domingo, julho 12, 2009

A burocracia da ciência


O post sobre os invertebrados e o fogo suscitou vários comentários que diziam que os factos que eu tinha visto e relatado não significavam nada.
Não liguei muito a este argumento porque por um lado nunca pretendi ter demonstrado nada (apenas publicitar indícios) e por outro, o que hoje me apetece tratar, parece-me razoavelmente consensual admitir que factos sem contexto raramente querem dizer o que quer que seja.
Já reagi, admito que excessivamente, a quem põe na minha boca um argumento que não usei ("A questão levantada pelo Henrique, sobre o não recurso aos invertebrados como indicadores") para depois dar uma aula sobre o assunto, completamente ao lado do que estava em causa, e de caminho sugerir, paternalmente, que a minha ignorância é ainda maior do que de facto é. Não é pois por aí que vou agora.
Há anos que vou às mesmas praias, raramente mudando.
Numa dessas praias foram feitos vários enchimentos com areia para resolver problemas de erosão costeira. A linha de costa entre dois paredões é razoavelmente extensa o que aproveito para verificar empiricamente como vai evoluindo ao longo do ano.
Há tempos reparei que numa zona do paredão que por lá existe onde o mar bate quase sempre na base rochosa, ou fica pouco tempo a alguma distância na maré baixa, estava um bando de pássaros que não é habitual ver por ali (sim, eu sei que no rigor da linguagem científica são aves que não pertencem ao grupo dos passeriformes mas a mania dos cientistas quererem impôr à linguagem comum os seus critérios é apenas uma das suas manifestações habituais de desfasamento em relação à realidade).
Aproximei-me para ver o que lhes interessava ali, vi como estava a evoluir a cobertura por algas e coisas que tal das rochas, reparei na evidente presença de insectos (faço lá ideia se eram tudo insectos ou outros invertebrados) e coisas que tal.
Noutro dia lá atravessei a praia de uma ponta à outra e fiquei ali um bom bocado a olhar para os camarões que por lá andavam, com alguma abundância (aves nem vê-las e insectos assim assim).
E ontem nem rasto de camarões, embora tenha reparado mais na colonização por lapas e outras coisas gelatinosas com casca dura (depois de num dia anterior me ter distraído e quando lá cheguei a maré estava alta demais para ver aquele bocadinho de praia pouco usado por falta de areia usável por banhistas), e vi ainda mais uns insectos entre saltitantes e corredores meio rastejantes pelas rochas, logo acima da linha de água.
Nenhum destes factos tem nenhum significado para um ignorante como eu (e em matérias de litoral ainda mais ignorante que noutras) e não diz coisa nenhuma, excepto, talvez, que eu gosto de passear na praia.
Mas se eu registasse como deve ser estes factos num sítio onde qualquer um os pudesse usar talvez um dia tivessem significado quando alguém os integrasse num contexto qualquer.
Um dia destes falaram-me de um homem que mandou para um organismo oficial umas fotografias porque há cinco anos que percorria uma zona e nunca lá tinha visto a planta cuja fotografia mandava. O facto em si diz nada, mas se alguém quiser olhar para ele e o souber integrar num contexto, pode um dia valer alguma coisa.
Não falo sequer do indivíduo que mandou um mail a dizer que tinha visto uma planta assim assado num determinado sítio e quando se verificou a informação era uma nova população de uma espécie endémica de distribuição restrita e relativa raridade. Este facto, integrado no contexto do conhecimento da espécie, tem significado por si.
O que me faz ficar fora de mim é o facto de haver tanto burocrata da ciência em Portugal que despreza tudo o que está fora do desenho experimental não por estar certo ou errado mas porque está fora do desenho experimental.
Ao contrário de muito gente eu não tenho nada contra a burocracia que acho uma das grandes criações da civilização. Eu mesmo me defino, sem ironia, como burocrata. Mas exactamente por saber distinguir a burocracia inteligente do cumprimento mecânico de regras é que tenho tão pouca tolerância para a burocracia que não conhece os objectivos das regras e as aplica cegamente.
A burocracia da ciência (as citações, o peer review, o desenho experimental e toda essa tralha burocrática) é fundamental para permitir que o trabalho de muito cientistas se integre mais facilmente no aumento progressivo do conhecimento, evitando caminhos errados, fraudes, repetições sistemáticas das mesmas ideias e por aí fora.
Mas a burocracia da ciência é só a burocracia da ciência é uma mera questão processual, não define o conhecimento científico e muito menos o conhecimento existente.
E mesmo para uma pessoa como eu para quem os processos são, quase sempre, mais importantes que os resultados, a informação produzida por outros meios não deveria ser desperdiçada pelo simples facto de que os cientistas serão sempre uma pequena minoria que em domínios como os da biodiversidade, vastos, virtualmente ilimitados e sem domínio das variáveis para as quais o conhecimento produzido é válido, nunca darão conta do recado.
A academia portuguesa tem dezenas de doutores, doutorandos, mestres, mestrandos, alunos e outros produtores de investigação em áreas claramente ligadas à biodiversidade (embora pelo avanço anual do conhecimento nem sempre isso se note).
Mas com a jactância que a caracteriza desqualifica e desconsidera o número dez vezes maior de outros produtores de informação que apenas gostam de dar grandes passeios ao Domingo.
E esse é mesmo um grande problema na gestão da conservação da natureza em Portugal.
henrique pereira dos santos

19 comentários:

Pedro Cardoso disse...

