A Lei dos Baldios atribui aos compartes um domínio quase absoluto sobre os seus baldios. De tal modo que nem sequer o vínculo jurídico contratual está previsto na lei (vd. comentários dos produtores de celulose ao PNVTC, aqui). A filosofia jurídica da actual Lei dos Baldios fazia todo o sentido quando: 1) as redes de laços sociais das comunidades de aldeia eram intensas e todos comungavam a sensação de partilha de uma terra e de um destino comum; 2) as fronteiras do baldio e os seus utilizadores (compartes) estavam identificados e existia um conjunto de regras de uso aceite, respeitado e fiscalizado por todos; 3) o baldio gerava sobretudo bens em espécie – e.g. lenhas e pasto – essenciais para o funcionamento dos sistemas de agricultura (o parecer da CCDRN é muito claro a este respeito aqui); 4) serviços ecossistémicos não tangíveis, como sejam a regulação do ciclo da água e o refúgio da biodiversidade, eram socialmente pouco valorizados.
Estas condições – há mais, vd. papers de E. Ostrom, como refere o parecer da Quercus aqui – explicam que muitos baldios tenham escapado à conhecida "tragédia dos comuns" de Garret Hardy (não é seguro que no longo prazo assim fosse, mas para o efeito tanto dá). A tragédia dos comuns é fácil de entender: num ambiente social desregulado as pessoas estão-se nas tintas para a sustentabilidade dos recursos naturais nos espaços de propriedade colectiva. Esta atitude é perfeitamente racional nos dias de hoje: afinal não é na cidade e na construção civil que a maioria ganha ou quer ganhar a vida?
Actualmente, não só as comunidades de aldeia são incapazes de controlar o acesso aos recursos dos baldios, como a identidade dos compartes, a democraticidade das eleições dos conselhos directivos e a distribuição dos seus proveitos são cada vez mais opacas.
Quem são afinal os compartes? Diz-nos o artigo 1 da lei dos baldios que são os moradores. Porém, olhando para os concelhos directivos daqui do norte vemos que são os moradores nas sedes de concelho, na grande capital ou na cidade estrangeira que gerem os baldios. Baldios há que são governados a partir de Paris!!! Depois usam-se todo o tipo de truques – e.g. datas das assembleias de compartes – para controlar as eleições dos conselhos directivos. Como os conselhos directivos não são obrigados a manter uma contabilidade organizada os proveitos monetários esvaem-se sem controlo. Conheço baldios geridos por juntas de freguesia que mal se aventou a hipótese de serem construídas eólicas se formaram conselhos directivos para controlar o acesso aos seus proveitos.
Há que aceitar uma nova realidade no mundo rural. Os decisores políticos na grande cidade têm que perceber que as gentes do campo têm, genericamente, os mesmos anseios, as mesmas práticas sociais e os mesmos gostos das da cidade. O comunalismo acabou; grande parte das decisões tomadas na comunidade aldeia foram tomadas pelo Estado (e.g. justiça e segurança) ou pelas autarquias (e.g. planeamento urbano e recolha de lixos). A regulação social tradicional colapsou e, dado o afastamento dos centros de poder e a pequena dimensão das aldeias, estas estão muitas vezes sujeitas a grupos organizados que não se coíbem de coagir as gentes para capturar, sem mossa, os proveitos pecuniários gerados nos baldios. Finalmente, é fundamental que o Estado assuma que os baldios ocupam quase 5% da superfície de Portugal e produzem bens e serviços, tangíveis ou não, de enorme importância económica e social. Para evitar dissabores os decisores não podem fingir que os baldios não existem ou que são dispensáveis.
No meu entender é consensual que ninguém deseja o desmantelamento da instituição “propriedade comunitária”. O Estado assusta-se com a possibilidade de ter de gerir 450.000 ha; as populações locais têm um direito (consuetudinário) aos seus proveitos; a esquerda agarra-se à ideia; os citadinos não sabem o que é um baldio. Assim se explica que o PCP controle os secretariados de baldios num território tradicionalmente de direita (norte de Portugal), sem que ninguém se incomode.
Uma nova realidade exige novas regras, novo direito, é apenas isso que os interesses dos “povos dos baldios” e do colectivo português exigem. É necessário, por isso, a identificação das fronteiras do espaço baldio (i.e. cadastro), transparência no censo dos compartes e na eleição dos conselhos directivos (legitimidade democrática), controlo das contas, e planos de gestão aprovados por agências estatais competentes (representantes do interesse colectivo do todo português). Simples. Como consegui-lo? O cadastro é uma responsabilidade do IGP. Só devem ser compartes (assim como votantes na eleições para a junta de freguesia) e ter acesso aos proveitos dos baldios habitantes da aldeia; aliás, esta é uma forma objectiva de promover a retenção de população no espaço rural. A gestão dos baldios deve ser incorporada nas juntas de freguesia (com a definição de cargos para o efeito à escala da comunidade de aldeia), porque a sua eleição é fiscalizada pela CNE e as suas contas são controladas pela IGAI. A Autoridade Florestal Nacional aprova os planos de gestão, conforme já o faz a pedido dos conselhos directivos. Quando uma comunidade aldeia é incapaz de gerir um baldio, esse papel deve reverter para as autarquias.
Os baldios são inalienáveis, mas por que não poderão ser total ou parcialmente ser arrendados ou construções previamente existentes ser recuperadas por privados sem uma apropriação privada do solo como, aliás, acontece em Espanha?
[transcrição de um post colocado na lista AMBIO]
Carlos Aguiar
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