“Desta vez completou-se o ciclo de reprodução, as crias nasceram e já estão a voar”, disse por telefone ao PÚBLICO Samuel Infante da Quercus. Os abutres fizeram o ninho em azinheiras, colocaram o ovo, as crias nasceram e hoje já batem as asas. Um fenómeno que deixou de acontecer em 1970 devido à morte das aves, à desflorestação, e aos insecticidas usados no campo."
Ele há coisas que me intrigam sempre.
Vem isto a propósito da notícia do abutre negro ter reprodução confirmada em Portugal este ano, como se pode ler nesta notícia (um pouco confusa, aliás).
Retirei este parágrafo extraordinário que o jornalista atribui a Samuel Infante da QUERCUS e que assume como uma verdade revelada que não precisa de confirmação. Poderia ter retirado outras afirmações, como a de que a deposição de carcassas no campo foi proibida por causa da doença das vacas loucas, mas adiante.
Concentremo-nos neste pequeno extracto: "Um fenómeno que deixou de acontecer em 1970 devido à morte das aves, à desflorestação, e aos insecticidas usados no campo".
Ora aqui temos um verdadeiro artista (não sei se o Samuel Infante, se o jornalista). Alguém que não tem dúvidas sobre as razões quer do desaparecimento do Abutre Negro, quer da sua recuperação.
O que aqui é dito pressupõe que houve desflorestação até 1970 e recuperação da florestação entre 1970 e hoje. Dados? Não é preciso, aparentemente. O facto de haver uma recuperação da área florestal do país, contínua e forte, desde os fins do século XIX até aos anos 90 do século XX com alguma estabilização a partir daí é irrelevante para a história contada.
O mesmo se deveria dizer dos insecticidas, deve ter havido um aumento forte no seu uso até 1970, com uma diminuição, também forte, a partir daí. Dados? Não é preciso. Até porque os que existem não confirmam nada disto.
Poder-se-á dizer que as espécies reajem com algum desfasamento à alteração dos factores de ameaça, portanto teríamos de deslocar a linha de alteração dos factores de ameaça mais uns anos para trás, mas nem vou fazer isso porque a fundamentação seria ainda mais frágil.
Já aqui falei de afirmações deste tipo, por exemplo, para o sisão, com efeitos reais na atribuição do estatuto de ameaça das espécies e, consequentemente, nas políticas de conservação (e na afectação dos recursos, parece que a QUERCUS está envolvida num projecto internacional para a conservação do abutre preto que está a recuperar em largas partes do território, como se pode ver aqui).
Os problemas de conservação são bastante mais fluidos que esta procura incessante de razões únicas e, sobretudo, politicamente correctas que sentam no banco dos réus processos que consideramos prejudiciais globalmente.
É sempre bom poder dizer mal de desflorestação (que não existe em Portugal há cinquenta anos, e que nos últimos duzentos é um complexo processo de perdas e ganhos locais), ou dos insecticidas, ou dos caçadores, ou das linhas eléctricas, ou dos olivais intensivos, ou dos rebanhos, ou do regadio, mas a verdade é que tudo isso é muito menos importante, na maior parte dos casos, que as transformações económicas e sociais de "um simples mundo, onde tudo [tem] apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural" e cujos efeitos se manifestam em todo o território "mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus" (Jorge de Sena).
É por isso que ao discutir estes assuntos vou sempre cair no cadastro do valores naturais, de que falei aqui mais longamente.
Ora precisamente amanhã faz dois anos que foi publicado o diploma que contém esta norma:
"Artigo 52.º Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados O primeiro Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados é aprovado no prazo máximo de dois anos a contar da entrada em vigor do presente decreto -lei."
Este post é para dizer que estou feliz porque o Conselho de Ministros da próxima semana vai com certeza aprovar o decreto regulamentar que institui o cadastro nacional dos valores naturais classificados.
Infelizmente distraí-me e não prestei atenção à necessária discussão pública que naturalmente foi feita sobre a proposta que irá ser aprovada, e que reunirá os contributos da sociedade civil, como sejam as ONGAs e as Universidades que tanto criticavam antes as propostas do ICNB (por exemplo, em relação à rede natura), mas que agora, finalmente libertas da dependência das propostas do ICNB, porque a lei permite que qualquer pessoa apresente propostas, terão acorrido em massa ao processo com propostas concretas para a classificação da Maculinea alcon, ou com a delimitação de habitats específicos, ou com a proposta de um novo estatuto de ameaça de alguma espécie esquecida, o que terá tornado a proposta de decreto regulamentar bem mais sólida.
Durante dois anos a estruturas técnicas das maiores ONGAs fizeram propostas fundamentadas, os grupos de investigação fizeram propostas fundamentadas e o ICNB coligiu e fez uma proposta final, naturalmente baseada quer no livro vermelho existente, quer na informação que coligiu para dar cumprimento ao artigo 17º da Directiva Habitats, e colocou as propostas em discussão pública.
