domingo, novembro 14, 2004

Por uma reforma gradual, sólida e inteligente do ICN

Miguel B. Araújo
Investigador

Um dado é certo: não há modelo de organização institucional, por muito virtuoso que seja, que resista à falta de liderança ou de vontade política. Ora, no ICN, estes dois males têm andado de mãos dadas. Poderia outro modelo de organização institucional [i.e., acabar com o ICN e criar novas estruturas] ajudar a contrariar o processo de letargia em que caiu o ICN? – Talvez. Mas para que a reforma do modelo institucional do ICN fosse credível seria necessário, primeiro, haver vontade política para fazer obra em conservação [facto pouco credível dadas as múltiplas iniciativas com vista à retirada de competências ao ICN]. Segundo garantir que a liderança do Instituto fosse, de uma vez e para sempre, definida em função do mérito e não de preclitantes conjunturas politico-partidárias [tendência pouco provável dado o compromisso de nomear directores de áreas protegidas em função do aval das autarquias]. Terceiro assegurar que a actividade do Instituto fosse avaliada sem medo de distribuir “cenouras a quem tenha dentes” e o “cacete a quem não os tenha” [só viável se efectuado no quadro de uma reforma da administração pública que tarda em chegar].

Sem que estas condições se verifiquem nada nos garante que a alegada reforma do ICN não constitua mais uma entre várias ou que, num cenário conspirativo, venha a abrir as portas ao derradeiro enfraquecimento da política de conservação no aparelho do Estado. Excluindo o cenário conspirativo resta-nos perguntar se precisamos de mais uma reforma feita em cima do joelho? Esta pergunta é legitima já que, tanto quanto se sabe, não foi feito qualquer diagnóstico objectivo sobre os alegados males do ICN. O que se sabe é que existe má gestão, falta de rumo, desmotivação. Onde e quando começaram estes males? Porquê? Como se distribuem as responsabilidades? Que medidas seriam necessárias para romper com os vícios e problemas actuais? Estas são perguntas que deveriam estar subjacentes a qualquer proposta de reformulação do modelo institucional do ICN. Sem que sejam feitas, sem que se obtenham respostas satisfatórias, uma nova reforma arrisca-se a ser apenas mais uma entre outras. Uma fuga para a frente e mais um sinal da nossa incapacidade de planificação prospectiva de políticas.

Esta forma de conduzir o destino do País, por tentativa erro, teve o seu “momentum” mas talvez seja tempo de escrever o seu epitáfio. Se não vejamos: - desde a instauração da democracia tivemos 22 governos, dos quais 16 de origem constitucional. Destes 16 governos constitucionais apenas 3 foram levados até ao final. Os outros foram dissolvidos antes do final do mandato. Esta instabilidade contrasta com a nossa vizinha Espanha que tem aproximadamente os mesmos 30 anos de democracia mas que teve apenas 4 Primeiros Ministros (nós tivemos 13). As comparações são perigosas mas não vale a pena continuarmos a fazer de conta que a instabilidade não tem custos graves. Um dos custos óbvios é que as reformas em Portugal ou não se fazem ou quando se fazem são apressadas, mal planificadas e muitas vezes revogadas na volta do ciclo eleitoral seguinte.

Esta forma, amadora, de conduzir os destinos do País é parcialmente responsável pelo nosso retardamento estrutural. Se se verificar que o modelo do ICN não serve, que seja alterado. O ICN pode ser dividido em 2 ou 3 instituições (seguindo, p.e., o exemplo do Reino Unido). Pode também manter a mesma denominação integrando estruturas semi-autónomas no seu interior (seguindo, p.e., o exemplo da Finlândia). Existem vários modelos alternativos e a experiência diz-nos que nenhum deles é perfeito e que a sua adequação depende do enquadramento político, tradições administrativas e lentos processos de maturação. Estes são caracterizados por reformas lentas e graduais mais do que por reformas rápidas e radicais.

Mas a experîencia também indica que se as reformas estruturais são sérias estas não devem ser feitas em ciclos de desinvestimento, sob pena de serem interpretadas como pretexto para enfraquecer o sector. O que precisamos não é de menos ICN mas de melhor ICN. Esse ICN pode e deve ser um Instituto que gira melhor os seus recursos. Um ICN mais eficiente será também um ICN mais eficaz. Por este motivo considero que seria mais apropriado, no quadro actual, avançar com reformas cirúgicas sem, no entanto, alterar o modelo institucional do ICN. Estas reformas poderiam incluir 3 eixos primordiais: a) clareza de objectivos; b) aposta na qualidade da liderança; c) transparência e avaliação de resultados.

