quinta-feira, novembro 18, 2004

Os Laboratórios de Estado e o ambiente

Por Estrela Figueiredo
Investigadora

Umas horas de pesquisa na internet são o suficiente para concluirmos que as instituições chamadas Laboratórios de Estado estão envoltas em grande mistério. Até saber quantos eles são é difícil. No site do Ministério da Ciência (MCIES, www.mcies.pt) contamos 11 Laboratórios, mas a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT, www.fct.mces.pt) diz-nos que são 13. Mesmo não tendo em conta que um deles não pertence ao MCIES e portanto não consta nessa página, verificamos que nenhum dos sites oferece a informação correcta. Em ambas as listas ainda está o Instituto Geológico e Mineiro (IGM), que já foi extinto e agora faz parte do INETI. Este por sua vez deixou de ser o Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial (INETI) para passar a ser o Instituto Nacional de Tecnologia e Inovação (também INETI). Na lista da FCT ainda constam o Instituto Nacional de Investigação Agrária (INIA) e o Instituto das Pescas e do Mar (IPIMAR) que foram integrados no Instituto Nacional de Investigação Agrária e das Pescas (INIAP), como se pode constatar na lista do MCIES. Parece confuso? Mas ainda se complica mais!... Ao continuarmos a pesquisa, visitando as páginas destes Laboratórios, a informação que encontramos nem sempre é clara. Para aqueles que foram extintos ou integrados noutros, continuam a existir as páginas antigas, onde muitas vezes, a única referência à nova estrutura só se encontra no endereço (p. ex, no INIA, http://www.iniap.min-agricultura.pt/inia/, ou no IPIMAR http://ipimar-iniap.ipimar.pt/) . A página do INETI-Inovação (http://www.ineti.pt/), é só uma 'capa' que nos remete para a do INETI-Industrial e para a do EX-IGM. Verifica-se também que nas páginas dos laboratórios, em geral, não existe informação sobre quem lá trabalha. Acima de tudo, esta descoordenação e falta de transparência reflectem a indefinição que rodeia os laboratórios. Apesar de ter sido iniciado em 1997 um 'Programa de Apoio à Reforma dos Laboratórios de Estado' (ver www.fct.mces.pt) no qual, entre 1997 e 2001, se investiram 17 milhões de Euros em projectos, passados 7 anos ainda se continuam a fazer fusões, extinções, mudanças de nome e restruturações desses Laboratórios, sem meta à vista.

Se olharmos para a lista dos 11 ou 13 Laboratórios de Estado vemos que quase todos estão de algum modo relacionados com o ambiente. Por exemplo, o estudo de clima (IM - Instituto de Meteorologia), terra (EX-IGM, INIA), mar (IPIMAR, IH - Instituto Hidrográfico) e energias (INETI, ITN - Instituto Tecnológico e Nuclear) fazem parte das missões dos Laboratórios. E talvez seja por esse motivo que eles deparam com tantas dificuldades. É que o estudo do ambiente é dispendioso, requer um grande investimento em meios materiais e humanos, e embora nos exemplos acima possa ser (por vezes, mas não por norma) lucrativo, noutros casos os dividendos não se medem em termos de cifrões. E nesta sociedade que caminha a passos largos para o sistema do 'quem não vende não come', vários Laboratórios começam a ter o chamado 'sector comercial' onde se tenta vender de tudo, desde previsões meteorológicas (IM, ver www.meteo.pt) a análises laboratoriais (INSRJ - Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, www.insarj.pt), prática questionável visto serem (ainda) serviços públicos, financiados pelos impostos. Enquanto isso, outros estudos ambientais, menos 'vendáveis', ficam por acabar. Por exemplo, continua por completar a carta geológica de Portugal, existindo uma grande área do país onde ainda não foram realizados levantamentos (ver www.igm.ineti.pt), e no entanto 'extingue-se' o IGM. Se isto sucede em áreas da ciência onde a falta de conhecimentos pode afectar a população de forma directa, em áreas onde o conhecimento não traz contrapartidas imediatas, como é o caso da biodiversidade, a situação torna-se dramática.

