Por Humberto Rosa
Presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais
A investigação estatal em ciências naturais assistiu nos últimos tempos a um retrocesso. A decisão de fundir laboratórios com vocações distintas foi justificada como um acto racional de gestão. No entanto, não encontra explicação do ponto de vista científico.
Foi por impulso de médicos naturalistas que nasceu, nos primórdios do século XX, a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais. Durante décadas esta designação serviu de cobertura a um amplo conjunto de áreas e actividades científicas e técnicas, da botânica à zoologia, das ciências da terra às ciências do mar, das ciências agronómicas às ciências veterinárias. Mas o vertiginoso desenvolvimento científico ao longo do século passado foi promovendo a especialização e a pulverização por inúmeras disciplinas e sub-áreas do conhecimento sobre o mundo natural, fazendo-as de algum modo divergir e diminuir afinidades. Curiosamente, a modernidade do conceito abrangente e integrador de “ciências naturais” tem vindo a reemergir nos últimos anos, em função da complementaridade das diferentes disciplinas para um pleno entendimento de certas dimensões da realidade das coisas naturais: veja-se por exemplo a emergência das ciências da complexidade, ou atente-se às características próprias das ciências do ambiente.
Serve este intróito para mostrar como nada nos move contra medidas susceptíveis de aproximar e integrar diferentes dimensões das ciências naturais. À primeira vista, poderia precisamente parecer que essa seria a tendência subjacente à fusão entre laboratórios de Estado tão díspares como o Instituto Nacional de Investigação Agrária (INIA) e o Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (IPIMAR), hoje agrupados no actual Instituto Nacional de Investigação Agrária e das Pescas (INIAP); ou à extinção do Instituto Geológico e Mineiro (IGM), com sua integração no Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial (INETI, hoje Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação). Mas estas medidas governamentais não encontram justificação científica transparente, e foram por isso recebidas com compreensível perplexidade pela comunidade científica em geral. De facto, qual poderia ser a lógica científica – que é a que interessa nesta matéria – para justificar a junção de uma entidade que estuda os mares e as pescas com uma que estuda a agricultura e o desenvolvimento rural? E porque haveria Portugal de deixar de dispor de uma entidade autónoma vocacionada para a caracterização geológica do seu território?
O governo justificou as suas decisões enquanto alterações orgânicas para “agilizar serviços”, “aligeirar estruturas”, ou “diminuir custos”. Mas razões administrativas e financeiras, ainda que válidas e respeitáveis, não são necessariamente compagináveis com as razões próprias da investigação científica e sua aplicação. Dessas razões não se ouviu nem uma palavra. Em vão foram solicitadas explicações aos ministérios responsáveis, mormente o da ciência – o silêncio ou as evasivas foram as únicas respostas. Entretanto, a comunidade científica encarregou-se de promover debates públicos específicos sobre aqueles laboratórios estatais, que foram muito clarificadores.
Em poucas palavras, pode-se hoje dizer preto no branco que não houve vislumbre de lógica científica em qualquer das medidas em causa; que o ‘INIAP’ é um organismo quase virtual, sem lei orgânica nem vida própria que vá além da que o INIA e o IPIMAR continuaram a manter; que o discurso político da ‘prioridade aos oceanos’ se enfraquece pela perda de autonomia do IPIMAR; que a junção de ciências do mar e ciências agrárias no mesmo organismo estatal é uma originalidade quase ímpar no mundo. Ora a investigação estatal em matérias tão relevantes como estas, ligadas que estão à qualidade e segurança alimentar e à qualidade e sustentabilidade do ambiente terrestre e marinho, é simplesmente importante demais para se poder manter sob este aparente ditame do imediatismo economicista e do disparate científico.
Quanto à extinção do IGM, revelou-se um descabelado atentado às competências estatais em geologia, que veio colocar sob ameaça e menorização conhecimentos e competências estratégicas sobre recursos minerais e riscos geológicos; que deixou o país, pela primeira vez desde 1848, sem uma estrutura geológica autónoma na orgânica do Estado que era das mais antigas do mundo; que tornou mais incerto o rumo e destino do magnífico museu geológico e paleontológico do IGM; e que converteu Portugal no único Estado-membro da União Europeia sem uma entidade autónoma responsável pela sua geologia.
É certo que Portugal vai provavelmente acabar por voltar a dispor de uns Serviços Geológicos autónomos ou seu equivalente, já que foi esse o compromisso unânime dos representantes de partidos da oposição em debate público sobre o destino do IGM. Mas o que esperamos e desejamos é que não seja necessário esperar por esse cenário de mudança política, e que possa ser já o actual governo a ter a coragem de reverter o que foram erros manifestos. Isso só o engrandeceria – e sobretudo, só beneficiaria o potencial de investigação estatal em matéria de ciências do mar, de ciências agrárias e de ciências da terra, áreas do conhecimento indispensáveis para uma boa gestão do ambiente.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Concordando com este artigo do Humberto eu gostaria, no entanto, de salientar que ha' muita coisa que vai mal, mesmo muito mal, nos Laboratorios do Estado em Portugal. E que indo mal, ano apos ano, torna-se dificil defender o investimento publico nestas instituicoes sem que reformas, profundas, sejam feitas. Oportunamente tentarei alinhavar algumas ideias sobre este tema. Abracos, Miguel
Enviar um comentário