A – Clareza de objectivos
Os objectivos de conservação proseguidos pelo ICN dividem-se em dois grupos: os banais, muitas vezes, contraproducentes e que emergem dos programas anuais de actividade dos serviços centrais e das áreas protegidas [ver artigo neste blog sobre política de conservação]; e os "grandiloquentes", muitas vezes irrealistas, que emergem dos documentos de estratégia aprovados e que pouco mais fazem do que ocupar o espaço de mesas e prateleiras poeirentas dos escritórios da administração pública. Um desafio importante seria o traduzir estes documentos estratégicos em não muito mais do que 10 planos de acção, com objectivos claros, acções concretas, calendarizadas e devidamente orçamentadas. Este modelo dos planos de acção [“action plan”] é adoptado com sucesso no Reino Unido. O que se poupa em verborreia, nestes planos, ganha-se em realismo e detalhe das medidas propostas. Um sistema destes teria pelo menos o mérito de forçar o desenvolvimento de pensamento estratégico e de promover a controlo democrático do mesmo: 10 medidas concretas são passíveis de discussão e controlo; 100 medidas vagas e de cariz filosófico não são.

B – Aposta na qualidade da liderança
Não há volta a dar. Se uma empresa pretende resolver os problemas de um sector contrata o melhor profissional que encontrar para a função. A administração pública é menos flexivel mas nada justifica que se abandone o primado do mérito em favor do primado do conluio político. A condução de uma política de ambiente é tão dependente das orientações globais, de cariz político, como da capacidade de as implementar através de uma mobilização inteligente dos recursos disponíveis. Um bom profissional da administração pública é, “ceteribus paribus”, tão competente sob adminstração de um Governo PS como de um Governo PSD. Se não o for, se boicotar a tutela, então o procedimento disciplinar é o mecanismo que o deve esperar. O seu substituto no posto de trabalho deverá entrar por concurso público, não por nomeação política. Em Italia, paradigma de instabilidade política, a separação entre o Estado e o Governo foi o mecanismo adoptado para assegurar a estabilidade do País. Os Italianos compreenderam que as chefias da administração pública não podem ser alteradas cada vez que muda o Governo sob pena de prejudicar a estabilidade das políticas do Estado que, na maior parte dos casos não são, ou não deveriam ser, radicalmente alteradas com as mudanças de Governo. Não há política, seja ela de ambiente ou outra, que resista à dança das cadeiras que Portugal tem assistido desde a instauração da democracia.

C – Transparência e avaliação de resultados
A definição clara de objectivos conduz à transparência na forma com que se gastam os impostos dos cidadãos. A aposta na qualidade da liderança promove a eficiência e a eficácia da implementação de políticas. Estes dois requisitos constituem ingredientes básicos para o regular funcionamento das instituições democráticas. No entanto, sem avaliação e controlo não estão garantidos os mecanismos de correcção de erros ou desvios na condução de políticas. Mas mais uma vez este é um problema que atravessa toda a administração pública sendo dificil tratar o ICN de forma isolada. Uma possibilidade a explorar seria, no entanto, contratualizar a gestão das áreas protegidas a entidades externas ao ICN. As áreas seriam financiadas na totalidade pelo orçamento do ICN e reguladas por planos de gestão definidos pelo ICN no âmbito de contratos programa a estabelecer com empresas privadas, públicas, autarquias, fundações, ou associações. Numa fase inicial o próprio ICN poderia promover a constituição de uma empresa pública por forma a assegurar a cobertura nacional da gestão das áreas. Com o tempo esta gestão poderia ser gradualmente transferida para agentes locais sob atento controlo por parte do Estado. Procedimentos semelhantes existem, por exemplo, no Reino Unido onde algumas áreas com figura especial de conservação são geridas mediante o estabelecimento de contratos programa com proprietários ou associações de proprietários. É possível que, em Portugal, nem todas as áreas beneficiassem de uma gestão deste tipo mas o simples facto de se avançar para um esquema de gestão por objectivos, avaliável em periodos regulares, com consequências práticas para os casos de má gestão, seria um passo fundamental para a regularização e melhoria das actividades de gestão da natureza no nosso País.

6 comentários:

Anónimo disse...

Os textos em fundo preto ficam de difícil leitura, que é acentuada pela relativa extensão dos mesmos. Para facilitar sugere-se, pede-se, uma alteração gráfica do blogue.

Anónimo disse...

Assim à primeira vista apenas queria acrescentar mais umas vertentes a considerar, nomeadamente a revisão de procedimentos internos do ICN no sentido de aumentar a sua transparência e funcionalidade e, acreditem ou não, obrigar os dirigentes e técnicos a articular esforços, a confiar nas competências e boa vontade de todos, a falar mais uns com os outros e a trabalhar em equipa; a revisão e definição clara dos processos de contabilidade e tesouraria; a criação de um mecanismo de acompanhamento, responsabilização e autorregulação periódica e aplicada a todos os níveis e sectores - eventualmente através de um processo de gestão por objectivos bem formulado; a mobilização, envolvimento e valorização dos funcionários; abertura para o exterior e melhoria dos meios de troca de informação e comunicação.

Emília Silva
Bióloga

Anónimo disse...

Louvo a notável clareza com que a questão foi tratada por Miguel Araújo.
Só faço um comentário em relação à proposta de gestão das áreas protegidas por privados, como é feita, por exemplo no Reino Unido.
Ainda falta percorrer um longo caminho de aprendizagem democrática e de participação cívica dos nossos cidadãos, para que se possam dar passos nesse sentido, sem que a gestão das áreas protegidas fosse transformada num jogo entre os vários interesses económicos em presença, onde a conservação da natureza seria certamente relegada para segundo plano.

