quarta-feira, outubro 14, 2009

quanto basta? (parte 2)



Mulher de meia-idade, trabalhava, desde muito nova, numa pequena fábrica de materiais plásticos na margem sul. Ali conhecera aquele que mais tarde viria a ser o seu marido e que ainda hoje era seu colega de trabalho. Ganhavam pouco mais que o ordenado mínimo, que lhes dava para pagar o aluguer do pequeno T1 onde viviam e para manter o velho Citroen Visa onde também viviam duas horas por dia, durante a mísera dúzia de quilómetros que percorriam da casa para o trabalho e do trabalho para casa. O que sobrava dava à justa para as restantes despesas mensais. Comida, água, luz, gás e telefone e pouco mais. Os dias eram passados entre o trabalho, o caminho de e para casa e a lide doméstica. À noite, estoirada, adormecia poucos minutos após se prostrar em frente do televisor. Os passeios de fim-de-semana pelo grande centro comercial a dois passos de sua casa, compunham a rotina semanal de Maria, apenas quebrada por uma ida à praia nos dias mais quentes do Verão. Do outro lado das montras, sonhava com roupas e sapatos que não podia ter, com móveis e electrodomésticos de casa de ricos que via na telenovela da noite, enfim, com um sem número de bens, que entendia como essenciais e cuja compra, talvez mais do que a posse, parecia ingrediente essencial rumo à felicidade.

Sem fazer nada por isso, a sorte caíra-lhe do céu, aos trambolhões, por altura da morte do seu pai, há pouco mais que um par de anos atrás, viúvo havia muitos anos, com quem não falava depois de enormes discussões aquando as partilhas de bens da sua mãe. Para Maria, o seu pai vivera os seus quase 90 anos miseravelmente quando, pelo menos nas últimas duas ou três décadas, poderia ter uma vida bem mais folgada. Certo era que o Sr. Prudêncio deixara um par de casas, uma na vila e outra na aldeia, bem próximo de um belo terreno com sobreiros e pastagens, cuja renda e venda da cortiça davam para ir levando a vida e até amealhar algum dinheiro. E Maria, filha única, preocupou-se em vender tudo o melhor possível, sem que isso pusesse em causa a rapidez com que o pretendia fazer.

Achou-se merecedora de uma bela casa e comprou um T4, novinho em folha, que fazia a inveja das suas amigas. Porque todos os electrodomésticos e velhos móveis – uns oferecidos por algum familiar, outros, de aparite e contraplacado, daqueles de montar – pareciam não condizer com a frescura do novo apartamento, decidiu comprar tudo de novo, tudo do bom. Afinal, a sua nova condição de dona de casa por opção dava-lhe tempo para tudo isso. Decidiram ainda desfazer-se do velho Visa e comprar um jipe, que rapidamente adquiriu o estatuto de bem essencial, embora bebesse como uma esponja e as revisões na oficina da marca custassem uma pequena fortuna. As idas ao restaurante que ainda há pouco apenas aconteciam somente em dia de aniversário, vulgarizaram-se, a ponto de perderem até um certo encanto que pareciam ter e o sonho de poder comprar aquele vestido ou par de sapatos, converteu-se inicialmente numa doce realidade, agora num acto quase mecânico.

Acontece que o dinheiro não é fêmea e, nos últimos tempos, Maria e o seu marido, deixaram de ter liquidez para manter este estilo de vida e deprimem com o cenário presente e com o que virá. Venderam o jipe que, apenas com um par de anos permitiu encaixar algum dinheiro e aliviar as despesas adiando o futuro. Maria, voltou a trabalhar, agora num pequeno café, ganha sensivelmente o mesmo que na pequena fábrica e continua basicamente a fazer o mesmo. Coisas que não gosta.

É fácil imaginar que, brevemente, cortarão a televisão por cabo, controlarão muito mais o crédito nos telemóveis, escolherão alimentos e outros produtos de uso doméstico quase exclusivamente pelo preço e, finalmente, acabarão por vender a casa para comprar ou alugar outra muito mais modesta. E aos fins-de-semana, voltarão a percorrer os corredores do centro comercial por entre a multidão, olhando para as montras como toda aquela massa de gente que sonha com o que não pode ter, achando que a sua felicidade passaria exclusivamente pela vivência daqueles sonhos. 

Gonçalo Rosa

3 comentários:

Anónimo disse...

Gonçalo, excelente texto sobre o empobrecimento da classe média. Quanto ao conteúdo desta questão resta saber se ele é representativo do que Marx e Engels referem no Manifesto do Partido Comunista como "proletarização da classe média" ou se é apenas reflexo da nossa incapacidade colectiva de gerar riqueza nos últimos 15 anos. Revejo-me na segunda hipótese.
Abr., João Menezes

Gonçalo Rosa disse...

João,
Obrigado. Creio que podemos abordá-lo de diversas perspectivas (deixo isso para o terceiro e último texto, desta leva)... mas na perspectiva que aborda, diria que é reflexo da nossa incapacidade pessoal generalizada de gerar riqueza, desperdiçando oportunidades para inverter ciclos.
1 abraço,
Gonçalo Rosa

Maquiavel disse...

A "proletarização da classe média" é o sentido contrário ao deste caso, o de alguém que tinha uma vida folgada e que a vai perdendo porque o trabalho vai-se flexibilizando e o salário baixando, mesmo mantendo o posto de trabalho. Basicamente o neoliberalismo que se está a viver: os proletários de há 100 anos eram os trabalhadores agrícolas, há 50 os industriais, e agora os de serviços. Estes é que ainda näo achindraram, porque estäo distraídos a contar os tostöes para pagar os créditos que adquiriram ao querer manter o nível de vida a que estavam habituados.

Esta família nunca foi da classe média, apenas foram durante pouco tempo, quanto muito, "novos-ricos".