Felizmente há também os bons exemplos de colaboração, com resultados à vista:

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E os maus exemplos:

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Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro Pedro Cardoso,
Penso que estamos a falar de coisas diferentes.
Passando de lado pelo mau exemplo que não percebi, no contexto do post, até por me recusar a acreditar que o Dr. Crispim de que falam é o Professor José António Crispim porque seria ridículo alguém dizer que não percebe nada de espeleologia mas sobretudo por ser uma informação em causa própria sem grande relação com o post, fico-me pelo comentário aos exemplos positivos.
Com certeza é bom haver cientistas que colaboram de forma mais estruturada com grupos de pessoas que não são da academia.
Mas, no que li dos links, são ainda ajudantes do investigador no sentido em que há uma relação directa em que as actividades também visam a produção de conhecimento de forma mais ou menos estruturada. E os exemplos dados cabem nas categorias de descobertas de factos que têm significado per si e que são depois tratadas cientificamente.
Do que falo é de uma coisa diferente, é das pessoas que dão grandes passeios aos domingos e registam dados do que vêem, na grande maioria sobre factos comuns, apenas porque gostam disso, sem qualquer relação directa com algum tipo de investigação ou investigadores (com certeza as relações vão depois surgindo mas são relações não estruturadas pelo processo de aquisição de conhecimento).
Ganhar essas pessoas e esse conhecimento para o processo cinetífico é que tem sido muito difícil, não pela sua falta de disponibilidade mas pela forma como a academia desvaloriza essa forma wiki que produzir dados.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

eis mais um ponto chave:
burocracia na ciência!

Quantas revistas de ciência em Português existem? Porque é que quase toda a ciência produzida em Portugal tem de ser para "inglês ver?"

outro ponto seria o "secretismo". Isto é particularmente importante na conservação, onde informações importantes sobre distribuição de espécies morrem com os seus possuidores e temos de voltar repetidamente à estaca 0 do conhecimento. Felizmente, este comportamento parece estar a mudar.

Anónimo disse...

Anónimo diz:"Quantas revistas de ciência em Português existem? Porque é que quase toda a ciência produzida em Portugal tem de ser para "inglês ver?""

Porque nãó é para inglês ver mas sim o mundo ver. Que sentido faz produzir ciência - não estamos a falar de divulgação da ciência, pois não? - em linguas que uma minoria da comunidade científica entende?

Carlos Aguiar disse...

Henrique, nem se deu importância, nem se educou, as pessoas de que falas. Quando digo educar, estou a falar da conversão, por exemplo, de um caçador de pintassilgos em bird-watcher, ou de um fotógrafo de plantas em botânico-amador.
A academia tem culpa, claro. Por exemplo, nunca valorizou (para subir na carreira, diga-se) os livros de divulgação, os guias ou os cursos de formação. Por outro lado, também é verdade, que a literacia botânica, zoológica, ou o quer seja, é baixa, e foi sempre baixa neste país.
Há excepções, e os melhores exemplos portugueses são os guias de répteis e anfíbios e de borboletas, que tu conheces. No que respeita aos amadores também há muitas excepções, não incluo neste grupo o Ernestino Maravalhas e outros, que são, no meu entender, investigadores de ponta. Conto-te apenas um caso curioso. Conheço um aluno de transmontano de medicina que acabou de descobrir no PNM um novo arbusto para a flora de Portugal. Este amador, e muitos outros, têm muito para dar à conservação da Natureza em Portugal.
Agora, atenção, essa informação de que falas tem de ser triada, organizada e preparada para ser usada pela academia e pelo naturalista-amador. Sem presunções, o naturalista-amador tem que ser enquadrado e formado. O ICNB, não vale a pena escamotear, teria, directa, ou indirectamente, com parceria académicas ou sem elas, um importante papel a este respeito. Estou, por exemplo, a falar do SIPNAT.

Eduardo Marabuto disse...

