quinta-feira, março 04, 2010

Cheias e barragens

Estas são as previsões para os próximos sete dias.
Este tipo de situações, de precipitação abundante e prolongada não provocam cheias, pelo menos as cheias mais perigosas, as que se desencandeiam rapidamente. Mas este tempo cria condições para que possam existir, se em qualquer momento houver um precipitação mais intensa condensada num curto espaço de tempo.
O que temos são solos saturados e albufeiras muito próximo do seu máximo de segurança, as condições que impedem o encaixe de uma precipitação anormal em qualquer altura.
Mas anormal neste sentido é apenas um desvio da norma, não é uma coisa improvável.
Gostaria de aproveitar este dia de interrupção na chuva (mesmo vivendo no meio de Lisboa, hoje de manhã, por volta da hora a que pela primeira vez saio de casa, era evidente a proximidade da Primavera pela quantidade de pássaros a cantar, de arrulhos e coisas que tal que antecediam o amanhecer finalmente seco) para lembrar que as cheias são um dom, não são uma tragédia.
As cheias fertilizam, as cheias criam riqueza.
O que é uma tragédia é a ocupação dos leitos de cheia, o que é uma tragédia é a sensação de segurança que as barragens dão porque mais de 99% do tempo ajudam a encaixar picos de precipitação, mas nos outros 1% amplificam a cheia quando no meio dos episódios de chuva intensa são obrigadas a descarregar por razões de segurança.
É bom lembrar isto de vez em quando, fora dos dias em que chove, que é quando nos costumam vir dizer que um dos efeitos positivos das barragens é regularizar os caudais e controlar as cheias.
É que controlar as cheias pequenas e médias não traz grande vantagem, sobretudo se evitarmos, como devemos evitar, ocupar os leitos que as encaixam, e nas grandes cheias as barragens podem ter o efeito inverso do que é sempre anunciado quando se decide sobre a sua construção.
henrique pereira dos santos

4 comentários:

Caros Aguiar disse...

As cheias eram um um dom (e poderão voltar a sê-lo, quem sabe?). Na Terra-Fria nordestina as cheias significavam mais pasto nos lameiros, não apenas pela deposição de nutrientes. A anoxia modificava e heterogeneizava a química do solo, e as plantas respondia com melhores crescimentos (um tema não explorado pelos especialistas em solos). Mais pasto significava mais energia para sustentar vacas, que permitia cultivar mais e melhor os cereais e a batata, que alimentavam melhor as gentes. Mais erva significava também um maior sucesso reprodutivo dos gados, e mais rendimento. Por outro lado, se os cereais tivessem sido semeados a tempo e se Primavera não fosse muito seca os cereais ultrapassavam o efeito do encharcamento do solo, e tudo corria de feição.
A flora de leito de cheias, uma das mais valiosas de Portugal continental, era protegida da competição das árvores e arbustos próprias de solos pouco perturbados pelas cheias. Foi à custa deste mecanismo que o buxo, entre outras espécies, sobreviveu até aos nossos dias no vale do Sabor, do Tua e do Tâmega.
Estas e outras dependências funcionais extinguiram-se. Foram-se.
As cheias, nos dias de hoje degradam os investimentos públicos (eg. Madeira, obras Polis e regularizações de leitos urbanos). Por isso ninguém deseja cheias, nenhum político quer ser acusado, justa ou injustamente, de abusar no traço do cimento ... e o argumento da regularização cola.
Mais cheias => mais construção para reparar os abusos na construção. Mais cheias => mais Polis e mais marinas => mais endividamento público e privado => e mais pobreza para as gerações futuras.
Desculpem, enganei-me, talvez as cheias e os desastres climatéricos sejam desejados, mas não são pelas mesmas razões dos meus avós.

Henk Feith disse...

Muito bem observado.

Deixo aqui uma pergunta que me tem perseguido há tempos: será que se pode fazer um paralelo entre as cheias e fenómenos de erosão?

A erosão é uma preocupação que me acompanha no meu trabalho de dia a dia, mas sempre questionei se erosão era por definição "mau", de mesma forma como outros fenómenos são por definição "mau" para o grande público: os fogos florestais, as espécies invasoras, o abandono rural, a caça, por aí fora.

Não será a erosão é um fenómeno normal e em muitos circunstâncias fundamental para certos valores de conservação? Sem erosão, o que seria do estuário do Tejo? o sequer do vale do Tejo com os seus solos sedimentares? Sem erosão, o que sustentaria os solos aluviais?
Não estaremos a estigmatizar um fenómeno que provoca um misto entre efeitos positivos e negativos na maioria dos casos, baseado em manifestações extremas deste mesmo fenómeno?

Não passam de interrogações minhas à procura de uma resposta...

Henk Feith

Henrique Pereira dos Santos disse...

Henk,
Nas discussões sobre o efeito dos fogos vem sempre a erosão como um efeito negativo. Mas eu tenho dito muitas vezes que isso não me parece linear à escala da paisagem, porque há zonas de erosão e há zonas de deposição.
Tenho as mesms dúvidas que tu nessa matéria.
henrique pereira dos santos

Susana Nunes disse...

Muito bem visto.