A jornalista Helena Geraldes fez-me recentemente uma entrevista para um artigo no jornal “o público”. Como já começa a ser tradição disponibilizo o conteúdo completo da entrevista neste blogue.
1) Como comenta o trabalho realizado em Portugal no que respeita à prevenção das extinções locais? Que instrumentos de conservação poderiam ser utilizados?
Não conheço com detalhe o que tem sido feito em matéria de gestão de habitates e populações em Portugal. Reconheço, no entanto, que têm sido feitos progressos assinaláveis no âmbito da preparação do plano sectorial da Rede Natura 2000. Porém, esses progressos não escamoteiam o facto de continuarmos a ter uma visão parcial e incompleta da nossa biodiversidade.
2) O actual conhecimento científico da biodiversidade em Portugal possibilita essa prevenção?
O estado do conhecimento é muito limitado. Portugal não possui um Museu de História Natural e um Jardim Botânico que tenham o enquadramento institucional, orçamental e de massa crítica, necessários para fazer a mais básica das tarefas relativas à biodiversidade: o seu catálogo e cartografia. Esta lacuna limita o acesso à informação por parte dos responsáveis pela condução de políticas de conservação. As universidades, por teu turno, continuam amarradas a políticas que favorecem o “in breeding”. Uma das consequências é que se favorece a contratação de estudantes e docentes “da casa”, que dominam áreas do conhecimento bem representadas nas universidades que os contratam, em detrimento da contratação de pessoas com formações complementares, possivelmente obtidas no estrangeiro, que poderiam trazer novas perspectivas e conhecimentos à academia. Este sistema induz, inevitavelmente, um empobrecimento da massa crítica das universidades que, infelizmente, se repercute no perfil dos licenciados que são contratados pela administração pública. Estamos, portanto, num ciclo vicioso cuja resolução implica medidas corajosas por parte do Governo.
Agir com acesso a boa informação dá garantias de que estamos a gerir os recursos afectos à conservação com eficácia e eficiência. No entanto, é importante referir que a falta de informação não deve servir de pretexto para não conservar o que se conhece.
3) Considera que Portugal carrega um "fardo pesado" no que concerne às extinções locais, passadas e estimadas? Temos sido negligentes?
Portugal carrega uma responsabilidade pesada pois, segundo os meus cálculos, inclui, no seu território, 43% da fauna de vertebrados terrestres existentes na União Europeia, Noruega e Suíça. É o quarto país Europeu com maior número de endemismos vegetais (espécies de distribuição restricta) e o terceiro em espécies ameaçadas. O investimento em conservação, seja ele oriundo de fontes nacionais ou Europeias, não acompanha a importância de Portugal para a conservação da biodiversidade.
4) Acha que as extinções locais devem ser encaradas como fenómenos naturais da evolução ou como factura a pagar por crimes ambientais?
As extinções são um fenómeno natural, necessário para a evolução da vida. Por exemplo, se os dinossáurios não tivessem sido extintos é provável que a humanidade, assim como as formas de vida que conhecemos hoje, não tivessem aparecido. Mas a evolução é um processo que não controlamos. Portanto, quando interferimos nos processos evolutivos, à escala planetária, estamos a despoletar processos cujos contornos são desconhecidos mas potencialmente perigosos.
5) Como pensa que Portugal se deveria preparar para as possíveis extinções causadas pelas alterações climáticas? Que espécies merecem especial atenção?