Infelizmente acho que cheguei um pouco tarde a esta discussão tão interessante sobre o vertebrismo institucional, a aceitação difícil dos invertebrados como dos melhores bioindicadores que existem (pelos números em que se apresentam, diversidade de espécies e estratégias, etc.) e o método científico mas…
Primeiramente existe um problema de comunicação entre a comunidade que se diz cientifica apenas porque cria conhecimento (ainda insuficiente para a biodiversidade que temos em Portugal mas isso são outras histórias) sustentada na burocracia a que lhe está associada (e não a gerindo como um problema de percurso) e todas as outras pessoas que gostam ou venham a gostar de estar em contacto com a natureza e descobrir coisas! Todavia… não começámos todos assim? Acho que ninguém nasce biólogo, astrofísico ou engenheiro mas toda a gente nasce curioso… (é o que nos dizem alguns cientistas que percebem do assunto após terem feito as suas análises estatísticas mas também o diz qualquer mãe).
A história do pensamento biológico foi tão feita de acasos, de descobertas feitas com base no empírico, na até ausência do dogmático método cientifico mas a comunidade científica esforça-se imenso para ocultar e silenciar essa linha de pensamento que me causa estranheza todos os dias.
É ridículo ignorar as observações dos leigos na matéria e aí não podia estar mais de acordo com a linha de pensamento do Henrique mas também é certo que se os cientistas profissionais servem para alguma coisa será porventura para pôr essas ideias que surgem ao comum do mortal na ordem. Pô-las na ordem, reconheço, significa muitas vezes contrariar, abafar, denegrir e minimizar mas muitas outras vezes também é informar e complementar com base no conhecimento actual, divulgar nos meios certos e ajudar a que se movam os cordelinhos no sentido de uma patente, no sentido da conservação dos valores naturais ou no sentido da destruição de um problema.
Quem me conhece sabe que trabalho com borboletas e uma das máximas que tenho é de não ignorar os pequenos fragmentos de conhecimento que surgem por parte de quem não está dentro do assunto, desde fulano tal que encontrou a borboletinha assim no meio do jardim assado e nunca a tinha visto ou cicrano que quer conhecer mais sobre o que poderá encontrar no seu quintal. Em Portugal ainda estamos num estádio muito embrionário das ciências biológicas onde os cientistas se consideram uma elite e não compreendemos o verdadeiro problema que nos assola: Estamos a perder biodiversidade a um ritmo alarmante e não sabemos sequer o que há nos nossos quintais. Contudo, estamos tão atrás do resto da Europa que para conseguirmos fazer boa figura na burocracia cientifica nos queremos logo pôr a fazer estudos ultra-complexos que exigem não só o tempo dos nossos cientistas como um grande grau de especialização fora do raio de acção do cidadão comum, o que quebra o contacto mas é o único tipo de conhecimento que gera dinheiro para os cientistas continuarem a trabalhar.

Eduardo Marabuto disse...

perdão, com as últimas duas linhas queria dizer é é o único tipo de conhecimento que hoje em dia consistentemente é financiado (perdoem-me a generalização se entre todos os projectos que são candidatos a bolsas e fundos há um de Atlas ou inventariação de biodiversidade ou estudo sistemático de algo, esse projecto tem muito menos probabilidade de ser financiado que outros). Nota: é uma ideia empirica que tenho, não sujeita a grande escrutínio da bibliografia nem após análise estatistica. É apenas a ideia que tenho que acredito que possa eventualmente estar errada mas... sinceramente não acho.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caros Carlos e Eduardo,
Nao é tarde para conversar sobre o assunto.
Vou tentar ser mais claro.
Com certeza que tenho uma ideia da diferença entre o conhecimento científico (e o processo da sua produção) e a produção de dados caótica que resulta dos gostos e preferências dos amadores.
E por ser tão óbvia esta diferença é que reagi ao facto de me tentarem explicar a diferença entre processo científico e registo de dados a pretexto de eu falar na desvalorização que a academia faz do conhecimento produzido fora da sua burocracia.
Também sei que cabe aos produtores científicos, em que se inclui com certeza o Maravalhas e outros, mesmo que não estejam na academia, estruturar e organizar a informação, não se pode pedir isso aos curiosos amadores.
Dou ainda de barato que o ICNB podia ser muito mais útil neste tipo de processos, mas a minha saída do ICNB, farto de aturar gente pequenina (não são muitos, não matam, mas moem), acho que é uma expressão suficiente do que penso sobre isso para estar sempre a repisar o assunto. E se tiver de voltar um dia destes não é por ter mudado de opinião mas simplesmente por não ter conseguido ganhar dinheiro suficiente para suster o crescimento das dívidas que resultam desta minha decisão.
Posto isto, o que interessa é fazer notar que o ICNB, o Estado, a academia, as instituições são todas muito úteis, mas não são imprescindiveis em processos como os dos atlas.
E que portanto mais vale discutir como se faz, prescindindo de que quem não quiser vir também, em vez de lamentar sistematicamente o que os outros deviam fazer e não fazem.
Repito, estou disponível para discutir com quem quiser como se faz, como se mobilizam recursos e como se organizm processos abertos para criar atlas e outros mecanismos de registo e estruturação de dados sobre biodiversidade.
Isto pode ser feito sem ICNB (a bio3, que é uma empresa, avançou muito, por exemplo, o Pedro Cardoso penso que tem uma base interessante, georeferenciada, sobre as aranhas, o Marabuto tem outra base sobre as borboletas nocturnas e poderia continuar). Com ICNB seria melhor?
Sim, seria, mas de que serve esperar por isso em vez de fazer o que for possível com quem realmente quer fazer?
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Henrique,

Penso que o que nos separa nesta discussão é a enfase dada. Eu penso que o problema da falta de informação e informação dispersa está no ICNB que tem, ou deveria ter, a responsabilidade de organizar os processos de colecta de dados, verificação dos mesmos, centralização dos dados em bases relacionais que pudessem depois ser usadas pelos diferentes agentes sociais. Tu respondes que o ICNB não vale nada e que o melhor é ir fazendo as coisas de forma ad-hoc pelo que vais incitando as pessoas (biólogos e amadores) a tomar iniciativa.

