terça-feira, outubro 13, 2009

quanto basta? (parte 1)



Praia de Palmo e Tostão, Santa Luzia, Cabo Verde

Todas as madrugadas, naquele lapso de tempo que o sol não reclama o que a noite renega, Nhô Cruz descia a velha montanha, pedregosa, cujas arestas mais não eram que velhas rugas e a aridez das encostas sua pele seca desejosa por um dilúvio, por pequeno que fosse.

Chegado à grande praia, percorria o extenso areal procurando as velhas e grandes tartarugas que, ano após ano, procuravam o sítio onde viram pela primeira vez a luz do dia, bem antes de, ainda menino, correr pelas ruelas da Povoação Velha, na ilha da Boavista. Desde que, ainda jovem, vira uma grande tartaruga chorar a sua morte, às mãos e facas de uns pescadores do Sal Rei, que se convencera irremediavelmente que estas mais não eram que reencarnações de pessoas. Antes preferia tentar meter conversa com alguma que, já tarde na madrugada, se atrevera a galgar as areias daquela praia deserta, arriscando um sol abrasador que desde as primeiras horas do dia se fazia sentir naquela época do ano. Não raras vezes, ajudava uma tartaruga que se perdia no caminho de regresso à água. O pobre animal acelerava o passo ofegantemente, certamente sem perceber que o maior susto da sua vida coincida provavelmente com o maior rasgo de sorte. Nhô Cruz ganhava o dia.

Já pela manhã, entretinha-se a pescar nas rochas que ditavam o fim da Praia de Palmo a Tostão. Três ou quatro peixes de quilo depois, voltava à pequena casa que ele mesmo construíra com pedras e placas de madeira que apanhava no norte da ilha. A água doce retirada do seu pequeno poço que, naqueles anos, nunca secara, dava para beber, cozinhar, lavar-se, tirar a sede às suas cabras e galinhas e regar a sua pequena horta que milagrosamente crescia naquela terra tão pobre. Evidentemente, não tinha luz eléctrica e as noites eram sorrateiramente iluminadas por uma pequena vela ou pelo velho candeeiro, quando conseguia um pouco de petróleo trazido por algum pescador de Santo Antão. Salgava o peixe para precaver dias de mar menos generoso e produzia tanto queijo das suas cabras que boa parte acabava por se estragar. Uma ou duas vezes por mês, de preferência após mar revolto lançar à praia tudo o que não lhe pertencia, visitava a Praia dos Achados, onde conseguia enormes bocados de madeira. Uma parte, ele mesmo utilizava para fazer lume, a outra acabava por, conjuntamente com os queijos, servir de moeda de troca. Era assim que, quando a ilha era visitada por um bote de pescadores, conseguia arroz, alguma fruta, grogue, petróleo ou fósforos que tanta falta lhe faziam.

Era afável e naturalmente conversador com quem, de tempos em tempos, visitava a ilha. Dispensara as notícias e os relatos de futebol dos opulentos rádios que faziam as delícias dos habitantes da Boavista no fim da segunda metade do século passado, o grogue ao fim da tarde com amigos e vizinhos, enfim, muitas das comodidades e mordomias que a vida na vila proporcionava. E, lá para meados dos anos 70, estranhava muito a enorme confusão da independência e ainda mais a razão de ser de tantos trabalhos. Consta que durante mais de uma década, Nhô Cruz, homem muito simples e de vida simples, foi um homem feliz.

Um dia, ao regressar da pesca, a mulher e os seus dois filhos haviam partido com um pescador de São Vicente que visitara a ilha. Nunca mais regressaram. Nhô Cruz, tornou-se o único habitante da ilha. Ele e as suas tartarugas.

Gonçalo Rosa

2 comentários:

aeloy disse...

Quem conhece bem Cabo Verde, leu o Chiquinho e outros épicos das ilhas da morabeza, só se pode emocionar com este texto lindo.
A solidão é um estado de espírito não uma situação.
Saudações
António Eloy

sofia disse...

já agora de fernando pessoa:
A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo