domingo, outubro 11, 2009

O crime de Ermelo

As eleições foram sempre momentos vividos com grande crispação nos meios rurais. Não faltam, em Trás-os-Montes, por exemplo, histórias de traulitadas e assassinatos políticos, sobretudo nos tempos da Monarquia Liberal e da I República. Nos dias de hoje, ameaças de morte, panfletos anónimos, telefonemas a meio da noite são factos relativamente frequentes do quotidiano. Se o são em Trás-os-Montes, são-no também noutras regiões de Portugal. Mas ontem, domingo 11 de Outubro de 2009, um candidato a presidente da junta de freguesia de Ermelo foi assassinado a tiro pelo candidato da oposição, num acto de violência que a todos deixou estupefactos. Porque se mata um candidato a presidente da junta, numa pequena aldeia encravada na serra?

As causas profundas deste acontecimento não irão, com toda a certeza e infelizmente, ser discutidas nos meios de comunicação social. Uns dirão que foi um acto tresloucado, sem significado, outros que a culpa é do Presidente da Câmara, ou do Sócrates, conforme lhes aprouver.

Na minha opinião, a conflitualidade ligada ao poder autárquico em vez de regredir, parece estar a agravar-se. Por isso, o crime de Ermelo não é o primeiro do género nos últimos 30 anos, nem será o último. A causa desta tendência reside no próprio sistema eleitoral, como passo a explicar. Eu, que conheço bem Ermelo - mais as plantas do que as gentes, é certo – posso dizer que nada a distingue das restantes aldeias montanas, ou de qualquer outro pequeno povoado português.

As freguesias rurais têm cada vez menos gente, menos eleitores. Consequentemente, em muitas freguesias é possível prever, com precisão, os resultados eleitorais de cada partido. Por isso, a preparação das eleições autárquicas exige um grande trabalho de retaguarda dos staffs partidários. Os candidatos à presidência da junta são recrutados entre as facções dominantes das famílias mais numerosas. Os votos em falta compram-se com prendas, dinheiro ou pequenos favores. No dia da votação, levam-se os eleitores até à mesa de voto e, se for preciso, os doentes em cadeira de rodas. Para que tudo corra bem, alguém de confiança, de mau feitio de preferência, estará postado à entrada dos locais de voto ou, mais adiante, nas mesas de voto. Todo este processo desenrola-se com a conivência das concelhias partidárias, dos candidatos a presidente da câmara, e dos governadores civis, em representação do governo.

Nos meios rurais, as rendas mensais dos titulares dos cargos remunerados nas freguesias são muito significativas. Um presidente de junta pode receber 581 euros/mês (tempo inteiro sem exclusividade), e os vogais e tesoureiros 209 euros/mês. Depois, há o prestígio, o ser amigo do presidente da câmara, o ser capaz de decidir por onde passa o caminho, onde acaba a estrada alcatroada, ou quem ocupará a vaga disponível no centro de dia. Não admira que primos e irmãos se zanguem, que os mais velhos sejam indecentemente pressionados no momento do voto, que as pessoas se insultem, ameacem … e matem.

A freguesia é o domínio por excelência da pequena política, do pequeno poder. É normal que seja o dono das máquinas florestais, o pequeno empreiteiro, o proprietário das pedreiras ou da vacaria, quem chega a presidente da junta. Ou então, o dono de café, o comerciante ou o polícia que vive na sede de concelho. Como os presidentes da junta, por sua vez, têm um papel muito importante nas assembleias municipais e condicionam a decisão dos seus conterrâneos na eleição da presidência da câmara municipal, esta pequena política propaga-se ao nível do concelho e, sobretudo, ao nível das concelhias e distritais dos partidos de poder. Ou seja, a dramática fragilidade dos mecanismos da democracia existentes nas aldeias produz os seus efeitos para lá das fronteiras da freguesia, infectando também a vida política dos concelhos, dos distritos, e do país.