Está muito bem ter iniciativa e na realidade penso que as tuas palavras são algo extemporâneas pois se alguma coisa temos feita, em muito, o devemos à iniciativa de amadores e profissionais. Até os dois atlas das aves se fizeram com base no trabalho amador ainda que com a participação (maior no primeiro que no segundo) do ICNB. Mas se formos ver o Atlas das borboletas, a participação do ICNB foi, pasme-se, zero. Nem sequer para apoiar a publicação do atlas o ICNB participou. Não fosse o facto de os seus dinamizadores estarem dispostos a investir as suas poupanças pessoais neste atlas ainda estariamos à espera que fosse publicado. A pergunta óbvia é: sente-se o ICNB dispensado de responsabilidades na promoveção do conhecimento sobre invertebrados?

Serve isto para dizer que nao vale a pena bater nos amadores incitando-os a tomar a iniciativa. Iniciativa tomam eles todos os dias mas nem sempre têm condições se substuir ao Estado. Por exemplo, a nova geração de estudiosos dos invertebrados são, regra geral, bolseiros da FCT. Quer isto dizer que são avaliados pelos artigos científicos que escrevem, em Inglês, em revistas listadas pelo ISI (instutute for scientific Information). Livros e artigos em Português, listas de espécies, ou bases de dados não valem de nada nestas avaliações pelo que se estas pessoas seguirem os apelos, mais ou menos contundentes, que lhes apresentas serão, pura e simplesmente, postos no olho da rua (ou seja não terão as suas bolsas renovadas sendo cada vez mais difícil conseguir bolsas novas) e mais ninguém os contratará pois não há grande mercado para especialistas de aranhas e "outras porcarias".

Além deste pequeno pormenor paroquial existe outra questão de fundo. Enquanto formos, na boa tradição do nacional porreirismo, resolvendo os problemas com muita boa vontade e carolice, nada mudará no ICNB. Para que há de o ICNB estruturar-se e munir-se de um bom departamento de bases de dados biológicas se o povo faz o seu trabalho gratis?

Como vez é uma questão de enfase. Os voluntários há-os e vão fazendo o pouco que se fz em Portugal. "Bater" nessa gente de nada serve. Vale, sim, bater em quem não faz mas devia fazer pois é daí que poderao e deverão vir novidades no futuro.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Separa-nos muito mais que a ênfase.
Em quantos países são os atlas e guias feitos pelos ICNBs locais?
Tanto quanto sei, em poucos. Mas cá, temos os investigadores das instituições congéneres que em outros países fazem isso a protestar porque o ICNB não faz.
Qual é a responsabilidade da FCT (e genericamente, do sistema de produção de conhecimento) nisto? Nenhuma? Coisa estranha.
Uma correcção factual: os dois atlas das aves foram feitos com recursos do ICNB e,complementarmente, com outros recursos. Não só muitos dos recursos humanos, incluindo a espinha dorsal de coordenação, tinha um peso claramente dominante do ICNB, como os recursos financeiros que facilitaram a mobilização de voluntários pela SPEA foram do ICNB. Para já não falar nos voluntários mobilizados pelo próprio ICNB.
Agora a questão de fundo:
tu achas que ou o ICNB faz, ou tem de ser feito na base da carolice voluntária de alguns;
eu acho que é possível fazer um trabalho profissional e remunerado sem contar com o Estado, como se faz em muitos outros sítios do mundo.
Ou seja, tu achas que o único cliente da biodiversidade é o Estado, eu acho que é possível ter como cliente a sociedade.
Tu concluis que o que é preciso é bater no ICNB (o que vem sendo feito há mais de vinte anos);
Eu concluo que é preciso seduzir as pessoas.
Essa sim é a diferença. E não é de ênfase.
Aliás, repara que eu não critico os carolas mas sim o discurso sistemático de lamentação pelo que o ICNB não faz.
Sobre se o ICNB se sente dispensado de olhar para os invertebrados ou não, estou-me nas tintas para os sentimentos do ICNB, mas tenho de reconhecer o facto de poucas ou nenhumas instituições em Portugal terem feito mais esforço que o ICNB nessa matéria, incluindo a academia (onde alguns investigadores fazem um esforço meritório mas isolado) e o Museu de História Natural, sempre esquecido nesta história como se não tivesse ele próprio mais responsabilidades que ninguém.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Parte 1

HPS:
"Em quantos países são os atlas e guias feitos pelos ICNBs locais?"

Para que isto seja um diálogo temos de atender às palavras do outro. Eu não disse que os ICNBs locais "fazem" os atlas. Apenas que os devem de dinamizar a colecta de informação e centralizar os dados em bases de dados relacionais disponíveis aos utilizadores. Há uma diferença entre fazer e promover, fazer e centralizar, etc. Ora eu não conheço a fundo mais do que uma mão cheia de países onde residi (Reino Unido, França, Dinamarca e Espanha) e nos dois últimos , em particular, conheço o sistema razoavelmente bem. O que te posso dizer é que nestes países o Estado não se demite das suas responsabilidades nestas matérias.

HPS:
"Mas cá, temos os investigadores das instituições congéneres que em outros países fazem isso a protestar porque o ICNB não faz."

Quais instituições? Não estarás a confundir pessoas com instituições? Eu, por exemplo, não represento qualquer instituição.

