Com a devida autorização, transcrevo na integra um post publicado hoje, por Gonçalo Elias, no Fórum Aves. Espero bem que haja um tremendo equívoco nisto tudo. A minha ignorância em matéria de leis é vasta, mas a confirmar-se este vazio legal... já nada me espanta!
Desde já peço desculpa pelo tamanho deste post, mas parece-me essencial a inclusão de alguns artigos da legislação em causa, que Gonçalo Elias faz, por forma a melhor compreender o que parece estar em causa.
Gonçalo Rosa
Muito se tem falado sobre a necessidade de punir o responsável pelo abate da águia-imperial. No entanto, será que o responsável pode mesmo ser punido? E qual a punição aplicável a este tipo de situações? A fim de encontrar a resposta a estas questões, estive a fazer algumas pesquisas na net e gostaria de partilhar aqui os resultados que obtive.
Começo por referir a notícia sobre este assunto que se encontra no site do ICNB (aqui). Nesta página pode ler-se "O abate desta águia configura uma contraordenação ambiental muito grave, em conformidade com o Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (Decreto-Lei nº 142/2008, de 24 de Julho)."
O elemento jurídico relevante é o decreto-lei acima referido. Uma pesquisa rápida no Google permite encontrá-lo facilmente (por exemplo aqui). No artigo 1º ficamos a saber que este decreto-lei "estabelece o regime jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade."
Percorrendo este documento, a páginas 12 chegamos ao "CAPÍTULO VII - regime contra -ordenacional e sanções". Neste capítulo surge primeiro o "Artigo 43.º - Contra-ordenações em áreas protegidas", mas este não se aplica à ocorrência em apreço, dado que esta se passou fora de uma área protegida (foi numa ZPE, mas as ZPE não pertencem às áreas protegidas). Assim, temos de ler o artigo seguinte, que transcrevo:
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Artigo 44.º Outras contra-ordenações ambientais 1 — Para além do disposto no artigo anterior e em diplomas legais relativos à conservação ou protecção da natureza e da biodiversidade, a colheita, captura, apanha, abate, detenção, transporte ou comercialização de indivíduos ou parte de indivíduos de quaisquer espécies vegetais ou animais, em qualquer fase do seu ciclo biológico, incluindo a destruição de ninhos ou a apanha de ovos, a perturbação ou a destruição dos seus habitats, constitui contra -ordenação ambiental, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto: a) Muito grave, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «criticamente em perigo»; b) Grave, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «em perigo»; c) Leve, quando a espécie em causa esteja inscrita no Cadastro com a categoria de ameaça «vulnerável». |
Este artigo faz referência à Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que pode ser consultada aqui.
Esta lei, denominada lei quadro das contra-ordenações ambientais, determina o seguinte:
Citação: |
Artigo 21.o Classificação das contra-ordenações Para determinação da coima aplicável e tendo em conta a relevância dos direitos e interesses violados, as contra-ordenações classificam-se em leves, graves e muito graves. Artigo 22.o Montantes das coimas 1—A cada escalão classificativo de gravidade das contra-ordenações ambientais corresponde uma coima variável consoante seja aplicada a uma pessoa singular ou colectiva e em função do grau de culpa, salvo o disposto no artigo seguinte. 2—Às contra-ordenações leves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 500 a € 2500 em caso de negligência e de € 1500 a € 5000 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 9000 a € 13 000 em caso de negligência e de € 16 000 a € 22 500 em caso de dolo. 3—Às contra-ordenações graves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 12 500 a € 16 000 em caso de negligência e de € 17 500 a € 22 500 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 25 000 a € 34 000 em caso de negligência e de € 42 000 a € 48 000 em caso de dolo. 4—Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 25 000 a € 30 000 em caso de negligência e de € 32 000 a € 37 500 em caso de dolo; b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 60 000 a € 70 000 em caso de negligência e de € 500 000 a € 2 500 000 em caso de dolo. |
Há contudo outro aspecto relevante neste artigo 44. Este artigo faz referência a um "Cadastro".
Ora o que é isto do Cadastro?