Nas regiões despovoadas do interior, estas perversões do sistema político-administrativo à escala da freguesia têm um enorme impacto no território, e no ambiente. Esta discussão pode resumir-se numa pergunta: como pode o interesse colectivo representado pelo Estado sobrepor-se à mesquinhez eleitoralmente legitimada, por processos que são um insulto à democracia?

Melhor ambiente, melhor ordenamento do território, melhor democracia, exige uma reforma administrativa. Como recentemente dizia um presidente da junta do concelho de Mirandela, “não faz sentido que freguesias com pouco mais de uma centena de eleitores tenham precisamente as mesmas atribuições e competências que outras com milhares de eleitores”. E que sentido faz submeter o inúmeros idosos que povoam as nossas aldeias à violência de um processo eleitoral corrompido? No fundo, que utilidade têm para os seus habitantes e par ao país, freguesias rurais com poucas dezenas, ou centenas de eleitores?

Por que não mudar? A importância da nossa freguesia na estrutura administrativa territorial não tem paralelo na Europa. Em Espanha, por exemplo, a divisão administrativa autárquica mais pequena é o “ayuntamento”, correspondente ao município português. Por outro lado, o desenho das freguesias foi herdado da reforma de 1878, por sua vez influenciada pela reforma de Mouzinho da Silveira e pela estrutura do território do Antigo Regime, e por aí ficou. Reflecte as necessidades de uma sociedade, de um país que já não existe.

12 comentários:

Anónimo disse...

Para acentuar ainda mais a ideia que são ajustes de contas entre familias e conhecidos devo corrigir que a vítima foi o marido da candidata, não o candidato em si.

Gonçalo Rosa disse...

Carlos,

Completamente de acordo. É precisamente pelos motivos que apresenta que voto sempre em branco para a Assembleia de Freguesia.

Gonçalo Rosa

aeloy disse...

Independentemente da justeza de grande parte das observações que em geral partilho devo dizer que este caso pode ser ou um simples crime passional ou como me comunicaram um problema de partilhas...
Nada que ver com outras políticas, que bem sei têm também dimensão familiar e/ou paroquial...
CC
António Eloy

Carlos Aguiar disse...

António, e anónimo. Ermelo foi mais um pretexto para falar de algo que me aflige, do que outra coisa qualquer.
Ainda agora num e-mail particular referia que a "relação das câmaras com as freguesias funciona na base do tráfego de influências". Por exemplo, para aprovar um orçamento, oferecem-se umas camionetas de paralelos, umas anilhas, e sabe lá que mais. E o rol das causas das disfunções da administração local continua por aí a direito, sem que ninguém se preocupe em mudar leis, regulamentos, o que for preciso. Por exemplo, gostava de saber como é possível gerir uma câmara como a de Barcelos com 89 freguesias ... só para conhecer os presidentes e as suas famílias é preciso mais de um mês!
A corrupção e a ineficiência do Estado está mais nestas coisas simples, muitas delas com raízes num passado profundo, do que nos temas que geralmente concentram a atenção dos jornais e do público. Parece-me.

francisco minhava disse...

Eu, que há mais de quarenta anos saí do meu Ermelo natal para nunca mais voltar, nunca pensei em ter que um dia ver estas notícias...

J. Teixeira da Silva disse...

Eng.º Carlos Aguiar,quando diz no seu comentário, que conhece bem Ermêlo, as suas plantas e talvez um pouco menos a sua gente, fico com a ideia, que é natural dessa freguesia ou de lá perto.Por exemplo em Campanhó, há muita gente de apelido "Aguiar".Seja como for, foi por mero acaso que vim parar a este "blog",que adorei visitar, pela sua excelente qualidade.Obviamente, que se eu estou certo e o meu amigo é desta região, tem muito com que falar dela, tão rica é a sua natureza.
Espero poder passar por aqui mais vezes e ser surpreendido com alguns trabalhos, sobre Ermêlo, as Fisgas,os rios Olo e Cabril,etc.
Quanto ao amigo, Francisco Minhava, que disse ter saído de Ermêlo à quarenta anos, sem lá voltar, penso que deve pertencer à ilustre família dos "Minhava", cujo elemento mais velho - ainda vivo - é o Monsenhor Ângelo do Carmo Minhava, a residir no seminário de Vila Real.
Hoje, por aqui me fico.
J. Teixeira da Silva

Jaime Pinto disse...