HPS:
"Qual é a responsabilidade da FCT (e genericamente, do sistema de produção de conhecimento) nisto? Nenhuma? Coisa estranha."

Não é estranho e creio que fazes confusão entre dados e conhecimentos que estando, obviamente, associados não são o mesmo. A FCT não tem qualquer competência na angariação de dados biológicos, meteorológicos, económicos, sociais, cartográficos, ou outros mas o ICNB tem: "b ) Assegurar a preservação da conservação da natureza e da biodiversidade (...), promovendo a elaboração e implementação de planos, programas e acções, nomeadamente nos domínios da inventariação, da monitorização, da fiscalização e dos sistemas de informação" (ver página web do ICNB).

HPS:
"Uma correcção factual: os dois atlas das aves foram feitos com recursos do ICNB e,complementarmente, com outros recursos. Não só muitos dos recursos humanos, incluindo a espinha dorsal de coordenação, tinha um peso claramente dominante do ICNB, como os recursos financeiros que facilitaram a mobilização de voluntários pela SPEA foram do ICNB. Para já não falar nos voluntários mobilizados pelo próprio ICNB."

Não há qualquer correcção factual ao que eu disse. Os atlas foram feitos por centenas de amadores que palmilharam o país de lés a lés (foi isso que eu disse). No primeiro Atlas o ICN assumiu a coordenação efectiva do Atlas através do CEMPA. No último Atlas a SPEA substituiu o CEMPA e as hordas de amadores foram mobilizadas por esta organização e não pelo ICNB (e muitos técnicos do ICNB são também da SPEA). Nada de errado neste modelo que, na verdade, me parece ideal. Mas uma coisa é a coordenação outra é a execução e em ambos os casos foram os amadores que foram os verdadeiros artífices do atlas.

(continua)

Miguel B. Araujo disse...

Parte 2

HPS:
"Agora a questão de fundo: tu achas que ou o ICNB faz, ou tem de ser feito na base da carolice voluntária de alguns; eu acho que é possível fazer um trabalho profissional e remunerado sem contar com o Estado, como se faz em muitos outros sítios do mundo. Ou seja, tu achas que o único cliente da biodiversidade é o Estado, eu acho que é possível ter como cliente a sociedade."

Acho que estás a fazer uma grande confusão ao generalizar e ao fazê-lo estás a tentar empurrar-me para uma esquina que não é a minha (p.e., quando dizes "tu achas que o único cliente da biodiversidade é o Estado"). A angariação de dados brutos para munir um País de um sistema de apoio à decisão não é uma actividade rentável. Ao contrário do que dizes a recolha de dados brutos de biodiversidade, quer seja em formato de atlas ou de censos, nunca feita, com base em "trabalho profissional e remunerado sem contar com o Estado". A regra geral é que é um trabalho feito com uma boa dose de carolice e por vezes com pequenas compensações de custos (gasolina, alimentação etc) aos voluntários que efectuam o trabalho. A questão de fundo é quem coordenada estes levantamentos de informação. Em certos casos são grandes ONGAS (o caso típico das aves) mas na maior parte dos casos tal não é possível e o Estado tem de assumir a responsabilidade de organização das "forças vivas" em cada grupo taxonómico, disponibilizando recursos financeiros básicos para que estes trabalhos sejam efectuados. Quando existem museus de história natural a funcionar, o Estado beneficia de um apoio profissional inestimável mas quando estes não existem, ou estão decrépitos, tem de colmatar a lacuna como pode.

"Tu concluis que o que é preciso é bater no ICNB (o que vem sendo feito há mais de vinte anos); Eu concluo que é preciso seduzir as pessoas. Essa sim é a diferença. E não é de ênfase."

Como queiras. Para mim é mera questão de retórica porque na prática quem tem feito os atlas são as pessoas e não o Estado. Ao insistires na questão da sedução levantas uma falta questão pois nao é preciso seduzir os amadores e voluntários para fazer o trabalho do Estado. Eles não têm feito outra coisa. A novidade seria o ICNB assumir de uma vez por todas que para cumprir a sua missão de "Exercer as funções de autoridade nacional para a conservação da natureza e da biodiversidade" (ver página do ICNB), tem de reconhecer que tem de dispor de um sistema de informação de dados biológicos e que esta informação tem de incluir mais do que a distribuição de aves e linces. Nem sequer para os mamíferos temos informação geográfica de qualidade, quanto mais para os invertebrados e outra porcarias.

Miguel B. Araujo disse...

Parte 3

"Aliás, repara que eu não critico os carolas mas sim o discurso sistemático de lamentação pelo que o ICNB não faz."

Tu criticas o discurso de lamentação dos carolas que dão muitas horas da sua vida a recolher dados sem apoio do Estado e eu crítico as razões que estão por trás das lamentações e que não são ficção. Como cidadão e como utilizador de dados biológicos lamento que o meu Estado apenas saiba reconhecer as suas obrigações no papel (o que, reconheco, já é um passo) e lamento o discurso desculpabilizador do Estado.

"Sobre se o ICNB se sente dispensado de olhar para os invertebrados ou não, estou-me nas tintas para os sentimentos do ICNB, mas tenho de reconhecer o facto de poucas ou nenhumas instituições em Portugal terem feito mais esforço que o ICNB nessa matéria, incluindo a academia (onde alguns investigadores fazem um esforço meritório mas isolado) e o Museu de História Natural, sempre esquecido nesta história como se não tivesse ele próprio mais responsabilidades que ninguém."

