sexta-feira, julho 10, 2009

Mistificação

Ainda vou na página 175 das 266 do Plano Estratégico dos Transportes.
Quase desde o início que percebi que o que estava a ler não era um documento técnico mas uma espécie de justificação aparentemente técnica de opções políticas.
Desde a definição metodológica da construção do documento, de onde se arreda tudo o que não seja estritamente pertencente ao sector, até à opção por considerar a necessidade de fazer estradas não em qualquer verdadeiro argumento técnico mas com o facto de estarem previstas no Plano Rodoviário 2000 (independentemente da realidade entretanto demonstrar que as previsões de tráfego que o justificaram estarem claramente empoladas para justificar o injustificável), que tenho esta sensação de estar a ler uma espécie de conto de fadas sem qualquer suporte técnico.
Veja-se n figura abaixo como entre a linha de costa e Santarém se desenham quatro estradas paralelas de Lisboa ao Porto. Por causa dos constrangimentos orçamentais e da contabilidade criativa necessária para fazer as estradas já e deixar a conta a quem vier depois, todas estas estradas, se não me engano (três seguramente, a quarta não tenho a certeza) serão feitas com concessões com portagem. Basta andar na A8 para perceber que evidentemente não há trânsito que justifique isto. A justificação tem sido o intenso tráfego da antiga estrada nacional 1. Só que essa estrada tem um trânsito intenso, em especial de pesados, que nunca se transferirá para nenhuma concessão com portagem por duas razões: por um lado é um trânsito que é gerado localmente pela intensa actividade económica da região, a quem não compensa ir por estradas pagas cujo acesso obriga a desvios que consomem os eventuais ganhos de tempo de usar estradas melhores; por outro porque exactamente grande parte destes operadores vão por esta estrada por não ser paga. Diga-se em abono da verdade que as velocidades que se praticam nesta estrada são perfeitamente compatíveis com os objectivos dos operadores, sendo necessárias correcções a alguns estrangulamentos, eventualmente algumas variantes, mas nenhuma nova concessão com portagem virá a tirar trânsito significativo a esta estrada pela simples razão de que já hoje existe capacidade de absorção por parte das auto-estradas existentes e não é usada.
Tudo isto é coerente com a direcção política vinda de um Ministro que um dia disse, a propósito do novo aeroporto de Lisboa, então na OTA, "as decisões políticas estão tomadas, seguem-se agora os estudos".
É certo que me faltam as restantes quase cem páginas do documento e todo o documento da avaliação ambiental estratégica mas cito a última das 16 tendências de fundo que o documento identifica como enquadradoras de toda a evolução dos transportes para justificar a minha conclusão preliminar:

"PD 16 – O fim de um paradigma de funcionamento da economia e a lenta afirmação de um novo
A grave crise que eclodiu em 2008, nascida no sector financeiro e que rapidamente se propagou à economia real e à esfera social, tem contornos que, neste momento, estão ainda mal definidos,
nomeadamente no que se refere ao momento em que o ciclo se inverterá. Contudo, parece hoje claro que ela representa, de alguma forma, o fim de um paradigma que teve no fundamentalismo do mercado a sua expressão mais evidente. Durante cerca de vinte anos o pensamento dominante confiou cegamente no mercado enquanto regulador de toda a actividade económica, forçando o fim da regulação. Esta ressurge actualmente como uma necessidade que está a reformar por dentro todos os princípios de governância no sentido de um papel mais importante do Estado e das agências reguladoras."

É isto o que se define num documento técnico como uma tendência de fundo? É isto que é tomado como bom e tecnicamente fundamentado para fazer opções sobre estradas, comboios, aviões, portos e plataformas logísticas? É esta a qualidade técnica dos documentos de suporte da decisão política?
Por mim, apesar de continuar a ler até ao fim, estou esclarecido.
henrique pereira dos santos

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