Tráficos de influências muito mais danosos para a democracia e contribuintes ocorrem entre grandes empresas e governante do poder central. Oferta de tachos em troca de favores, negócios escuros e comissões mafiosas são o dia-a-dia dos politicos de topo.

O que faz grande confusão ao Carlos Aguiar não passa de reles trocos relativamente à taluda total em jogo.

Coitadas das pequenas freguesias! Culpá-las dos defeitos da nossa democracia é idêntico a punir com pena de prisão um pilha-galinhas.
Jaime Pinto

Anónimo disse...

Conheci bem os dois principais intervenientes neste crime, que não foi passional, nem de partilhas, mas sim 'político' na mais real acepção do termo. O Cunha de Ermelo representa o cacique de ontem e de hoje, o arrogante déspota local que ameaça, corrompe, assassina cobardemente. O Maximino era um homem inteligente, amigo do seu amigo, bem humorado e sobretudo corajoso para enfrentar a injustiça dos manipuladores e poderosos, sejam representantes do poder central, sejam tiranos de aldeia. Presto sentida homenagem ao Maximino Clemente, herói caído pela traição da democracia que elege seus representantes sinistros corruptos. Conta-se em Ermelo que os Romanos, cercando as muralhas do seu castro, exigiram o ouro que lá existia, ao que os emissários da aldeia lhes vieram responder que 'ouro não tinham, mas sim ferro para os combater'. O Maximino era desta têmpera de carácter vertical transmontano, e assim ficará para sempre na minha memória.

Anónimo disse...

Incrivel. Mas acredito plenamente que o raciocinio do autor seja a verdade, pois as mesquinhices mais abominaveis existem de facto ainda entre pessoas de pequenas populacoes rurais, e tomam dimensoes de absurdidade repugnante quando relacionadas a politicas.
Obrigada por postar este texto, que revela um pouco da verdade que ninguem quer ver.

Ricardo disse...

gostei desta crónica

Anónimo disse...

Caro Carlos

simplesmente brilhante este post!

abraço

António Monteiro

Carlos Aguiar disse...

Dois comentários.
1)
Por viver em Trás-os-Montes, e me sentir transmontano, quero reafirmar a profunda admiração que tenho pela perseverança e sentido de justiça dos transmontanos. J. Teixeira da Silva, não sou de Ermelo. As minhas origens, situam-se um pouco mais acima, nos planaltos do Barroso.
2)
A montanha é um ambiente inóspito, que exige força de carácter. Não se podem cometer erros na gestão e apropriação dos recursos, ou no casamento; os erros pagavam-se com fome, com insucesso reprodutivo. Por isso tradicionalmente se dizia que "enquanto um minhoto parte um prato, um transmontano mata um homem".
As sociedades agro-pastoris criaram soluções engenhosas para resolver os conflitos internos, sempre eminentes. Jorge Dias descreve-os para Rio de Onor. Dar pedras e a tala das transgressões, são apenas dois exemplos. A sociedade agro-pastoril colapsou, e com ela os sistemas tradicionais de regulação social. Porém, o estado não substituiu estes sistemas; pelo contrario, retirou-se ainda mais dos meios rurais. Quantas vezes é uma aldeia visitada pela GNR e pelos técnicos do parque natural? Para quando a clarificação dos direitos de propriedade nos espaços rurais? As pessoas, os velhos sobretudo, têm muitas vezes, têm que suportar caladas todos os "Cunhas do Ermelo" que as oprimem (leiam p.f. uma comentário anónimo a este post). Não se pense que este personagem é caso raro, infelizmente.