado de conservação;
iv) Ameaças à sua conservação e, se atribuído, o respectivo
estatuto de ameaça;
v) Medidas de conservação já adoptadas;
vi) Objectivos e níveis de protecção a assegurar;
vii) Medidas de conservação e orientações de gestão
a adoptar.

Precisando:
Esta é a minha leitura do que está na lei, não sei qual será a de quem terá de a aplicar.
Nas versões iniciais do regime jurídico estas pessoas poderiam apresentar propostas de inclusão no cadastro (não se dizia a quem mas como a decisão sobre o cadastro é do conselho de ministros pressupunha-se que ao Governo). Todas as propostas eram assim sujeitas a discussão pública, em princípio. Na versão que foi aprovada as questões processuais estão mais claras mas em rigor o ICNB é que faz as propostas devendo ter em atenção as que lhe são apresentadas pelos cidadãos.
Há perdas e ganhos das versões iniciais para as finais, neste caso ganhou-se em clareza processual o que se perdeu em autonomia face ao Estado.

henrique pereira dos santos

segunda-feira, agosto 03, 2015

Na morte de um leão



Nos últimos dias tem havido uma grande comoção pela morte de um leão no país onde todos os dias morre gente por pura incompetência e venalidade do seu governo.
Um dos muitos argumentos usados para alimentar esta comoção dramática é o argumento da crueldade e do sofrimento causado ao animal pelo seu abate, sempre assente numa leitura estritamente emocional dos factos, sem a menor sombra de racionalidade.
Este argumento tem a sua raiz na substituição da humana, bem humana, responsabilidade de compaixão pelos animais pela ideia de que os animais são sujeitos de direito à felicidade e ausência de sofrimento.
Esta substituição é em grande parte sustentada numa visão idealizada da natureza e do mundo que identifica a dor e o sofrimento com o mal, como se a dor, o sofrimento e a morte não fossem tão intrinsecamente naturais como a vida, a alegria e a felicidade.
Para os que pensam que o abate de um leão por um predador como o homem é mais cruel e causadora de sofrimento ao animal que a morte natural dos animais selvagens, talvez seja bom lembrar que os animais selvagens não têm reforma, não vivem suavemente os seus últimos dias, pelo contrário, são vítimas da sua perda de vigor e capacidades, morrem escorraçados dos seus grupos sociais, vítimas de doenças, de fome, muitas vezes em agonias lentas de horas ou mesmo semanas, se por acaso ainda conseguem obter o mínimo de alimento sem que se tornem eles próprios presa de outros.
É bom lembrar que esta transferência da necessidade de conservação das espécies - uma necessidade estritamente humana, para o resto da natureza é absolutamente igual que se criem ou extingam espécies - para a necessidade de conservação dos indivíduos tem sido responsável por problemas sérios de conservação e, ainda recentemente, deu origem a uma extravangante tomada de posição de distintos académicos ligados à conservação na natureza, contestando a necessidade de combate a espécies invasoras.
Não é apenas indiferente para a conservação que se expandam as ideias relacionadas com os direitos dos animais, é mesmo um problema sério com o qual os conservacionistas fariam melhor em se preocupar, abandonando a tradicional condescedência para com ideias realmente nefastas e que muitas classificamos com tendo até algum efeito benéfico para a consciência ambiental.

quarta-feira, julho 29, 2015

A Dora Neto fez-me muito feliz


Para ilustrar o post escolhi um dos mapas que mais problemas me causaram, a comparação da densidade de cabras entre 1920 e 1955
O título poderia ser uma inconfidência ou, pior, uma inconveniência, mas na verdade nem conheço a Dora Neto (acredito que nos tenhamos cruzado uma ou duas vezes, mas eu tenho péssima memória).
O que queria era destacar o meu agradecimento pela paciência e disponibilidade comigo depois do Miguel Araújo (obrigado também ao Miguel) nos ter posto em contacto por mail, para que as bases de dados da minha tese fossem disponibilizadas de uma forma mais completa e profissional que pelo uso precário de uma nuvem, como fiz artesanalmente logo que me foi possível.
E este post serve para dizer que, com todos os erros e problemas que tenham, os dados que coligi sobre população, produções agrícolas e arrolamentos de gado, ao longo do século XX e por concelho, estão todos disponíveis neste link
Como não sou nenhum campeão da organização, qualquer dúvida que seja preciso esclarecer pode ser encaminhada pelo mail as1075017@sapo.pt, que eu tento responder, se for capaz.

domingo, julho 12, 2015

Discussão da estratégia de conservação

Aqui fica registado o meu contributo:


Peço imensa desculpa, mas não vou seguir este esquema de participação que é, em si mesmo, absurdo, visto que parte do princípio de que não há críticas de fundo ao documento, mas apenas melhoramentos pontuais.


Eu gostaria muito de fazer uma contribuição útil para se ter uma Estratégia de Conservação melhorada, mas infelizmente duvido que isso seja possível.

Para tal ser possível seria necessário que o documento em discussão fosse realmente um documento base para uma estratégia e que o processo desencadeado não fosse apenas uma peça de campanha eleitoral para as próximas legislativas.

Comecemos pelo começo: para que serve uma estratégia?