Se queres ser rigoroso, no que respeita os invertebrados, não são as instituições portuguesas que são dignas de menção mas sim uma meia duzia de carolas que o Estado deveria condecorar que mais não seja deforma póstuma. Quanto aos museus muito haveria que dizer mas fica para outra ocasião. Sobre este tema, aliás, já escrevi um post neste blogue http://ambio.blogspot.com/search/label/Museos). Para já basta dizer que de facto não são museus nacionais de história natural mas sim museus universitários e que para serem museus nacionais e cumprirem a sua função deveriam, como aconteceu em Espanha, passar à alçada directa de um Ministério (ciência ou ambiente). A outra alternativa era serem privatizados mas creio que no contexto nacional tal opção não funcionasse.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
1) Fugiste à minha comparação com outros países, falando em Portugal do ICNB e nos outros países do Estado. Penso que ao fazê-lo confirmas que estamos de acordo no facto do Estado ter responsabilidades, fica em aberto, porque menos imortante apesar de tudo, por que razão te fixas no ICNB esquecendo todas as outras instituições que nos outros países fazem o trabalho.
2) Correcção factual sim, não foi a SPEA, nem de longe, que coordenou e geriu o segundo atlas, e muito menos substitui o CEMPA, foi o ICNB que coordenou o Atlas, fez as funções que já tinha feito antes, em colaboração com a SPEA. E não foi apenas a SPEA (eu diria, nem sobretudo) que mobilizou e geriu voluntários, foi também o ICNB. E está por fazer a contabilidade da distribuição entre trabalho de campo produzido pelos funcionários do ICNB e pelos voluntários que, a ser feita, muito te surpreenderia. O modelo de parceria é também o que defendo mas é muito difícil mantê-lo quando não existe lealdade de relação entre parceiros. Sobre isso escrevi aliás um post que ofendeu a SPEA sem que tenham alguma vez contestado os factos.
3) A demonstração de que a recolha de dados pode ser uma actividade rentável é o facto de dizeres que em muitos países ela feita por grandes ONGs. Em qualquer caso eu apenas defendo que as organizações e as pessoas em Portugal recusam levar esta inha de trabalho até aos seus limites. Provavelmente não resolveriam o problema mas confrontariam o Estado muito mais eficazmente com as suas responsabilidades. Volto a dizer que estou disponível para demonstrar que é possível mobilizar meios para promover, organizar, estruturar a informação de um Atlas sem o apoio do Estado como base de partida.
4) Quando falo na sedução das pessoas não é na sedução dos voluntários que falo. Aparentemente tens alguma dificuldade em sair da dicotomia estado voluntários e entrar em linha de conta com os financiadores e o público não amador mas simpatizante. Por isso percebo a tua opinião mas acho que falta este aspecto central: há valor, e quando digo valor estou a falar em valor de mercado, nestes processos, logo há margem para uma maior integração na economia, fugindo da dicotomia Estado/ voluntários. Volto a dizer, não resolve tudo, funciona melhor em colaboração com o Estado mas é possível ir mais longe que o que se tem ido sem o Estado. E é mais gratificante que chorar sobre leite derramado.
5) No que diz respeito ao ICNB é de facto a instituição, e não apenas as pessoas, que de forma mais consistente tem olhado para os invertebrados, que tem várias publicações sobre o assunto e que tem pago vários estudos onde o assunto é tratado e tem chegado a tomar decisões sobre projectos com base na afectação de invertebrados. É muito menos do que devia? De acordo, mas não vale a pena bater sistematicamente em que faz pouco, deixando de lado quem faz nenhum, como é o caso dos museus de história natural (sejam eles universitários ou não).
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Parte 1

HPS:
"1) Fugiste à minha comparação com outros países, falando em Portugal do ICNB e nos outros países do Estado. Penso que ao fazê-lo confirmas que estamos de acordo no facto do Estado ter responsabilidades, fica em aberto, porque menos imortante apesar de tudo, por que razão te fixas no ICNB esquecendo todas as outras instituições que nos outros países fazem o trabalho."

Não fugi não. Apenas disse que além de Portugal só conheço a fundo, em matéria de conservação, dois países: Reino unido e Espanha. O primeiro é mau exemplo para comparação pois possui o melhor sistema de informação biológica do mundo em grande parte devido ao número colossal de naturalistas amadores (e ao facto da biologia moderna ter nascido neste país) mas também ao facto de possuir um departamento estatal especializado na definição de estandares de recolha e centralização de dados biológicos, o "Biological Records Centre". Podemos usar o Reino Unido como meta mas obviamente todas as comparações entre estes País e Portugal revelam anos de diferença. Já Espanha revela uma realidade mais afim à nossa e como tal passível de comparações. Sim, Espanha tem mais amadores (mas também uma área maior). Sim Espanha tem mais universidades. Sim Espanha tem um Museu de Ciências Naturais que faz corar de inveja muitos museus da Europa. Mas sim a Divisão de Biodiversidade do Ministério do Ambiente assume a centralização destes dados e sim apoia técnica e financeiramente a elaboração dos programas de recolha de dados sobre vertebrados, invertebrados e plantas. E por lá não se houve o argumento de "organizem-se que o Estado não serve para nada".

