Acaba por estes dias a segunda discussão pública da proposta de Plano de Ordenamento do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros.
Foi um processo de que me desligaram há tempos e neste caso confio que não tenha o mesmo destino de um dos outros processos de que me desligaram há tempos, o chamado Freeport.
E eu, por uma questão de equilíbrio mental, desliguei-me intelectualmente da discussão do que se estava a passar, já que o cenário era o que descrevi resumidamente neste post quando começou esta segunda discussão pública.
Mas hoje dei de caras com uma notícia sobre o parecer da QUERCUS que parece que não quer mais parques eólicos no PNSAC.
Não vou, neste momento, gastar o meu latim a tentar perceber o que faz a QUERCUS ser favorável aos parques eólicos em Montezinho e desfavorável no PNSAC, até porque também eu tenho posições diferentes nos dois parques: exactamente as inversas da QUERCUS. Se tiver tempo e disposição ainda poderei retomar o assunto mais tarde.
Hoje quero ser só assinalar a minha derrota total no processo de ordenamento do PNSAC, em que me empenhei profissionalmente gastando muito tempo e muito esforço.
Não por ter sido afastado do processo, não por não serem as minhas ideias a terem vencimento no processo: isso aconteceu-me e acontece-me dezenas de vezes e é natural que assim seja a quem trabalha em matérias deste tipo.
É pelo que posso ver do resultado final, que não me apetece estudar mais profundamente que o que já vi.
Dois exemplos penso que chegam para explicar.
Versão inicial:
Era condicionada (não interdita) "A colheita, corte, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas a medidas de protecção, em qualquer fase do seu ciclo biológico, bem como a perturbação ou a destruição dos seus habitats, desde que não seja prejudicada a manutenção das populações da espécie em causa, e quando tal actividade vise proteger a flora e a fauna selvagens ou conservar os habitats naturais, permitir a investigação científica nos termos do artigo 31º deste Regulamento e permitir a reprodução artificial e o repovoamento das espécies em causa;"
Versão actual:
É interdita (não condicionada) "A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies da flora e da fauna sujeita a medidas de protecção legal, designadamente nos termos do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro, incluindo a destruição de ninhos e a apanha de ovos, bem como a perturbação ou a destruição dos seus habitats, com excepção das acções de âmbito científico e de gestão levadas a efeito ou devidamente autorizadas pelo Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), I.P.;"
O que é verdadeiramente alterado de uma norma para a outra?
No primeiro caso o plano limitava-se a ser um complemento da legislação de protecção existente (por exemplo, se o corte deuma espécie era interdito pela legislação de protecção a que se fazia referência, continuaria a ser interdito) e excepcionava da necessidade de autorização as acções que não prejudicassem as populações das espécies em causa, limitando assim as autorizações necessárias, mas criando um enquadramento que permitia de facto fiscalizar e sancionar o prejuízo eventual para os valores a conservar.
No segundo caso, a excepção de bom senso desaparece, tudo é interdito, mesmo quando não prejudica as populações em causa e, mais grave, proibe o que a legislação específica de protecção não proíbe (existem espécies que têm outras medidas de protecção que não implicam a proibição do seu corte, colheita ou abate, dependendo do anexo da directiva habitats em que estão listadas), criando-se uma norma excessiva, inaplicável e, nalguns casos, ridícula, como resulta do facto de passar a ser interdito o corte de gilbardeiras, planta mais que comum em Portugal.
O segundo exemplo é mais simples.
Passa a ser condicionado "A visitação e a entrada nas cavidades cársicas susceptíveis de albergar comunidades de morcegos;". É uma norma tipicamente ideológica criada por alguém tão preocupado com a conservação dos morcegos que não lhe sobra tempo para pensar nos outros aspectos que todas estas normas têm. Na realidade quase todas as cavidades são susceptíveis de albergar morcegos pelo que o que esta norma quer dizer é que a visitação e entrada em praticamente todas as cavidades do PNSAC passam a precisar de uma autorização do ICNB. Claro que ninguém vai ligar nenhuma à norma, com excepção de meia dúzia de pessoas escrupulosas que desesperarão pela emissão destas autorizações (cuja emissão leva aliás ao pagamento de taxas razoáveis), ao mesmo tempo que vêem toda a gente entrar calmamente em todo o lado.