Uma estratégia, seja ela de conservação, seja ela para vender pastilhas elásticas ou para ganhar uma guerra, consiste numa “forma de pensar no futuro, integrada no processo decisório, com base em um procedimento formalizado e articulador de resultados” para usar uma definição simples, da wikipedia.

Ora o documento em discussão é um extenso repositório de listas de coisas (nesse sentido até bastante útil e demonstrando um esforço notável que gostaria de realçar) e de opiniões não fundamentadas sobre coisas aleatórias, sem a mínima articulação, sem a mínima formalização e sem qualquer orientação para resultados.

Uma estratégia é essencialmente um processo de escolhas e o documento em causa não escolhe quase nada e o que escolhe fá-lo de maneira totalmente incompreensível, com base em opiniões não fundamentadas e sem consequência lógica no processo decisório e não decorrendo da caracterização da situação de referência.

Uma estratégia que tem um texto de 90 páginas, a que se soma um quadro estratégico de 21 páginas é simplesmente inútil: ninguém consegue perceber o que se vai fazer amanhã, com que meios concretos, de que forma, com que parceiros e visando que resultados.

O que a estratégia deveria fazer é escolher o essencial, concentrar recursos na gestão do essencial, identificar os riscos associados e definir actuações de contingência no caso dos resultados serem diferentes do esperado.

A estratégia identifica erradamente os problemas e define uma afectação de recursos aleatória, incompreensível e sem qualquer ligação com os problemas identificados, repetindo os mesmos clichés sobre conservação que estão na base da melancólica situação institucional do sector da conservação (felizmente, não do património natural, que recupera exuberantemente, independentemente da agonia das políticas públicas do sector e da completa irrelevância da gestão pública do assunto).

Exemplos:

A estratégia entretém-se a falar de sistemas completamente irrelevantes e ineficientes, como o SIMBioN, a que ninguém liga nenhuma e não tem qualquer relevância social, ao mesmo tempo que ignora o Biodiversity4all numa evidente reprodução de uma longa tradição de deslumbramento perante a academia e os seus delírios, simultâneo de um desprezo pela cidadania que tem caracterizado a produção e disponibilização de informação em matéria de biodiversidade, com os resultados, tristes, conhecidos.

A estratégia fala dos problemas de conservação, a médio prazo para não se cair no ridículo total, da caça maior, referindo explicitamente duas espécies em franca expansão, o veado e o corço e uma terceira que é quase uma praga, o javali. Se isto são problemas de conservação considerados pela estratégia, é natural que a estratégia tenha ela própria um problema de conservação de um mínimo dos mínimos de utilidade.

A estratégia identifica como prioritário para conservação da flora a conservação ex-situ, sem qualquer espécie de fundamentação (e sem qualquer lógica quer estritamente de conservação, quer de afectação de recursos). Uma coisa é a estratégia identificar os problemas de gestão e de afectação de recursos que existem nos bancos de germoplasma e sementes, outra coisa é dizer que a conservação ex-situ é uma prioridade de conservação da flora em Portugal.

A estratégia identifica um conjunto de espécies invasoras a que é preciso dar prioridade, sem que perceba as razões da lista apresentada, da qual, extraordinariamente, não consta qualquer acácia (referidas mais à frente, noutro ponto, escrito provavelmente por outra pessoa, numa boa demonstração de completa desarticulação da estratégia proposta).

Acima de todos estes exemplos está este extraordinário extracto: “Numa primeira abordagem, a este nível as prioridades estarão focadas nos ecossistemas que suportam e estão relacionados com a promoção da resiliência a riscos, incentivando e apoiando a recuperação e a requalificação ambiental e paisagística das áreas afetadas, designadamente:

(i) áreas percorridas por incêndios rurais;

(ii) áreas sujeitas a perda de solo, por erosão, salinização, contaminação ou impermeabilização;

(iii) solos degradados por sobre exploração, designadamente das áreas com encabeçamentos desajustados

(iv) áreas com espécies exóticas invasoras; e

(v) áreas de extração de inertes”.

Note-se que em lado nenhum existe fundamentação para a identificação dos fogos como um grande problema de conservação (o padrão de fogo que conhecemos resulta exactamente do mesmo processo de alteração da paisagem que está na base da prodigiosa recuperação dos sistemas naturais a que estamos a assistir), e é extraordinário que se continue a falar de sobrepastoreio numa altura de clara perda de pressão de pastoreio (que aliás faz parte do processo de alteração da paisagem referido) e de processos reconhecidamente marginais, não falando já do papão da erosão numa altura em que um dos mais graves problemas ambientais que enfrentamos é o recuo da linha de costa pela redução de chegada de sedimentos à foz dos rios.

Não admira por isso que a estratégia tenha uma exótica lista de prioridades de conservação de vertebrados (a estratégia ignora olimpicamente os invertebrados, para além de uma ou outra referência à falta de informação sobre o assunto): ““Referem-se em particular os casos das seguintes espécies ou grupos de espécies: Lince-ibérico, Lobo-ibérico, Coelho, Saramugo, Águia-imperial-ibérica, Águia-pesqueira, Rola-comum, espécies de aves necrófagas, Priolo, Roaz-corvineiro, Raias e Tubarões.”.

