quinta-feira, dezembro 31, 2009

É bom saber bem o preço do almoço


Estive a ler dois estudos da APREN: um sobre os benefícios das energias renováveis (impacto económico, impacto no emprego e impacto ambiental) e outro sobre a tarifa aplicada a estas energias.
Não sou especialista e confesso que fiquei com algumas dúvidas sobre a forma como o assunto é tratado, dúvidas essas que gostaria de partilhar.
A primeira opção que me faz confusão é a do estudo sobre os benefícios das energias renováveis incluir toda a grande hídrica, o que complica toda a análise, sem que se percebam as vantagens de discutir a grande hídrica neste contexto.
Só para dar um exemplo de como a análise se complica com esta opção, basta pensar nos impactos ambientais. No estudo apenas se discutem emissões, o que pode ser uma opção aproximada da realidade para a eólica, ou a fotovoltaica, cujos impactos ambientais directos são razoavelmente escassos. Mas para o fazer para a grande hídrica seria necessário entrar em linha de conta, por exemplo, com os impactos das barragens na linha de costa e no déficit de sedimentos, ou com os seus pesados impactos na biodiversidade, matérias em que o estudo nem sequer toca.
Da mesma forma, toda a discussão económica se complica porque a grande hídrica não tem tarifas especiais e existe desde meados do século XX, o que significa que muito do que se diga sobre o seu impacto económico é quase história.
Mas adiante, tentando fugir dos problemas que esta opção introduz.
No estudo é feito um cálculo da redução das importações que é bastante estranho. Em primeiro lugar apenas contabiliza as importações evitadas mas não as induzidas pelo investimento em renováveis (que as há, evidentemente, em tecnologias, equipamentos, energia, etc.). E depois contabiliza o valor das importações evitadas mas não explica a que preço. Por exemplo, com o estudo sobre a tarifa, em que não entra a grande hídrica, ficamos a saber que para poupar 290 milhões de euros em importações gastamos 662 milhões. É um conceito de poupança um pouco estranho, mesmo tendo em atenção que se está a substituir uma importação por uma produção interna.
Outra das coisas interessantes é que apesar da produção ter aumentado substancialmente, o peso das renováveis no consumo mantém-se estável, ou seja, o crescimento da produção de renováveis não tem servido para substituir consumos de combustiveis fósseis (e em todos os estudos se fala sempre apenas da electricidade quando no consumo energético a electricidade é apenas uma parte e nem sequer a maior) mas simplesmente para manter o mesmo grau de cobertura dos consumos, o que quer dizer que o crescimento do consumo (de electricidade, a situação é bem pior se incluirmos os outros consumos energéticos) anula grande parte da vantagem ambiental do crescimento da produção de renováveis.
O mais difícil de aceitar para mim é a análise do impacto macro-económico. A verdade é que o estudo não entra em linha de conta com o aumento do custo da energia na competitividade dos nossos produtos transacionáveis (quer na exportação, quer no confronto com produtos importados), o que não seria grave porque a maior parte do sobrecusto da produção de renováveis assenta nos consumidores não industriais, contra toda a lógica de uma política de eficiência energética. Mas, o que já me parece pouco compreensível, não entra também em linha de conta com o efeito da perda de rendimento nas classes médias induzido pelo sobrecusto do preço de electricidade induzido pelas renováveis (0,008 por Kwh em 2008, um pouco mais de 5% da factura eléctrica de cada consumidor, mas este foi um ano especialmente favorável, com o petróleo a preços muito altos. Em anos normais esse sobrecusto aumenta, provavelmente até aos 15%).
O cálculo da redução da dependência energética não é feito com base nos saldos de importação e exportação, mas apenas com base nos valores de energia produzida que é considerada integralmente como produção de substituição de importações, o que pode nem sempre ser verdade. Visto as centrais termo-eléctricas terem de manter uma produção mínima (que é relevante) muita da energia eólica produzida irá substituir a produção hidro-eléctrica. Dir-se-á que em qualquer caso isso se traduz num maior armazenamento a usar noutras alturas. Sim, poderá acontecer, mas na cascata do Douro, em que não há capacidade de armazenamento, não é bem assim. Ou seja, o estudo parece demasiado simplista nalguns aspectos relacionados com a redução da dependência energética (não discutindo sequer se vale a pena assumir como intrinsecamente boa essa redução, matéria em que os economistas não estão todos de acordo).
Note-se, em qualquer caso, que como nas renováveis se incluíram todas as hídricas, alguns destes factores actuam há cinquenta anos, se que se vislumbre bem de que forma reduziram a dependência energética de Portugal e o seu crónico endividamento.
Com tudo isto não quero dizer que não há razões para investir em renováveis, que as há, dentro de limites razoáveis.
O quero realçar é que não é escondendo o preço do almoço que se consegue almoçar com a melhor relação qualidade preço.
O preço de ter renováveis deveria, pelo contrário, ser bem explícito e evidente. Ao fazê-lo talvez começasse a poder comparar-se com os custos das várias alternativas, incluindo os custos de redução de consumos e de investimento em eficiência energética.
Pode ser que assim surgissem nestes estudos indicações sobre o custo e benefício da água quente solar. É escandaloso o uso de tarifas astronómicas para pagar electricidade em centrais fotovoltaicas ao mesmo tempo que a água quente solar continua a ter o apoio que lhe foi dado no programa absurdo que foi montado este ano.
Não resisto a referir que se a poupança de energia com a água quente solar fosse paga ao preço do Kwh fotovoltaico, o país rapidamente estaria a instalar paineis solares térmicos em todos os cantos e esquinas, com benefícios económicos e ambientais muito mais relevantes. É que nas contas da água quente solar as análises de custo/ benefício as poupanças são valorizadas pela tarifa final ao consumidor (consideremos por exemplo a tarifa de 0,13 euros por Kwh), o que implica o retorno do investimento na casa dos sete/ oito anos. Acontece que a tarifa de compra da electricidade solar fotovoltaica anda acima dos 0,30 euros pro Kwh (corrijam-me os dados por favor). Ou seja, calculando a energia poupada por painel de solar térmico, uniformizando-a em Kwh, e aplicando a valorização assim obtida aos estudos de custo/ benefício da instalação de paineis solares térmicos, o tempo de retorno do investimento seria pelo menos duas vezes menor. Se esse benefício que hoje existe ao tarifário fotovoltaico fosse transformado num subsídio à compra de painéis solares térmicos (digamos, a energia poupada em cinco anos, por exemplo), mesmo que se lhe juntasse o custo financeiro associado a antecipar todo o benefício de cinco anos para o momento da compra (por forma a evitar a ilusão financeira que leva as pessoas a optar por comprar mais barato agora, gastando mais a vida toda), era bem provável que o investimento em paineis solares térmicos explodisse e a poupança assim conseguida continuasse a ter efeitos económicos positivos no resto da vida útil dos painéis, em vez de pesar na conta da electricidade de todos durante pelo menos quinze anos, como acontece com a actual tarifa do fotovoltaico.
O mesmo se poderia dizer da poupança induzida por soluções mais eficientes energeticamente, quer nos edifícios, quer na produção.
Repito, para que não existam dúvidas, que sou fortemente favorável à produção de electricidade a partir de fontes renováveis. Mas não embarco em cenários cor de rosa em que os benefícios são empolados e os custos varridos para debaixo do tapete.
Com tudo o que tem sido feito para produzir a partir de fontes renováveis a importação de produtos petrolíferos continua a aumentar porque a política energética portuguesa é desastrosa, ambiental e economicamente.
Entre outras razões porque se foge da discussão económica do assunto, substituindo-a por uma propaganda agressiva sobre a produção de electricidade a partir de fontes de energia renováveis. Um exemplo típico de como boas intenções ambientais podem ser manipuladas para justificar opções económicas provavelmente erradas.
Os estudos da APREN, que tanto quanto sei irão ser disponibilizados no seu site, são instrumentos importantes para esta discussão, em especial o estudo sobre a tarifa e as razões que justificam a tarifa especial da eólica (em rigor, eu ainda não percebi o que justifica a tarifa especial da fotovoltaica tão elevada) que me parece bem mais sólido que o estudo da Deloitte sobre os benefícios da produção de energia a partir de fontes renováveis, quanto a mim excessivamente cor de rosa e omitindo questões demasiado relevantes.
henrique pereira dos santos