Cientes deste problema, muitos biólogos adoptam a perspectiva antropocêntrica de que necessitamos de conhecer a biodiversidade para melhor a utilizarmos, para podermos encontrar nela a solução para os nossos problemas, desde a cura de doenças à despoluição de áreas contaminadas. Tentam justificar deste modo o investimento no seu estudo e obter financiamentos para projectos. Mas, a meu ver, o investimento no estudo da biodiversidade nem deve ser justificado. Deve considerar-se que é um direito termos informação correcta e actualizada sobre o mundo natural que nos rodeia. O estudo do mundo natural não deve, à partida, ser visto como uma actividade económica que possa dar lucros, mas sim uma actividade financiada pelo Estado que se deve desenvolver em instituições públicas, tendo em vista melhorar o conhecimento científico e informar a população. Os Museus de História Natural, com colecções biológicas e pessoal especializado, são por excelência, os locais onde esta actividade pode ser desenvolvida nas melhores condições.

Entre os Laboratórios de Estado, há pelo menos dois que possuem colecções biológicas de importância significativa. No que diz respeito à fauna, as colecções existentes no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT, ver www.iict.pt) têm grande valor, principalmente devido à perda das colecções do Museu Bocage, destruídas pelo fogo há algumas décadas. Incluem colecções relevantes de mamíferos, aves, répteis, batráquios, moluscos, insectos e outros artrópodes, entre outros grupos, na sua maioria de origem tropical. Com apenas três investigadores, que se dedicam aos grupos em que são especialistas, e sem um preparador (ou seja, para aumentar as colecções, o trabalho de preparação tem de ser feito pelos investigadores), é praticamente impossível estudar toda a informação que se encontra nas colecções.

Quanto às colecções de plantas, existem vários Herbários nos dois Laboratórios de Estado, INIAP e IICT. A informação disponível numa base de dados internacional (sciweb.nybg.org/science2/IndexHerbariorum.asp) indica que no INIAP se encontram três Herbários, conhecidos pelas siglas de LISE, LISFA e ELVE, com um total de cerca de 155000 espécimes. Além de terem um staff muito reduzido, alguns destes Herbários enfrentam o problema de não se enquadrarem nos objectivos específicos da instituição. Por exemplo, um Herbário especializado em flora espontânea, como é LISE, está vocacionado para o estudo de flora e vegetação de áreas naturais, encontrando-se desenquadrado numa instituição que se dedica à investigação sobre o meio agrícola. Este facto tem razões históricas, sendo fruto de investigação desenvolvida no passado fugindo aos objectivos específicos da instituição. No IICT encontravam-se dois Herbários: LISC e LISJC. O segundo foi extinto recentemente e as suas colecções estão a ser incluídas em LISC. Este Herbário, agora com c. 270000 espécimes é, a nível nacional, o segundo em termos de número de exemplares (o primeiro é o da Universidade de Coimbra). É um Herbário essencialmente africano, que possui, nomeadamente, o que se pensa ser a melhor representação em Herbário, a nível mundial, da flora de Angola. O IICT está agora em fase de restruturação, sendo presidido por um economista, e as suas colecções biológicas encontram-se no Departamento de Ciências Naturais geridas num programa intitulado 'Biodiversidade e Gestão de Recursos Naturais' sob coordenação de uma colaboradora reformada, reflexo da dinâmica que se pretende dar a esta área de investigação (ver www.iict.pt/dociict/d040801.pdf).