Note-se que o lobo não está em perda (está seguramente estável, muito provavelmente em expansão, como em toda a Europa), que a Águia-imperial está em expansão (ou pelo menos estava até à ultima doença do coelho), que a Águia-pesqueira não tem o menor problema de conservação e por aí fora.

Se alguém pretende justificar o financiamento das pessoas e organizações que predam os recursos da conservação através destas espécies eu aconselharia um mínimo, mas um mínimo, de fundamentação, ainda que enviesada, para justificar esta lista onde, tal como está na estratégia, se reconhece apenas a captura do Estado pelos interesses particulares associados a cada uma das espécies citadas, sem a menor sombra de interesse estratégico de conservação.

Há apenas a excepção do coelho e, eventualmente, da rola-comum e do lince (embora, neste cado, a recuperação do lince seja um sub-produto da conservação do coelho).

E, já agora, pelo evidente escândalo que constitui, seria inteligente retirar desta lista a Águia-pesqueira já que por maior que seja o contorcionismo, não há qualquer hipótese de justificar a sua inclusão sem ser pelo mero tráfico de influências.
 
henrique  pereira dos santos

domingo, junho 07, 2015

Conservação contra Darwin

Advertência: temporariamente, e por acasos da vida, sou presidente de uma associação de conservação, a Montis (clicar para saber quem somos e o que queremos), mas gostaria de deixar bem claro que as minhas opiniões são apenas as minhas opiniões, muito diferentes, aliás, das opiniões, sobre os mesmos assuntos, de muita gente na Montis, incluindo nos seus órgãos sociais. O que nos junta é o facto que querermos fazer gestão directa de terrenos com objectivos de conservação, economicamente sustentada e de forma transparente e participada, não são as ideias que cada um de nós tem sobre as políticas de conservação, que, com muita frequência são muito diferentes e por vezes antagónicas entre as pessoas que se juntam na Montis.

Mapa dos movimentos de dois linces soltos no âmbito de programas de conservação da espécie

Várias conversas cruzadas sobre a conservação do lince, com várias pessoas diferentes, levam-me a fazer um ponto de situação sobre o que penso do assunto, neste momento.

É um assunto velho, já amplamente discutido neste blog, por exemplo aqui.

Nessa discussão assume um papel relevante a coincidência temporal entre o aumento da população de lince e os investimentos na sua conservação, em especial o faraónico programa de cria e solta de animais.

Sempre disse que essa coincidência era muito imperfeita (a recuperação do lince começa antes dos investimentos) mas sobretudo disse que as pessoas que assumem que a recuperação do lince se devia às suas acções de conservação iriam estar numa posição delicada quando a doença seguinte do coelho fizesse diminuir as populações de lince, apesar dos investimentos em conservação.

Esse é o ponto em que estamos, quando aflitas com os miseráveis resultados dos últimos anos, as mesmas pessoas que garantiam que a recuperação se devia às suas acções de conservação, fogem agora de fazer uma de duas coisas adultas e responsáveis: 1) assumir que afinal a recuperação do lince era essencialmente uma função da dinâmica da população de coelho e portanto insistir em largar bichos é uma perda de tempo e dinheiro; 2) assumir que a actual tendência de declínio dos linces se deve às suas acções.

O que me espanta é que se negue a teoria que está na base das críticas que eu (e não só, mas não somos muitos) faço ao programa de reintrodução ou reforço das populações de lince a partir da cria em cativeiro.

Na minha tese está este gráfico que fiz a partir dos dados oficiais sobre a evolução do número de linces na Andaluzia:


O que o gráfico mostra a resposta clássica de uma população à súbita escassez de recursos tróficos, no caso, a repentina escassez de coelho motivada por uma doença.

No primeiro ano em que os efeitos da doença na disponibilidade de presas para o lince se fazem notar, a população total mantém uma tendência de crescimento mas o número de crias diminui, mergulhando rapidamente depois. Só então os efeitos se fazem sentir na população global: diminuição do número total de animais e, o que não é possível ver no gráfico, diminuição da densidade de linces por aumento da área de distribuição e alargamento dos movimentos dispersantes.

Fenómenos do mesmo tipo estão descritos para outras populações, nomeadamente para a população de lobo e são coerentes com uma visão evolucionista da dinâmica das espécies, comandada, em grande medida, por disponibilidade trófica e doenças.

Perante estes factos há quem esteja a fazer reforços das populações de coelho e vacinações para manter níveis tróficos que garantam a sobrevivência das populações de lince, ao mesmo tempo de soltam linces criados em cativeiro.

Esta é uma abordagem pré-darwinista para a gestão do problema, com efeitos provavelmente negativos no tempo de resposta das populações à presença de doenças devastadoras.

Directamente à população de lince o melhor seria não fazer nada, mas a fazer alguma coisa o mais razoável seria capturar linces e mantê-los vivos alimentando-os artificialmente em vez de reforçar a competição por recursos escassos através da introdução de animais que poucas hipótese terão de produzir descendência viável. Na verdade a pressão trófica vai actuar sobre a produtividade das fêmeas e, de forma mais acentuada, sobre a mortalidade e viabilidade das crias nos primeiros dias de vida, para além da dispersão dos animais, diminuindo a sua densidade no território, diminuir a probabilidade de contacto sexual (como acontece com o lince solitário que está no litoral alentejano há dois anos, vivo, bem alimentado, em boas condições, mas irrelevante para a conservação da espécie por ausência de fêmeas que permitam a reprodução).