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Henrique:
Para quem não é especialista em FER está uma excelente análise. Alguns detalhes a corrigir:
1ª kWh e nunca, JAMAIS Kwh...;
2ª Fotovoltaico (PV em calão técnico) é de 0,650 eur/kWh podendo baixar até 0,4 eur/kWh), mais um pouco do que 0,3 eur/kWh;
3ª a electricidade custa cerca de 0,15 eur/kWh nas habitações e comércio e serviços de pequena dimensão;
4ª A eficiência energética é um mundo que os efertadores de energia fogem como o diabo da cruz. Só mesmo de obrigados a enfrentam, tentando contorná-la. repare-se no excelente programa de trocas de lâmpadas entre alunos nas escolas do 3º ciclo, ser financiado pelo programa de energias renováveis....
Pode-se continuar, no próximo ano e que seja bom para todos.
mfs

José Matias disse...

Caro HPS

Bom material de reflexão e discussão.

Poderá achar interessante esta "ligação" onde se compara a eficiência das alternativas renováveis, no caso da Alemanha:

http://www.climateark.org/shared/reader/welcome.aspx?linkid=146549

The last 10 years have seen massive amounts of taxpayer money invested in renewable energies in Germany. Growth in the industry has been rapid. But has the development been universally good? SPIEGEL ONLINE takes a look at those renewables with promise -- and those which might flop.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Obrigado pelas correcções, em especial nos erros de palmatória das unidades.
Os preços retirei-os do estudo da E-Value para a APREN (que me parece um estudo bom e sólido) e o valor do fotovoltaico é o preço médio real que foi pago em 2008.
O do preço final ao consumidor foi retirado do preçário da ERSE para 2010, se não me engano, mas em qualquer caso o que me pareceu mais importante foi a ordem de grandeza.
Não me parece inteiramente justa a crítica aos produtores de electricidade sobre a eficiência energética, pelo menos actualmente (nem sempre foi assim). Hoje, quer a EDP quer outros produtores têm programas importantes legados à eficiência energética.
henrique pereira dos santos