Portugal precisa de incorporar a variável “alterações climáticas” na forma como pensa e ordena o seu território. Tal implica, por exemplo, identificar os principiais corredores de dispersão necessários para permitir a adaptação das espécies a alterações das condições favoráveis à sua persistência. Igualmente importante é a identificação dos locais com potencial para constituição de refúgios para a biodiversidade. Os refúgios são locais cujas condições micro-climáticas se destinguem da matriz envolvente e que permitem albergar espécies que deixam de poder sobreviver na matriz dominante por virtude de alterações no clima. Tradicionalmente, estas áreas de refugio localizam-se nos vales encaixados dos rios, zonas costeiras e montanhas. Muitos dos vales encaixados em Portugal estão comprometidos devido ao represamento das águas (o Rio Sabor, por exemplo, constituiu e tem potencial para voltar a constituir-se como um refúgio importante para a conservação das espécies) e as zonas costeiras continuam a ser encaradas como recurso fundamentalmente turístico. Temos, portanto, um conflito evidente entre os interesses de conservação da biodiversidade, no longo prazo e os interesses de desenvolvimento de algumas actividades económicas, no curto prazo. Estes conflitos têm de ser mediados por via da integração do binómio “alterações climáticas” e “biodiversidade” nos instrumentos de planeamento e ordenamento do território.
6) Qual a sua posição quanto à reintrodução de espécies já extintas em território nacional (como a águia-pesqueira, o lince-ibérico...)?
Penso que a questão crucial não é se devemos reintroduzir espécies mas qual a melhor forma de gerir os recursos escassos por forma a maximizar o resultado das políticas de conservação. Essa análise não se faz de ânimo leve pois há muitas variáveis em jogo. Mas cingindo-me aos dois exemplos da sua pergunta eu diria que a águia pesqueira näo deveria ser objecto de prioridade absoluta porque é uma espécie cosmopolita, ou seja, existe em vários continentes, não estando globalmente ameaçada. Pode-se argumentar que pertence a um grupo genético diferenciado mas se avançarmos com prioridades de conservação que procurem, explicitamente, manter a diversidade genética dentro de cada espécie será difícil saber onde parar com este processo. E se tivermos que escolher entre manter uma variedade ou uma espécie, é óbvio que a escolha recai sobre a espécie pois esta representa informação genética mais individualizada. Quanto ao lince temos um problema sério pois a espécie é endémica da Península Ibérica e está à beira da sua extinção global. Não creio que devamos alimentar visões paroquiais relativamente ao lince defendendo, por exemplo, a sua reintrodução, a todo o custo, em Portugal. O que devemos fazer, isso sim, é colaborar, técnica e financeiramente, para o programa de reprodução em cativeiro do lince actualmente a decorrer em Espanha e estudar a forma mais racional de restaurar populações saudáveis de Lince no terreno. Tal poderá, ou não, passar pela reintrodução do lince em território Português.
7) Normalmente temos a ideia de que as extinções só aconteceram no passado ou então noutro ponto do mundo. Há espécies que estão a desaparecer de Portugal sem que a comunidade se aperceba?
Como não possuímos um catálogo completo das espécies animais e vegetais que ocupam o território português e não acompanhamos de forma sistemática a dinâmica das suas populações é difícil apresentar dados conclusivos. Porém temos conhecimento que algumas espécies emblemáticas desapareceram, recentemente, como é o caso da águia pesqueira e do lince ibérico. O mais provável é que as extinções documentadas representem apenas a ponta de um “iceberg”.
8) Considera realista o objectivo do Milénio para a Biodiversidade, até 2010? O que deveria estar a ser feito?
Não sei se será realista mas é certamente louvável. O que deveria ser feito seria 1) uma identificação precisa de prioridades, ou seja, a definição de quais as espécies que requerem acçäo imediata por forma a evitar a sua extinção, 2) a implementação de actividades de gestão para a conservação das espécies prioritárias, e 3) a avaliação contínua dos resultados das acções de gestão por forma a permitir correcções ou reavaliações sobre as actividades a tomar. Para que um processo destes aconteça é necessário, entre outros factores de carácter mais político, profissionalizar as políticas de conservação.
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1 comentário:
Os que nao sao assinantes do Publico nao conseguem aceder ao artigo pelo que segue aqui uma copia do dito:
Investigador português defende criação de refúgios para a biodiversidade
Helena Geraldes, PÚBLICO.PT
Conferência da ONU sobre diversidade biológica decorre em Curitiba até ao final do mês
Tentar travar eventuais extinções de espécies causadas pelas alterações climáticas é motivo mais do que suficiente para Portugal criar refúgios para a biodiversidade, considera Miguel Araújo, um investigador português que estuda o impacte das alterações climáticas na natureza. Até ao final do mês, a ONU vai rever o caminho percorrido pela Convenção da Biodiversidade.