A resposta está no artigo 29:
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Artigo 29.º Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados 1 — O Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados, adiante designado por Cadastro, é um arquivo de informação sobre os valores naturais classificados e as espécies vegetais ou animais a que seja atribuída uma categoria de ameaça pela autoridade nacional de acordo com critérios internacionais definidos pela The World Conservation Union (IUCN). 2 — O Cadastro, a aprovar por decreto regulamentar, sob proposta da autoridade nacional, contém informação sobre: a) Os territórios definidos no continente e nas Regiões Autónomas e as áreas demarcadas nas águas sob jurisdição nacional, com interesse internacional, nacional, regional ou local, cartografadas a uma escala adequada à sua gestão; b) Os ecossistemas, habitats, espécies e geossítios, identificados de acordo com os seguintes parâmetros, quando aplicáveis: i) Descrição e distribuição geográfica; ii) Razões que lhe conferem um reconhecimento internacional, nacional, regional ou local; iii) Estado de conservação; iv) Ameaças à sua conservação e, se atribuído, o respectivo estatuto de ameaça; v) Medidas de conservação já adoptadas; vi) Objectivos e níveis de protecção a assegurar; vii) Medidas de conservação e orientações de gestão a adoptar. 3 — A informação relativa aos territórios das Regiões Autónomas referidos na alínea a) do número anterior é prestada à autoridade nacional pelas entidades competentes das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. 4 — O Cadastro é actualizado, por inclusão ou exclusão, a cada quatro anos e sempre que tal se justificar por imperativos de conservação da natureza e da biodiversidade, devendo a respectiva proposta de actualização ser objecto de consulta pública, a promover pela autoridade nacional. 5 — Na elaboração da proposta de actualização a autoridade nacional deve ter em conta as propostas apresentadas por qualquer entidade pública ou privada ou pessoa singular, desde que devidamente fundamentadas em informação científica. |
Chamo também a atenção para o artigo 52º
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Artigo 52.º Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados O primeiro Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados é aprovado no prazo máximo de dois anos a contar da entrada em vigor do presente decreto -lei. |
Procurei por todo o site do ICNB e também no Google mas não consegui encontrar qualquer cadastro. Dado que o prazo de 2 anos ainda não terminou (aliás ainda só passaram 7 meses e meio desde a publicação do D.L.), estou em crer que o Cadastro não existe. E se assim é, não pode ser aplicada qualquer coima ao abrigo deste instrumento legal, uma vez que não existe informação que permita classificar o tipo de infracção (a este propósito, convém referir que o Livro Vermelho, que atribui graus de ameaça às várias espécies de vertebrados, não tem valor jurídico).
Fico assim com dúvidas sobre o seguinte:
1 - Em que se baseou o ICNB para classificar esta contra-ordenação ambiental como "muito grave"?
2 - Existe base legal para aplicar uma coima?
1 abraço,
Gonçalo [Elias]
6 comentários:
Se a águia foi abatida por chumbos de caça, quase de certeza que o foi por um caçador numa jornada de caça. Logo a legislação sobre caça é aplicável. Conheço um caçador que foi condenado em tribunal (prisão com pena suspensa e coima) por ter abatido um melro, por engano, numa caçada aos tordos. Teve azar: juntou-o ao molho de tordos, uma brigada da GNR andava por aqueles lados e não lhe perdoou. Bem perguntava ele aos guardas: caso tivesse deixado o melro para pasto dos vermes haveria problemas?
Não exagerem: dorme-se muito mas não tanto...
Jaime
Se quem praticou este crime for "caçador" (apenas de nome porque quem faz uma coisa destas não se pode chamar de caçador), se for apanhado em flagrante são lhe apreendidos os documentos da arma, a arma e todos os utensílios passiveis de ser usados na caça, carro (se for apanhado com o espécime dentro do mesmo).
Depois em tribunal dependendo da gravidade da situação pode ficar sem carta de caçador, licença de uso e porte de arma e ficar proibido de exercer o exercício da caça por um determinado período, tendo realizar um novo exame para poder ter nova carta de caçador.
Isto sem falar nas respectivas sanções monetárias.
Tudo isto tanto se aplica a espécies protegidas, como a espécies de caça abatidas de forma irregular (não regulamentar).
Como é lógico no caso de espécies protegidas as coimas serão mais pesadas.
Podem encontrar todas estas sanções na Lei da Caça.
Mas se quem praticou este acto não for legalmente caçador, não sei se será sujeito a sanções tão pesadas.
Faça-se jurisprudência! Um atentado destes não pode ficar impune.
Quem quiser consultar a Lei da Caça pode-o fazer em:
http://www.dre.pt/pdfgratis/2005/11/226A00.PDF#page%3D2
Queria também referir que o melro é uma espécie cinegética, apesar da sua caça ser proibida. A Águia-imperial, sendo uma espécie protegida, provavelmente é remetida para outra legislação...
Jaime
Jaime, a lei da Caça prevê que o abate de espécies não cinegéticas não constitui uma contra-ordenação, mas sim um crime.
O ICNB no seu comunicado refere que se tratou de uma contra-ordenação, e invoca o novo regime jurídico, ao mesmo tempo que refere que apresentou uma queixa-crime com base não sei muito bem em quê.
Pelos vistos ninguém sabe muito bem como classificar (juridicamente) este acto. Mas ser um crime ou não é um aspecto fundamental em tudo isto.
Questão para reflectir: afinal matar uma águia-imperial é um crime ou não?
1 abraço,
Gonçalo E.
Boa pergunta...
Outra legislação que pode ser aplicada ao caso é o Decreto-Lei n.º 140/99, que transpõe para a legislação portuguesa a Directiva Aves. Penso que também neste caso o abate da águia-imperial implica contra-ordenação e não crime.
Mas o pior de tudo é o facto de, pelos vistos, ainda ninguém ter sido ainda condenado em Portugal por abate de espécie protegida com arma de caça. Pelo menos nestes últimos 20 anos. Há uns 30 anos soube de um caçador que ficou sem a arma e pagou multa por caçar passarada com calibre 12.
Anualmente muitos caçadores são presentes a tribunal por abate de espécies cinegéticas fora da época, por utilizarem métodos proibidos, por caçarem em sítios não autorizados, etc. Os caçarretas que se divertem a abater espécies protegidas, onde muito provavelmente se inclui este caso, irão continuar a fazê-lo impunemente. Para quê legislação clara se ninguém lhe liga?
Jaime
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