Miguel B. Araujo disse...

Concordo que existem riscos serios na contratualizacao de entidades privadas para a gestao das areas protegidas num Pais sem tradicao na materia e com uma cultura democratica em construcao. E' possivel que o colega que escreveu esta nota tenha toda a razao e que ainda nao estejamos preparados para tal medida. No entanto gostaria de acrescentar algumas reflexoes sobre a materia.

Todos sabemos que e' mais facil dizer aos outros o que fazer do que fazer nos proprios. Esta e' uma caracteristica da natureza humana que nao vale a pena negar ou esgrimir. O que e' preciso e' potencia-la utilizando-a da melhor forma. Ora o ICN tem a desvantagem, no modelo actual, de ter de cumprir os dois papeis sendo que nenhum deles e' cumprido com rigor.

Por exemplo o ICN falha ao nivel da planificacao. Os planos de ordenamento das areas protegidas deveriam ser planos de gestao mais do que ordenamento. E estes deveriam responder a directrizes nacionais que garantissem o respeito de objectivos globais. Um parque com responsabilidades na conservacao de especie x, com importancia nacional e Europeia, deveria garantir, no seu plano de accao, que a persistencia da especie fosse acautelada. Esta e' uma directriz nacional que deveria traduzir-se em accoes de gestao concretas. Ao ICN caberia tracar as directrizes e avaliar se os planos de gestao das areas protegidas - ou da Rede Natura 2000 - sao adequados face aos objectivos nacionais.

No Reino Unido este e' o papel desempenhado pela "English Nature" que nao so' define as directrizes para os sitios de importancia especial para conservacao (os SSSI), como elabora os planos de gestao em colaboracao com os gestores (nao o contrario), financia e depois monitoriza o curso da gestao. Ainda o outro dia visitei uma destas areas e o comentario dos gestores locais foi de que a English Nature e' demasiado intransigente. Isto e', qualquer desvio na gestao da area (mesmo que justificada) pode levar ao corte do financiamento, logo a' falencia do modelo de gestao. Estamos a falar de sistemas administrativos com os seus defeitos e virtudes.

Ao nivel da implementacao o ICN tambem falha (e de que maneira). A realidade e' diversa, logo e' dificil generalizar mas a ideia que da' de quem esta' de fora e' que o ICN tem poucos gestores de terreno e muitos tecnicos de gabinete. O papel de uma grande parte destes tecnicos e' dar pareceres e alimentar a maquina burocratica das areas, salvaguardando-se, obviamente, o caso dos guardas e vigilantes. Quantos projectos de gestao de especies e ecossistemas existem nas areas protegidas? Quantos de entre estes respondem a orientacoes estrategicas nacionais e sao devidamente avaliados pelo ICN?

E' dificil arcar com todos estes componentes da gestao da natureza mantendo ao mesmo tempo o espirito critico. Por isso veria com bons olhos que o ICN assumisse uma funcao essencialmente coordenadora, financiadora e fiscalizadora. Talvez com essas funcoes nas maos tivesse mais margem de manobra, capacidade critica e possibilidade de fazer um bom trabalho no terreno.

Claro que o problema entroncaria depois na capacidade da sociedade civil em dar resposta aos novos nichos de mercado criados mantendo ou aumentando a qualidade da gestao. Parte da resposta esta', penso, na seriedade com que o Estado encara a gestao destas areas. esta seriedade reflectir-se-ia no montante das verbas disponiveis para a gestao das areas protegidas. Com pouco dinheiro sera' dificil atrair bons consorcios e facilmente se abre o espaco a' corrupcao. Outra parte da resposta esta' na fiscalizacao. Entregar a gestao das areas a agentes externos implicaria um aumento substancial da fiscalizacao das areas.

Mesmo que esta conversa pareca ainda um pouco utopica, seria interessante continuar a aprofunda-la pois mesmo que um cenario de implementacao a larga escala da contratualizacao da gestao das areas a terceiros seja, actualmente, inviavel nas areas protegidas nao o sera', certamente, em muitas areas da Rede Natura 2000. Talvez estas areas pudessem constituir o laboratorio de ensaio de uma nova forma de encarar o papel do ICN na gestao das areas com importancia especial para a conservacao.

Miguel Araujo

Anónimo disse...

Acho que o Miguel tem razão quando diz que vale a pena olhar para estas soluções e discutir a separação das funções de fiscalização e execução.
Mas mais uma vez talvez seja útil não procurar inventar sempre a roda. Há já em Portugal as áreas protegidas regionais que não são de gestão directa pelo ICN e as propriedades da QUERCUS e da LPN que são geridas em função de objectivos de conservação.
Avaliar seriamente estes primeiros passos no sentido da gestão autónoma poderia ser útil para não acumular erros sobre erros.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Sobre a questao do financiamento das areas de interesse natural sugere-se leitura deste interessante na naturlink:

http://www.naturlink.pt/canais/Artigo.asp?iArtigo=13896