domingo, outubro 11, 2009

Notícias do bloqueio


O Miguel Araújo e eu resolvemos ter uma discussão estranha a propósito deste post. E estranha porque os dois estamos de acordo na necessidade de aumentar a exigência dos sistemas de avaliação e não conseguimos por-nos sequer de acordo sobre o âmbito do que estamos a discutir.
Resolvi por isso contar duas histórias para enquadrar melhor o que venho dizendo sobre sistemas de avaliação na administração pública.
A primeira, mais curta, prende-se com a aplicação do kafkiano sistema de avaliação da administração pública (o SIADAP, introduzido por Manuela Ferreria Leite há uns anos e sucessivamente tornado mais kafkiano pelo Governo seguinte, nomeadamente em função de sinuosas negociações com os sindicatos).
O sistema impõe quotas para a atribuição de classificações mais elevadas (não tenho nada contra um sistema de quotas, bem pelo contrário, mas isso poderia ter sido feito com o sistema anterior e de forma mais sensata. Por exemplo, o departamento que eu chefiava não tinha gente suficiente para aplicar a quem quer se seja a classificação máxima, o que gerou situações de injustiça real gritante, em relação a departamentos maiores).
Estas quotas implicavam que só poderia haver cinco dirigentes de um determinado nível a ter uma determinada classificação. Optou-se por encontrar mecanismos meritocráticos para atribuir essas cinco classificações? Não, optou-se por atribuir a cada um dos cinco departamentos regionais uma dessas classificações, que o chefe de departamento atribuiria livremente, espera-se que por critérios de mérito, sem qualquer consideração pelo desempenho de cada um dos departamentos e vedando aos departamentos centrais o acesso a essa classificação, independentemente da qualidade de desempenho dos dirigentes do nível avaliado.
A segunda história é bastante mais antiga, do tempo em que havia directores de áreas protegidas e concursos para preencher esses lugares.
Tendo aberto concurso para Montezinho, resolvi concorrer com o requerimento que transcrevo:

"Ex.mo Sr. Presidente do Instituto da Conservação da Natureza

Rua da Lapa n.º 73, 1200 Lisboa
Henrique de Menezes de Almeida Pereira dos Santos, ... , requer a V.Exa. que se digne admiti-lo ao concurso para o preenchimento do lugar de Presidente da Comissão Directiva do Parque Natural de Montezinho, ... .
Declaro sob compromisso de honra que são verdade os requisitos solicitados no ponto 1 do aviso referido bem como os factos constantes no curriculum vitae que se encontra anexo a requerimento do mesmo teor que apresentei como candidatura ao lugar de Presidente da Comissão Directiva de Sintra-Cascais e que por uma questão de sustentabilidade no uso de recursos me dispenso de entregar de novo.
Na verdade, sendo a reutilização um dos principais pilares de racionalidade no uso de recursos e tendo o referido curriculum sido completamente inútil na selecção anterior, de tal forma que nem foi analisado, penso que tem todo o sentido o seu reaproveitamento para este concurso, se por acaso se admitir a hipótese de que vale a pena fazer avaliações curriculares para escolher as pessoas mais habilitadas para os cargos dirigentes das áreas protegidas.
Se, pelo contrário, e em vez do que se poderia admitir da leitura dos avisos publicados sobre a matéria, o pedido dos curricula for uma mera formalidade, e a necessidade de cumprimento do código do procedimento administrativo nesta matéria for também dispensável, como aconteceu no concurso anterior para a direcção do Parque Natural de Sintra-Cascais, mais se justifica a reutilização do curriculum já entregue, tanto neste como noutros processos de selecção, evitando-se assim a sistemática reprodução de curricula cuja função parece ser sobretudo a de ornamentar as candidaturas dos simples de espírito que se envolvem de boa-fé nestes processos.
Lisboa, ... 2003
Pede deferimento"
Como é evidente da leitura do requerimento eu nem sequer estava interessado em ir para Bragança mas resolvi usar este concurso para protestar contra uma decisão anterior depois de ter consultado o processo de concurso anterior e ter verificado que das sete candidaturas, apenas uma, a que ganhou, ter tido o seu curriculum sequer mexido (os outros estavam meios perdidos noutro lado qualquer sem qualquer sinal de terem sido manuseados).
Ao que me disse o então Presidente do ICNB, que me chamou ao seu gabinete, o então Secretário de Estado, pessoa sem sentido de humor, concluí eu, sabendo que eu não queria ir para Bragança, de castigo ia fazer-me ganhar o concurso (acho que havia mais dois candidatos) e obrigar-me a ir para Bragança.
Eu lá expliquei que para me obrigarem a ir para Bragança não bastava eu ganhar o concurso (o que aliás seria justo face aos curricula dos vários concorrentes), era preciso que eu assinasse o termo de posse, decisão para a qual tinha toda a liberdade de escolha, não podendo ninguém obrigar-me a fazê-lo.
O resultado foi o expectável na administração pública: nomearam em substituição uma quarta pessoa que nem sequer tinha concorrido.
É que apesar da lei dizer que as substituições só podem durar seis meses, a Direcção Geral da Administração Pública desencantou uma regra geral que diz que um dirigente não pode abandonar o cargo pelo qual está responsável sem ter sido substituído. Portanto, enquanto não houver outra nomeação para o cargo, a pessoa tem de continuar a exercer o cargo, mesmo que os seis meses tenham passado.
Na verdade muitos juristas da administração pública passam mais tempo a encontrar mecanismos para os dirigentes não serem obrigados a cumprir a lei, sem a violar, que a pensar como se pode melhorar a aplicação da lei.
Eu gosto de trabalhar na administração pública, sempre gostei, acho que há imensas coisas que só é possível fazer a partir da administração, acho que dos melhores técnicos que encontrei muitos estão na administração (mal pagos e muitas vezes sufocados, quando não mesmo humilhados por qualquer tiranete com as relações pessoais e políticas certas) e tenho um enorme respeito pela quantidade de gente com qualidade que trabalha na administração.
Reajo mesmo agressivamente a críticas infundadas ou mal dirigidas ao trabalho da administração por gente que não faz a mínima ideia dos assuntos sobre que falam, como por exemplo aconteceu às críticas da QUERCUS ao trabalho notável que foi feito no Plano Sectorial da Rede Natura.
Mas nada disso me faz perder a lucidez de saber que o actual sistema de avaliação de desempenho na administração pública é mais ou menos como alguém que achando que o manicómio funcionava mal, pretendesse resolver o assunto avaliando o desempenho dos malucos que lá estão em vez de avaliar o desempenho de quem o dirige.
henrique pereira dos santos

1 comentário:

José M. Sousa disse...

Tem muita razão no que diz.