No caso da população de coelho, usar vacinação é um desastre (tal como os reforços populacionais de populações de coelho). A vacinação protege indivíduos e, no caso de populações em que os nascimentos são todos controlados (tipicamente as populações humanas ou de explorações pecuárias), pode ser usada para erradicar doenças ao impedir o seu desenvolvimento em qualquer indivíduo.

Mas usada para populações selvagens apenas significa que estamos a prolongar artificialmente a viabilidade de indivíduos a quem conferimos resistência à doença através da vacina, e que vão competir com os outros por recursos e reprodução, ocupando espaço e consumindo recursos, ao mesmo tempo de produzem crias não resistentes à doença.

Nesse sentido, ao adiar a morte por doença desse indivíduo estamos a prolongar a prevalência e efeitos da doença, ao contrário do que deveríamos procurar fazer: limpar a população de coelho, através da morte dos indivíduos não resistentes à doença, o mais rapidamente possível, permitindo que os individuos resistentes se tornem dominantes (processo que demorará mais tempo se os genes que conferem resistência forem recessivos).

O mesmo acontece quando se fazem reforços de população de coelho, com animais não resistentes, para sustentar a população de linces, prolongando a fragilidade da população de coelho face à doença.

Na verdade o que deveríamos estar a fazer é investir todos os recursos possíveis na criação de condições para que os coelhos de reproduzam o mais possível, não nos preocupando com os muitos que iriam morrer por falta de resistência à doença, mas aumentando a probabilidade de haver um maior número de indivíduos resistentes. Poderíamos fazer a selecção genética de animais resistentes para reforçar as populações de coelho, até com métodos relativamente simples de ter animais em cativeiro expostos à doença, dos quais grande parte morreria por falta de resistências, e seleccionando os resistentes para reprodutores e para reforços da população de coelho.

Não tendo eu qualquer objecção à caça (ver, por exemplo, aqui) acho que esta é uma das situações em que se justificaria adoptar uma moratória em relação à caça ao coelho, não porque me preocupe o número de coelhos que são mortos pelos caçadores (não são os que morrem que me preocupam na conservação das espécies, mas os que nascem e se mantêm vivos até à idade reprodutiva) mas porque a caça mata indistintamente indivíduos com resistências e sem resistências, na melhor das hipóteses, mata preferencialmente indivíduos resistentes à doença, na hipótese mais provável, atrasando o processo de substituição de reprodutores não resistentes por reprodutores resistentes à doença.

E é isto, são estes os meus argumentos para não apoiar as actuais políticas de conservação do lince porque, para além de caras e ineficazes (como contribuinte sinto-me simplesmente roubado), a sua probabilidade de êxito é directamente proporcional à probabilidade de Darwin estar errado.

E eu ainda confio mais em Darwin que nos decisores de políticas de conservação para tentar perceber e gerir a conservação de espécies.

domingo, outubro 19, 2014

segunda-feira, novembro 04, 2013

Silvatica



Estamos a criar uma nova associação de conservação, a Silvatica, Sociedade de Conservação da Natureza, inspirada no modelo da ATN, compra e gestão de terrenos para conservação.
Temos um colóquio inaugural com um bom naipe de oradores, sobre gestão do fogo e do território.
Seja bem vindo quem vier por bem.
henrique pereira dos santos
PS Pergunta-se, e bem, onde é. É em Vouzela que, por si só, vale a visita

quinta-feira, setembro 26, 2013

Uma ideia trágica para o mundo rural



"De modo que este país da vinha e da oliveira, das frutas magníficas e das flores preciosas, podendo oferecer no grandes mercados, com antecedência de bastantes dias, os produtos mais caros e mais raros, de maior procura e consumo, vive agarrado à miséria da sua cultura de cereais. Porque não a abandonará?”".

Esta citação, por muito que muitos estranhem, é de António Oliveira Salazar.

Salazar, no ensaio de 1916 que cito (Questão cerealífera: o trigo), e que este excerto traduz bem, faz uma extensa análise da questão cerealífera, em especial do trigo, muitíssimo bem informada e demonstrando uma cultura agronómica notável, tanto porque sabia de perto o que era o campo dos pequenos agricultores, como pela quantidade e solidez das fontes que usa, seguramente as melhores disponíveis na altura, sobre a questão agrária em Portugal.

E traduz fielmente a tragédia das elites que se debruçaram sobre o mundo rural português (e em grande parte ainda hoje isso se verifica).

Quase todos formados pelas escolas da Europa central, ou pelo menos fortemente influenciados por elas (como Salazar, que cita o escol dos que pensaram sobre agricultura no país, nesse tempo), a agricultura assume uma primazia absoluta (era preciso alimentar a nação) a que se junta, em complementaridade, a produção florestal.

A pecuária, em especial de bovinos, está muito entranhada nesta discussão, mas como submundo da agricultura e, em especial, como sub-utilização de um espaço que poderia ser agrícola (muito interessante a discussão do último quartel do século XIX sobre os avanços e recuos das áreas cultivadas, em especial para trigo, estando sempre presente o famoso mito dos incultos e do abandono, nomeadamente o recuo pontual da produção de trigo e, concomitante, aumento da produção pecuária, considerada uma extensificação da produção prejudicial à nação, embora favorável ao produtor).