HPS:
"2) Correcção factual sim, não foi a SPEA, nem de longe, que coordenou e geriu o segundo atlas, e muito menos substitui o CEMPA, foi o ICNB que coordenou o Atlas, fez as funções que já tinha feito antes, em colaboração com a SPEA. E não foi apenas a SPEA (eu diria, nem sobretudo) que mobilizou e geriu voluntários, foi também o ICNB. E está por fazer a contabilidade da distribuição entre trabalho de campo produzido pelos funcionários do ICNB e pelos voluntários que, a ser feita, muito te surpreenderia. O modelo de parceria é também o que defendo mas é muito difícil mantê-lo quando não existe lealdade de relação entre parceiros. Sobre isso escrevi aliás um post que ofendeu a SPEA sem que tenham alguma vez contestado os factos."

Parece-me que aqui entramos em querelas entre o SPEA e o ICNB que não me interessam para nada, pelo que não direi mais nada sobre o assunto. Mas nada disto altera a substância da argumentação nem o facto de em ambos casos os verdadeiros artífices dos atlas terem sido voluntários e amadores.

HPS:
"3) A demonstração de que a recolha de dados pode ser uma actividade rentável é o facto de dizeres que em muitos países ela feita por grandes ONGs.

Não vejo qualquer demonstração (o que se demonstra e que as pessoas se podem organizar e assumir custos de uma actividade se tal as interessar) e o caso resume-se às aves e talvez às borboletas no Reino Unido. Digamos que são exemplos mas não representam nem de perto nem de longe a biodiversidade do planeta que centenas de Estados têm obrigação constitucional de salvaguardar.

Miguel B. Araujo disse...

Parte 2

HPS:
"Em qualquer caso eu apenas defendo que as organizações e as pessoas em Portugal recusam levar esta linha de trabalho até aos seus limites."

Mas quais organizações? Quais pessoas? Estamos a falar de Portugal ou de Alice no País das Maravilhas? Como podes ser tão complacente com a incompetência do Estado e tão exigente com um conceito abstracto de sociedade que nem defines nem, provavelmente, existe? E a que existe trabalha, faz e sobrepõe-se ao Estado sempre que pode.

HPS:
"Provavelmente não resolveriam o problema mas confrontariam o Estado muito mais eficazmente com as suas responsabilidades. Volto a dizer que estou disponível para demonstrar que é possível mobilizar meios para promover, organizar, estruturar a informação de um Atlas sem o apoio do Estado como base de partida."

Avança com a demonstração que estamos todos à espera de saber como se fazem esses atlas de qualidade para as aranhas, as moscas, vespas, e as formigas. Se conseguires demonstrar isso, neste País contratar-te-ão como consultor em diversas instituições.

"4) Quando falo na sedução das pessoas não é na sedução dos voluntários que falo. Aparentemente tens alguma dificuldade em sair da dicotomia estado voluntários e entrar em linha de conta com os financiadores e o público não amador mas simpatizante. Por isso percebo a tua opinião mas acho que falta este aspecto central: há valor, e quando digo valor estou a falar em valor de mercado, nestes processos, logo há margem para uma maior integração na economia, fugindo da dicotomia Estado/ voluntários. Volto a dizer, não resolve tudo, funciona melhor em colaboração com o Estado mas é possível ir mais longe que o que se tem ido sem o Estado. E é mais gratificante que chorar sobre leite derramado."

Henrique, tudo o que dizes soa bem mas também soa a ficção. Estivestes anos no ICNB (alguns deles com responsabilidades directivas) e poderias ter demonstrado o que dizes a partir de uma posição de vantagem que é a posição de quem tem legitimidade para despoletar processos. Falo de legitimidade institucional pois é ao ICNB que cabe, por missão, dinamizar estes processos (o que não quer dizer que outros o façam também se o quiserem). Agora o que nos apresentas é mera retórica e ainda por cima soa a recriminação aos vários amadores que não fazem aquilo que tu julgas que eles têm de fazer.

HPS:
"5) No que diz respeito ao ICNB é de facto a instituição, e não apenas as pessoas, que de forma mais consistente tem olhado para os invertebrados, que tem várias publicações sobre o assunto e que tem pago vários estudos onde o assunto é tratado e tem chegado a tomar decisões sobre projectos com base na afectação de invertebrados. É muito menos do que devia?"

Pouco será certamente. E também é possível que as prioridades não sejam as mais acertadas. Não sei pelo que não me pronuncio em mais detalhe. O que sei é que os resultados estão há vista e que se continua a saber muito pouco sobre que invertebrados temos, onde e quais o que deveriam receber prioridade de conservação e que sem isso o ICNB não pode cumprir a sua missão como deve ser.

HPS:
"De acordo, mas não vale a pena bater sistematicamente em que faz pouco, deixando de lado quem faz nenhum, como é o caso dos museus de história natural (sejam eles universitários ou não)."