O que mais me incomoda não é o facto de se terem feito opções diferentes das que eu faria. O que me incomoda é a nítida sensação de que não se avaliou verdadeiramente o que agora consta da proposta de plano simplesmente por incompetância técnica: as pessoas verdadeiramente não sabiam o que estavam a fazer.E é aqui que esta derrota profissional é mais amarga para mim, é nesta verificação da falta de qualidade e bom senso destas aberrações (volto a dizer, só dei dois exemplos, não quero perder mais tempo com isto).
E o absurdo processo de elaboração desta segunda versão permite aos responsáveis por isto não serem responsabilizados pelo que fizeram e não precisaram de fundamentar as suas opções.
Que me desculpem a irritação e a eventual injustiça que resulta de me faltar a disposição para avaliar o plano em toda a sua extensão, mas a sensação com que fico é a de que este plano foi um bocado assucatado.
henrique pereira dos santos
4 comentários:
Henrique
Pelo que concluo a parte mais amarga da sua derrota deve-se aos aspectos éticos e processuais; à forma com que é utilizada e desvirtuada a informação da 1ª discussão pública, sem responsáveis pelas opções tomadas e cujo processo é atípico. Sinceramente, comungo da sua "dor" mas, daquilo que analisou, em termos gerais, qual o balanço das vantagens e desvantagens entre esta versão e a anterior?
É que entre mortos e feridos aprendi com uma professora que, em termos de ordenamento do território, mais vale termos um mau plano do que nenhum!
Caro Anónimo,
Claro que mais vale um mau plano que plano nenhum, e o que espero agora é que aprovem este rapidamente.
Nem sequer me vou dar ao trabalho de participar na discussão pública porque o que está em causa não são coisas que se melhorem com contributos de uma discussão pública.
Neste caso há um plano em vigor (tem coisas boas e más, está muito desactualizado e precisa de revisão, de facto) e havia uma proposta de revisão (com certeza com defeitos e qualidades) e portanto a opção não é entre este plano ou nenhum, mas entre o plano existente, a proposta inicial e esta.
O Governo optou por esta que consiste numa revisão técnica feita não se sabe por quem, com que fundamentos técnicos e sem discussão alargada (é aliás muito curioso porque os elementos em discussão pública não têm qualquer base técnica de suporte, já que não se mexeu nos estudos base do plano e o parecer da comissão de acompanhamento do plano é o que foi feito no quadro do processo anterior).
Por sobre um processo completamente estúpido de elaboração do plano, ainda devem ter escolhido para refazer tecnicamente o plano quem não fazia muita ideia do que estava a fazer, por isso a solução é a que se vê nesses exemplos onde o preconceito ideológico sobre conservação aliado à ignorância predomina sobre a sensatez e, sobretudo, a experiência de ordenamento e de aplicação de planos.
Em qualquer caso isto tem uma importância limitada: ninguém liga grande coisa aos planos, pouca gente os cumpre e as normas pouco sensatas serão apenas usadas para fundamentar esta atitude generalizada, com que a maioria das pessoas se satisfaz.
Que isso tenha como efeito uma menor protecção dos valores que se pretendem salvaguardar é evidentemente um detalhe sem qualquer relevância.
henrique pereira dos santos
Partilho este estado de espirito como membro da equipa inicial. Tantos anos de esforço na obtenção de uma proposta (com qualidades e com defeitos sem dúvida) possa ser alterada adoc sem fundamentação metodológica e técnica de suporte.
Rita Ferreira Anastácio
Depois de ler, mais uma vez tenho que concluir que é Portugal no seu melhor.
No entanto como diz o caro amigo Henrique, antes este plano do que nenhum.
Cumprimentos
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