A ideia trágica é a de que a produção em regime pastoril, em especial de pequenos ruminantes, é matéria que não merece grande consideração, ou que merece análises semelhantes às que são feitas para os incultos que é fundamental erradicar.

Ora o que começo a aprender é que esta ideia, que ainda hoje é dominante, e que foi dominante seguramente nas elites que discutem o mundo rural nos últimos 150 a 200 anos, desde a transição do antigo regime para a economia moderna, é uma tragédia que se abateu sobre o mundo rural, impedindo uma discussão equilibrada sobre a produção, a riqueza e a sustentabilidade do mundo rural.

Está na altura dos nossos engenheiros florestais passarem a engenheiros de montes e recolocar a pastorícia no seu devido lugar na discussão do mundo rural.

É, como sempre foi, embora raramente reconhecido, a chave do mundo rural que nos coube em sorte gerir, mesmo que a agricultura seja, como sempre foi, o motor que põe o maquinismo em movimento.

henrique pereira dos santos

domingo, setembro 08, 2013

Carta Aberta ao Professor Jorge Paiva sobre incêndios florestais



Caro Professor Jorge Paiva,

Sou henrique pereira dos santos, não sei se se lembrará de mim.
Temo-nos cruzado aqui e ali, mas durante algum tempo cruzávamo-nos com alguma frequência no comboio das seis da manhã, o Professor indo para Coimbra, eu a ir para o Porto.

Uma vez por outra, conversámos brevemente sobre as nossas divergências quer em relação ao fogo, quer em relação à vocação florestal do país, e nesse contexto dei-lhe o meu livro “Do tempo e da paisagem” por ser a maneira mais fácil de fundamentar as minhas opiniões.
O Professor chegou a dizer-me depois que não concordava com o que eu dizia no livro, mas penso que nunca conversámos exactamente sobre as razões de discordância.

Escrevo-lhe agora como resposta ao seu artigo de ontem no Público “Incêndios florestais, causas e consequências”.
Com certeza há várias coisas em que concordamos, difícil seria ser de outra maneira.

Noutras não sei se discordamos ou se simplesmente damos importância diferente aos diferentes factores em presença para explicar a realidade dos incêndios florestais.
A mais profunda destas diferenças está no valor que atribuímos à pastorícia no sistema de produção orgânica tradicional. Carlos Aguiar é a pessoa que mais insistentemente fala na gestão da fertilidade associada a estes sistemas de produção, sendo quem me indicou os trabalhos de George Estabrook, muitíssimo interessantes e luminosos, deste ponto de vista.

Infelizmente penso que Estabrook terá morrido antes de conseguir publicar o livro que reunia todos os seus estudos sobre Portugal.
Para além deste aspecto, onde não penso que exista divergência, mas apenas uma diferença de valoração deste facto essencial na interpretação da evolução da paisagem, há no seu artigo algumas coisas que francamente não compreendo, de tal maneira me parecem pouco úteis para se chegar a soluções razoáveis de gestão do fogo em Portugal.

A primeira, menos importante, é a contabilização que faz dos carvalhos cortados para os descobrimentos. Confesso que 5 milhões de árvores, em várias dezenas (na realidade, centenas) de anos, dando valores que dificilmente passam as duas árvores cortadas por hectare, me impressionam muito pouco. Se um carvalhal tiver duzentas árvores por hectare, estamos a falar de um corte de 2% ao longo de várias dezenas de anos, ou seja, uma intensidade de uso perfeitamente compatível com a manutenção dos carvalhais.
Não vejo pois como pode esse processo ser comparado com a arroteia para a agricultura, a que está associada a arroteia para pastorícia, numa proporção que, de acordo com Carlos Aguiar (se a minha memória não estiver a trair o que diz Carlos Aguiar), estará na proporção de 5 a 7 hectares pastoreados para um hectare cultivado, se se quiser manter a fertilidade necessária à produção agrícola.

Provavelmente este processo, quinhentos anos antes das descobertas, teve muito mais influência no recuo das matas, como se depreende do facto das alterações da linha de costa da região Centro começarem a ser visíveis desde o século X, e estarem bastante avançadas já no tempo de D. Dinis, o suficiente para o assustar com o avanço contínuo das areias que formaram a ria de Aveiro, muito antes das Descobertas, portanto.
Também não entendo como diz que em meados do século XIX, quando são criados os serviços florestais, o país estava praticamente desarborizado (no que estamos de acordo) e imputa ao caminho-de-ferro um papel relevante na desarborização. É que o caminho-de-ferro começa a expandir-se na segunda metade do século XIX, tendo o seu apogeu pelos anos 40 e 50 do século XX, num processo totalmente contemporâneo da expansão da taxa de arborização do país.