Não se pode bater em quem não existe. Os museus de facto não existem nem sequer para a sua função primordial que é reunir e preservar colecções de materiais biológicos. A vocação de cartografia sempre foi marginal nestes museus e só os grandes museus, com grandes colecções e grandes equipas de investigação, puderam contribuir para a cartografia da biodiversidade. Hoje, fazem-no através do GIBIF mas isto não substitui a necessidade de as agências estatais do ambiente terem estruturas de centralização de dados que ajudam a cumprir a função primordial que é dar assessoria às decisões do Estado em matéria de conservação da biodiversidade.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Complacente com a incompetência do Estado? Eu? Talvez.
Não falei em atlas de qualidade, falei em atlas possiveis, que serão piores que os de qualidade e melhores que nada.
Sim, tive responsabilidades no ICNB e costumo dizer, meio a brincar, que os biólogos que gostam de trabalho de campo me devem pelo menos duas estátuas: uma pelos empregos que lhes arranjei com a exigência que impus em matéria de biodiversidade nos processos de AIA (incluindo a monitorização) e outra pelas oportunidades que lhes abri com a forma como geri o que me cabia na iniciativa Business and Biodiversity.
E sim, os atlas todos que foi possível tiveram um impulso fundamental no pouco mais de ano e meio em que participei na presidência do ICNB. E sim, foi quando eu tive responsabilidades directas no assunto que acabaram todos os planos de ordenamento das áreas protegidas. E sim, foi a presidência de que fiz parte que estruturou cadernos de encargos que suportaram concursos internacionais para a elaboração de planos de ordenamento que teriam, não fora a imensa ignorância em ordenamento dos responsáveis seguintes, um forte impacto na sistematização da informação biológica das áreas protegidas abrangidas. E sim, foi quando eu tive responsabilidades na edição de publicações que finalmente se publicaram os atlas das aves e répteis e reeditou o mais pedagógico livro sobre os habitats naturais e o livro vermelho (quase sem gastar um tostão para além do trabalho das pessoas envolvidas).
E sim criei o embrião de uma parceria pública e privada do que seria um sistema de recolha e gestão de informação biológica que foi travada por razões laterais pela presidência do ICNB, tendo retomado o assunto sem participação directa do ICNB, embora com compromissos de fornecimento da informação que a profunda limitação intelectual de alguns donos de pedaços fundamentais do ICNB boicotaram.
Miguel, se opto por investir os esforços em ir tão longe quanto possível sem contar com o ICNB (ou melhor com o Estado Português) nesta matéria não é por complacência, é porque conheço muito bem o esforço que é preciso fazer para que a administração pública portuguesa dê um passo, mas sei também como isso é apenas o reflexo de uma sociedade acomodada e que prefere criticar o Estado inconsequentemente que fazer o que pode fazer com os recursos que tem.
Mas sabendo isto tudo não aceito facilmente que os museus, as universidades e tutti quanti sejam ilibados das suas responsabilidades. Nem aceito que não se reconheça que se hoje existem outra vez sistematas em Portugal, biólogos no campo, fitossociólogos e por aí fora, tal se deve em grande medida ao impulso externo da rede natura 2000 e dos milhares de euros associados que o ICNB geriu e distribui profusamente pelas instituições de investigação, com erros de gestão crassos, é certo, que permitiram que quem queria produzir produzisse mas que quem não quiz produzir não produzisse coisa nenhuma e continue, ainda hoje, a reivindicar mais e mais meios ao ICNB como se fossem capazes de prestar contas do que fizeram com o dinheiro que lhes foi entregue nessa altura.
E sim, vou tentar demonstrar que é possível depender menos da influência sobre as decisões sobre os recursos do Estado e mesmo assim ter recursos para fazer coisas úteis.
E sim, o mais provável é que não consiga.
Mas dormirei descansado por ter tentado em vez de ficar por aí à esquina a protestar contra a incompetência do Estado.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Henrique,

Todos temos a nossa história de vida que informa e deforma as nossas posições. Tu tens o teu percurso que te leva a desistir do Estado. Terás as tuas razões. Eu tenho o meu percurso que me leva a insistir para que o Estado faça o que tem a fazer. Eu acredito que as prioridades do Estado não são insensíveis ao que os cidadãos pensam e dizem e tenho esperança de ver, antes de morrer, um ICNB ou o instituto que lhe venha a suceder a desempenhar um papel mais protagonista no esforço de conhecimento do nosso património natural. Também tenho esperança de ver aumentar o número de amadores taxonómicos (que já aumentou desde os meus tempos de juventude) e já agora de ver um Museu Nacional de História Natural renascer das cinzas (literalmente). Tenho muitas dúvidas que seja possível conceber o esforço de fazer a radiografia da biodiversidade de um País exclusivamente com financiamento privado e com base na iniciativa dos cidadãos o que não quer dizer que em casos pontuais isso não seja possível. Creio, ademais, que esta tarefa é inscreve-se nas funções do Estado da mesma forma como o Estado tem competência para produzir estatísticas demográficas, económicas, series meteorológicas, etc. Não vejo porque o caso da biodiversidade, que é inegavelmente mais complexa, deva ser diferente.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Limitei-me a responder à tua provocação, legítima, acerca das minhas responsabilidades pessoais no assunto.
O resto respondo-te nos comentários ao teu post mais recente.
henrique pereira dos santos