Tenho já no frigorífico uma garrafa de champagne para comemorar uma longa luta pela possibilidade de termos clareza no que efectivamente está protegido, fundamentação para o que efectivamente é preciso fazer, racionalidade e consenso nas razões de ameaça e um direito de protecção das espécies que não é apenas subsidiário das prioridades de países terceiros.
Viva o cadastro que será aprovado na próxima semana e viva o Governo que assume seriamente o cumprimento da lei em matéria de conservação.
henrique pereira dos santos
3 comentários:
O Samuel Infante não precisa de quem o defenda, mas parece-me que não lhe pode ser imputada a afirmação que em 1970 tenha havido uma inflexão das causas indicadas (deflorestação, uso de insecticidas), só por ter afirmado que a sua reprodução esteve ausente entre 1970 e 2010.
Parece óbvio que essa inflexão deve ter-se verificado mais próximo da data do seu reaparecimento que do seu desaparecimento...
Também parece óbvio que essa eventual inflexão, para permitir a presença de um escassíssimo número de casais reprodutores, não tem que ser alargada a todo o país, mas apenas à zona fronteiriça onde os casais se instalaram.
Convém também reparar que os ninhos, pesados e de grandes dimensões, precisam de árvores de grande porte e de copa arredondada (azinheiras, sobreiros), pelo que a recente florestação com eucaliptos e pinheiros talvez não tenha favorecido os abutres nesse aspecto (nem em nenhum outro, aliás).
Quanto ao uso de insecticidas, é sabido que os mais nocivos para a reprodução das aves têm vindo a ser substituídos por outros - já cá não temos o DDT com o seu reconhecido efeito na espessura da casca dos ovos.
Mesmo que o uso de insecticidas tenha aumentado globalmente no país, é provável que na zona fronteiriça onde as aves se instalaram ele tenha diminuído acentuadamente pelo abandono da agricultura.
Caro anónimo,
Agradeço-lhe a excelente demonstração do que digo no post: existe um conjunto de preconceitos sobre as dinâmicas de populações, que não precisam de ser verificados para que as pessoas os aceitem, desde que apontem para razões clássicas e politicamente correctas das grandes ~lutas ambientais.
Repare que em nenhum momento demonstra que tenha existido deflorestação nem o inverso durante períodos determinados. Basta-lhe a lógica da coisa. Lógica que provavelmente está errada porque o pico da pressão sobre o território andará nos anos cinquenta do século XX e o pico dos processos de arroteamento nos anos 30 do século XX (já sobre as margens das margens, porque o grosso estará consumado no fim do século XVIII, princípio do século XIX). Acresce que pode estar errada quando parte do princípio de estas aves não usam eucaliptos, o que não me parece demonstrado em lado nenhum (nos grande eucaliptos há uma série de árvores que fazem ninho e que aproveitam as condições de tranquilidade dos eucaliptais para se instalarem). A razão pela qual diz que não usam eucaliptos suspeito que sejam mais ideológicas que empíricas. Acresce ainda que ao dizer que "precisam de árvores de grande porte e de copa arredondada (azinheiras, sobreiros)" está a negar que o desaparecimento da espécie nos anos setenta se deva à ausência dessas árvores, visto que de lá até cá, nas difíceis condições da zona, dificilmente consegue ter azinheiras e sobreiros que reúnam essas condições nos escassos anos passados.
Repare, eu não estou a dizer que eu tenho razão nestes aspectos todos, estou a dizer que não foram validados, são bocas.
O mesmo se diria em relação aos insecticidas, que em lado nenhum se procurou verificar se diminuíram o suficiente dos anos sessenta e setenta para cá para justificar esta dinâmica.
Resumindo, não se trata de defender o Samuel Infante ou não, trata-se de chamar a atenção para o facto da discussão sobre conservação ser muito ideológica sem que as pessoas sequer se dêem ao trabalho de verificar empiricamente as hipóteses porque nem se apercebem da falta de fundamentação do que dizem.
Daí também a pouca atenção que é dada a esta coisa extraordinária de passarem dois anos sobre a publicação do regime jurídico da conservação e ninguém (ONGAs, institutos de investigação, jornais) perder meia dúzia de horas a verificar se o que estava previsto na lei foi ou não levado a sério pela administração. Repare, fazemos duas péginas ou dez de um jornal a discutir os efeitos do derrame da BP (o que aliás acho bem) mas não perdemos duas linhas com as obrigações do Estado em matéria de conservação, assumidas legalmente pelo Estado e para as quais o Estado (e a sociedade) se estão nas tintas.
É isto, entretemo-nos com a espuma mediática dos dias e não ligamos nenhuma à realidade.
henrique pereira dos santos
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