O mesmo tipo de incongruência temporal é visível no seu argumento de que o eucalipto empurrou as populações para fora do mundo rural “Além de terem acabado com os Serviços Florestais, "obrigaram" o povo a abandonar os montes por estarem eucaliptados”.
É que o processo de abandono rural e emigração é dos anos 50 e, sobretudo, da década de 60 do século XX, e a expansão do eucalipto dada sobretudo dos anos 80 e 90 (mesmo que se considere a década de 70 como a do arranque da expansão do eucalipto, já o povo tinha abandonado os montes). Ou seja, há, no seu artigo, uma clara inversão das relações de causa/ efeito: é o abandono rural que abre espaço ao eucalipto (em rigor, à produção florestal, juntamente com a substituição dos estrumes orgânicos pelos adubos de síntese) e não o eucalipto que empurra o povo para fora da montanha. Usando a sua terminologia, é o povo que empurra o eucalipto para as serras e não a inversa.

Também não tem qualquer base factual a sua afirmação de que “os eucaliptais, tal como os pinhais (resinosos), também ardem melhor que as florestas de folhosas, por produzirem essências”.
Um eucalipto ou um pinheiro até podem arder melhor que um carvalho, mas num povoamento o que interessa é a estrutura do povoamento, e não a essência dominante.

É assim que, por esta ordem, ardem mais os matos (que foi o que foi substituído pela produção florestal, os carvalhais há muito que não existiam a não ser alguns vestígios reliquiais), depois os pinhais e depois os eucaliptais. A amostra para carvalhais é demasiado pequena, e muito sujeita a erros, mas os dados (poucos e imprecisos) sugerem que ardem bem mais que os pinhais e eucaliptais.
A explicação é simples: a grande maioria dos carvalhais que temos são carvalhais jovens, resultantes do intenso processo de regeneração natural que está a ocorrer como consequência do abandono rural, e não povoamentos maduros em que a sombra controla os matos heliófilos, comportando-se em relação ao fogo mais como matos altos que como carvalhais maduros.

Mas, mais importante, os eucaliptais, como os pinhais e os carvalhais, não são todos iguais, e todos eles ardem mais ou menos em função da estrutura do povoamento.
É assim que os eucaliptais do minifúndio das regiões de elevada produtividade primária ardem mais que os eucaliptais das celuloses, geridos intensamente e com taxas de prevalência do fogo que são menos de um quarto da média do país.

Paulo Fernandes demonstra isto de forma muito clara quando compara vários povoamentos e os caracteriza em função da espécie dominante e da sua estrutura, concluindo, como aliás é intuitivo, que a estrutura do povoamento é muito mais relevante que a espécie dominante para avaliar a sua relação com o fogo.
Se dúvidas houvesse, o incêndio do Caldeirão do ano passado, que atingiu cerca de vinte mil hectares, percorreu, em 90%, áreas de sobreiro, que ardeu como arde qualquer árvore (como cada espécie reage depois ao fogo é outra discussão, mas que todas ardem, disso não há dúvida).

Não gostaria de terminar sem falar de alguns aspectos em que estamos de acordo, seguramente:
1)      É o abandono e o crescimento dos matos que está na origem deste padrão de fogo;
2)      É preciso encontrar formas de gerir este combustível que todos os anos se acumula no nosso mundo rural (não só nas matas de produção mas em dois terços do território, com ou sem povoamentos florestais)
3)      O combate deveria ser profissionalizado, levado a cabo por profissionais da floresta (eu diria da paisagem, mas com certeza serei acusado de corporativista) que a conhecem e que todo o ano trabalham nela

Peço-lhe por isso que leia esta petição (http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=P2013N70639) e, se achar razoável, que nos ajude a dar-lhe divulgação e a centrar a discussão nos dois pontos em que estamos de acordo: 1) A organização de uma gestão profissional do fogo; 2) A necessidade de encontrar formas de gerir o combustível que se acumula.
É que por mais que estranhe a sua visão do futuro do país com “as nossas montanhas cobertas de rocha nua” numa altura em que a recuperação dos sistemas naturais nunca terá sido tão pujante e intensa, penso que na definição de modelos de actuação prática estaremos de acordo no essencial.

Com as minhas desculpas pelo atrevimento deste leigo em criticar quem seguramente sabe mais,
henrique pereira dos santos

sexta-feira, setembro 06, 2013

O amigo americano

Carvalhal-americano ardido em Vizela - agosto 2013

Em comentários sobre um post anterior, o Luís Lavoura e Jaime Pinto (não levo a mal as gralhas no meu nome) teceram rasgados elogios à espécie Quercus rubra, o carvalho-americano.

De Luís compreendo-os (Luís é produtor florestal; se eu quisesse produzir madeira de carvalho também plantaria Q. rubra), do Jaime fiquei muito surpreendido.

O carvalho-americano é tão exótico na flora Portuguesa como o eucalipto, e é considerado por muitos como espécie invasora devido à elevada capacidade de germinação da sua bolota. O carvalho-americano não é resistente ao fogo e arde como todas as outras espécies florestais.

Eu acho o carvalho-americano bastante feio. As cores berrantes da sua folhada no outono não condizem com as cores outonais lusas e a sua casca falta aquela linda rugosidade dos carvalhos nacionais. São gostos...

Eu proibo plantar carvalhos-americanos em projetos de restauro ecológico da minha empresa, por não servir objetivos ecológicos mas sim de produção, dando preferência a carvalhos nacionais (isto é, quando os planto porque cada vez mais me convenço que plantar carvalhos é deitar dinheiro na rua que pode ser muito mais bem aproveitado em outras ações de restauro como a eliminação de espécies exóticas em áreas de conservação).