É de consenso geral que é urgente que se tomem medidas para conservar e estudar estas colecções. Não abordando sequer as dificuldades em manter as colecções em boas condições (impedindo a sua degradação por meio de infestações, humidade, etc) refiro o problema da sua manutenção em termos científicos. Por exemplo, uma colecção onde não se faz a actualização das determinações dos exemplares de acordo com o avanço da ciência, não é funcional e rapidamente se torna um depósito de plantas ou animais onde só o especialista pode encontrar informação. As colecções biológicas têm esta particularidade porque a sistemática (classificação) dos seres vivos não é imutável, mas vai sendo melhorada à medida que os conhecimentos aumentam. Estas alterações de classificação (que se reflectem nos nomes latinos dados às plantas e animais) tem de ser também transpostas para as colecções, um trabalho que requer pessoal especializado. Além disto, as colecções tem de ser enviadas aos especialistas que estudam os respectivos grupos, por empréstimo, o que se convencionou internacionalmente que deve ser feito sem se cobrarem custos, por se considerar que se recebe em troca o estudo e actualização do material emprestado. Não se pense, portanto, que as colecções biológicas podem ser tratadas como peças de museu, integradas num Instituto Português de Museus sob a alçada de um conservador formado em Museologia, situação absurda que, no entanto, se tem verificado noutros países. Estas colecções devem ser integradas numa instituição científica, sob tutela do Ministério da Ciência e necessitam de pessoal investigador e técnico especializado em biologia.


A ideia de que as várias colecções biológicas que se encontram dispersas e negligenciadas, tanto em Laboratórios como em Universidades, deveriam ser integradas num Museu de História Natural tem sido repetidamente lançada ao longo dos anos. Tem esbarrado sempre com vários argumentos, devidos sobretudo ao paroquialismo, à oposição generalizada face a qualquer proposta de mudança de fundo e ao poder da gerontocracia e autocracia em muitas instituições. No entanto, devemos continuar a lutar por esta ideia de unificar as colecções, não necessariamente sob o mesmo tecto, mas dentro de uma instituição única e autónoma, com orçamento e quadro de pessoal próprios. Além de ser a melhor solução para o seu estudo e conservação, seria também o preencher de uma lacuna, podendo este património vir a constituir um verdadeiro Museu Nacional de História Natural, com colecções de relevo e um bom quadro de investigação, cuja função primordial não seja lúdica mas sim científica. Já temos muitos parques de diversões mas não temos uma instituição com capacidade para fornecer informação sobre o mundo natural que nos rodeia.

Para ilustrar o que, a meu ver, deve ser um bom Museu de História Natural, termino com uma história que pode servir de inspiração para alguns. É a história de um rapazinho precoce a quem deram uma cobra de estimação. A cobra morreu passado pouco tempo e o rapaz levou-a ao Museu de História Natural, pediu para falar com o especialista em répteis, e disse-lhe que achava que aquela cobra não era uma cobra verdadeira. O especialista respondeu que tinha razão, que era uma cecilia, um anfíbio, e que se ele quisesse, o exemplar podia ficar na colecção do museu. Passaram-se muitos anos. O rapaz, agora adulto, entra para o quadro dos cientistas do mesmo museu. Tornou-se um zoólogo especializado em anfíbios, particularmente cecílias! Procura nas colecções e encontra o exemplar que doou anos atrás. Mas o nome que lhe deram estava errado, e ele agora podia corrigi-lo, o que fez assinando a etiqueta com a satisfação de ter atingido uma meta.

É uma história verdadeira que se passou no Museu de História Natural de Londres. Talvez pudesse ter-se passado em Portugal, se houvesse um Museu de História Natural funcional com especialistas nos diferentes grupos de seres vivos, se tivéssemos colecções bem conservadas onde se guardassem os espécimes doados e eles pudessem ser facilmente encontrados passados 30 anos, se os cientistas saíssem dos gabinetes para responder a uma pergunta de uma criança, se uma criança com interesse em história natural conseguisse ser de tal modo motivada que se tornasse num cientista de renome. Mas talvez sejam demasiados ses...

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