"Portugal precisa de incorporar a variável "alterações climáticas" na forma como pensa e ordena o seu território", disse ao PÚBLICO este investigador do Museo Nacional de Ciências Naturais de Madrid, investigador associado da Universidade de Oxford e professor associado convidado da Universidade de Copenhaga.
Mais concretamente, Miguel Araújo defende a identificação dos "principais corredores de dispersão para permitir a adaptação das espécies" às alterações no habitat. Além desses corredores, será preciso "identificar os locais com potencial para a constituição de refúgios para a biodiversidade", com condições micro-climáticas que permitam albergar as espécies que perderam o habitat.
Visão incompleta da biodiversidade
A tarefa poderá não ser fácil porque, tradicionalmente, essas áreas situam-se nos vales encaixados dos rios, zonas costeiras e montanhas, onde existe "um conflito evidente entre os interesses de conservação (...) a longo prazo e os interesses de desenvolvimento de algumas actividades económicas".
"As zonas costeiras continuam a ser encaradas como recurso fundamentalmente turístico" e "muitos dos vales encaixados em Portugal estão comprometidos devido ao represamento das águas". O investigador referiu-se ao caso do Baixo Sabor, que, segundo disse, "constituiu e tem potencial para voltar a constituir-se como um refúgio importante para a conservação das espécies".
Apesar de "continuarmos a ter uma visão parcial e incompleta da nossa biodiversidade", à excepção dos "progressos assinaláveis" no âmbito do Plano Sectorial da Rede Natura 2000 - cuja discussão pública terminou a 10 deste mês - "a falta de informação não deve servir de pretexto para não conservar o que se conhece", considerou o investigador.
Responsabilidade e falta de investimento
O facto de Portugal ser o quarto país ao nível europeu com maior número de endemismos vegetais e o terceiro em espécies ameaçadas, fá-lo "carregar uma responsabilidade pesada".
O trabalho de quem faz as políticas de conservação sai fragilizado pelo "estado limitado do conhecimento". Segundo Miguel Araújo, "Portugal não possui um Museu de História Natural e um Jardim Botânico que tenham o enquadramento institucional, orçamental e de massa crítica necessário para fazer (...) o catálogo e cartografia da biodiversidade".
A juntar-se à falta de informação, o país enfrenta um outro vazio. "O investimento em conservação, seja ele nacional ou europeu, não acompanha a importância de Portugal para a conservação da biodiversidade", considera.
Quanto às extinções documentadas em Portugal, "o mais provável é que representem apenas a ponta do icebergue". Para o cientista, a questão crucial "não é se devemos reintroduzir espécies (como o lince-ibérico ou a águia-pesqueira) mas qual a melhor forma de gerir os recursos escassos para maximizar o resultado das políticas de conservação".
Tempo de balanço em Curitiba
Quando faltam apenas cinco anos para a comunidade mundial prestar contas do que conseguiu fazer para cumprir o objectivo do Milénio relativo à perda de biodiversidade, dezenas de ministros são esperados em Curitiba, Brasil, para a oitava COP (Conferência das Partes) da Convenção da ONU para a Diversidade Biológica, de hoje a 31 deste mês.
Na conferência, onde participará o secretário de Estado do Ambiente, Humberto Rosa, será dado um novo fôlego à Convenção e definido um novo plano para cumprir as metas do Milénio. Em cima da mesa estará a possibilidade de uma revisão da meta definida em 2000 pela ONU, devido ao ritmo acelerado das extinções.
Desde 1500 já desapareceram, pelo menos, 844 espécies animais, desde o dôdô ao tigre da Tasmânia, segundo a Lista Vermelha da UICN (União Internacional de Conservação da Natureza).
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