Mas o que acho curioso é como duas espécies exóticas de produção podem originar sentimentos tão opostos.

Henk Feith

quarta-feira, setembro 04, 2013

O movimento ambientalista e os fogos



Tenho ouvido, estupefacto, declarações de ambientalistas sobre os fogos, uns procurando usar os fogos no seu combate ao eucalipto, outros aproveitando para falar na gestão das áreas protegidas (este ano menos, porque, por puro acaso, as áreas protegidas têm sido mais poupadas) e outros para falar nos grandes problemas ambientais causados pelos fogos (o menu é grande, mas o meu preferido é o problema do sal da água salgada usada para apagar fogos, referido pelo Presidente da Quercus).

Em geral têm uns narizes de cera sobre o assunto, que repetem à exaustão, em especial o ordenamento florestal e a prevenção (sendo que por prevenção se entendem muitas coisas diferentes).

Mas se existe uma exploração florestal que arde estatisticamente menos que a generalidade do país, o movimento ambientalista é contra porque é a exploração industrial de eucalipto (que é minoritária dentro da área de eucalipto do país, de maneira geral muito mal gerida, mais susceptível ao fogo, mas provavelmente mais biodiversa) e é preciso estar sempre contra o eucalipto.

O mais curioso disto é o progressivo desfasamento entre o discurso científico sobre os fogos e o discurso ambientalista.

Dentro do mundo científico há um amplíssimo consenso em matérias centrais que o discurso ambientalista trata:

1) os fogos não são, em si mesmos, positivos ou negativos, depende das circunstâncias, diz o discurso científico consensual, os fogos são um desastre ambiental, diz o movimento ambientalista;

2) Não existe qualquer evidência de relação entre eucalipto e aumento da incidência de fogos, diz o discurso científico consensual (que inclui pessoas relevantes do movimento ambientalista, vejam-se os trabalhos científicos de Francisco Moreira ou Joaquim Sande e Silva, por exemplo), os eucaliptos induzem fogos, diz o movimento ambientalista;

3) O fogo não é um problema que se resolve, é uma circunstância com que se aprende a conviver (formulação brilhante de José Miguel Cardoso Pereira), diz o discurso consensual sobre fogos florestais, o fogo resolve-se pelo ordenamento, pelo investimento na prevenção e apagando os fogos o mais rapidamente possível, diz o movimento ambientalista;

4) Salvo algumas circunstâncias muito delimitadas (em especial alguns povoamentos de coníferas ou habitats específicos como os zimbrais) o fogo não tem grandes efeitos ambientais negativos e a recuperação é muito rápida, diz o consenso do discurso científico, qualquer fogo sobre uma área com maior interesse natural é imediatamente catalogada pelo movimento ambientalista como uma perda irreparável, ou, sendo reparável, que demorará dezenas de anos a recuperar.

Poderia continuar mas não vale a pena.

Chegam estas ilustrações.

O movimento ambientalista nasceu das elites instruídas das universidades que prezavam a sua reputação, pelo que um dos princípios de intervenção pública era a garantia de segurança científica do que é dito.

Mas ao evoluir para um movimento populista e mediático o problema da reputação passou a ser outro: o que é preciso é criar mensagens simples para a turba perceber e não a confundir com discursos complexos, como são, inevitavelmente os discursos fundamentados sobre assuntos complexos, como os fogos e os eucaliptos, por exemplo.

Deve ser por isso que mesmo os investigadores que trabalham o assunto do fogo, e que publicam coisas diferentes do que é dito pelas organizações onde militam e têm actividade, não se revoltam perante a patente ignorância do discurso ambiental sobre os fogos, e deixam que outros académicos, que na verdade nunca escreveram uma linha sobre fogos numa perspectiva científica, ocupem o espaço mediático com as mais espantosas afirmações, de maneira geral não fundamentadas, mas com as costas quentes pelo seu prestígio académico ... noutras áreas que não a ecologia do fogo.

O movimento ambientalista descolou da sociedade quando o seu financiamento deixou de depender dos sócios e, em matérias fulcrais, como os fogos e o eucalipto (e, seguramente, não são as únicas), descola da academia, preferindo a espuma dos dias do que aparece nos jornais.

O que cada um faz com a sua reputação, só a ele diz respeito, mas seria bom que os senhores dirigentes das ONGAs percebessem que quando deixarem os cargos em que estão (eu sei que há alguns que acham que são posições vitalícias, mas não são) as suas organizações terão de lidar com a herança que lhes deixarem, nomeadamente em questões de reputação.

E se a coisa continua assim, deixarão heranças pesadas que demorarão mais anos a resolver que as matas a recuperar dos fogos.

Tenho pena.

henrique pereira dos santos

sexta-feira, agosto 30, 2013

Um texto execrável


 
Há bastante tempo que deixei de me interessar pelo que escreve habitualmente Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias.

Mas desta vez resolvi interessar-me porque várias pessoas, cuja opinião prezo e considero, me remeteram um texto sobre fogos, acompanhado de grandes elogios.

Ora eu acho esse texto verdadeiramente execrável.

Como esta é uma crítica bastante violenta, passo a tentar fundamentá-la.

Passo por cima dos primeiros parágrafos, que não acrescentam nem atrasam (são uma visão ligeirinha e pouco fundamentada da história do movimento ambientalista, passando por cima de todo o trabalho da escola de arquitectura paisagista e dos florestais, por exemplo, em matéria de políticas públicas de ordenamento do território) e centro-me no que realmente conta.

“As reportagens televisivas mostram-nos, sistematicamente, bombeiros e populações cercados por eucaliptos em chamas.”

Confesso, já o disse noutro contexto, que discutir fogos a partir do que aparece na televisão é como discutir física quântica a partir dos livros do Tio Patinhas. Mas independentemente disso, não é simplesmente verdade que as imagens dos fogos sejam bombeiros e populações cercadas por eucaliptos em chamas. A grande maioria dos fogos nem sequer é em povoamentos florestais. E quando são, não são sistematicamente eucaliptos, variam de região para região.

“Chegado a Portugal em 1829, esta espécie exótica ocupa agora 26% do espaço florestal, e é o grande combustível dos incêndios florestais.”

VSM diz-nos aqui que 74% do espaço florestal não é eucalipto, mas que o eucalipto é o grande combustível dos incêndios florestais.

Se isso for verdade, os dados indicarão uma profunda relação positiva na sobreposição das áreas ardidas e nas áreas de eucalipto e, para além disso, as áreas de eucalipto seriam a maioria das áreas ardidas.

Ora, nada disso é verdade. Não só as áreas ardidas tem uma distribuição muito diferente da área de eucalipto, como a maioria do que arde são matos, e ainda é preciso juntar as outras espécies florestais, nomeadamente o pinheiro.

Factualmente VSM está errado neste ponto central da sua argumentação.

Mas isto não me faria escrever este texto: VSM não estuda fogos, não se informa, enquanto responsável pelo Programa Gulbenkian de Ambiente nunca ninguém lhe conheceu um especial interesse na matéria, nem contributo para resolver o problema, é pois natural que diga coisas erradas sobre um assunto que desconhece.

Um direito que nos assiste a todos é o direito à asneira e apesar do tamanho da asneira não me parece que se justificasse perder tempo a corrigi-la, tanto mais que são frequentes as pessoas que fazem questão em impedir que os factos influenciem as suas ideias.

“Quando vejo ministros, com ar pesaroso, lamentarem a morte dos bombeiros, apetece-me perguntar-lhes: "Onde estavam os senhores no dia 19 de Julho de 2013?". Nesse dia foi aprovado, em Conselho de Ministros, o ignóbil Decreto-Lei n.º96/2013, que, debaixo da habitual linguagem tabeliónica usada para disfarce, estimula ainda mais a expansão caótica da plantação de eucaliptos, aumentando o risco de incêndio, e fazendo dos bombeiros vítimas duma política de terra queimada ao serviço dos poderosos.”

É aqui que o caldo se entorna, quando Viriato Soromenho Marques, com sólida formação em filosofia, resolver usar o argumento que já Daniel Deusdado tinha usado nesta matéria: existe uma relação entre os fogos de Agosto e uma lei florestal de Julho. Curiosamente nem se dão conta de que ao defender o status quo anterior, estão a defender a circunstância legal em que se desenvolveram os actuais fogos.

Uma tal barbaridade já não pode ser simplesmente atribuída à falta de conhecimento do assunto, é mesmo pretender torturar os factos até que digam o que se pretende.

E é essa voluntária vontade (passe o pleonasmo) de contrabandear factos para os pôr ao serviço de uma tese pré-definida que torna toda este texto particularmente podre, em especial tendo em atenção na forma como é concluído.

Eu teria vergonha de usar a morte de terceiros, em especial nestas circunstâncias, para procurar ter ganho de causa numa discussão política, mesmo que com base em factos solidamente irrefutáveis.

Pelos vistos Viriato Soromenho Marques não tem essa vergonha, nem mesmo quando usa argumentos factualmente falsos.

Viriato Soromenho Marques tem todo o direito de ser contra a exploração de eucalipto em Portugal.

Já é mais duvidoso que tenha o direito de associar a exploração de eucalipto apenas ao interesse dos poderosos, esquecendo que dos 750 mil hectares de eucalipto, apenas 150 mil são geridos pelas celuloses, sendo a grande maioria dos outros 600 mil de pequenos proprietários.

E esquecendo toda a riqueza criada, incluindo o emprego associado, como se fosse irrelevante para o país prescindir de uma das suas fileiras florestais mais competitivas internacionalmente.

E mais do que isso, VSM esquece que em muitas áreas de produção de eucalipto a alternativa à sua exploração é o abandono, potenciador de fogos mais severos e extensos.

Mas tudo isso cabe na discussão política, por pobres que sejam os argumentos de Viriato Soromenho Marques, neste caso.

O que eu não aceito, o que acho mesmo execrável, é que Viriato Soromenho Marques conte uma história da carochinha sobre a relação entre a produção de eucalipto e os fogos, usando a morte de bombeiros a favor do seu argumento político.

Este aspecto em concreto torna o texto verdadeiramente execrável.
henrique pereira dos santos