Reproduzo a crónica que Ricardo Garcia publicou ontem no Público.
"Graças ao Orçamento do Estado, dei por mim no outro dia a vasculhar as contas do supermercado. Não é o meu género. Por mera impaciência, sou essencialmente desatento à relatividade dos preços, razão pela qual raramente sou convocado para ir às compras, a bem da economia doméstica. Mas a prevista subida do IVA, com a qual o Governo pretende enriquecer o banquete fiscal, levantou uma legítima curiosidade.
"Vamos ver o que muda", disse a minha mulher, no outro dia, com a última factura das compras na mão. E eis que um mundo antes desconhecido, nebuloso e aparentemente ilógico - ou seja, normal -, se abriu à minha frente. Não fazia a menor ideia da diversidade de taxas de IVA que se aplicam aos alimentos, e confesso que, após laboriosa sistematização dos dados em folha Excel e respectiva análise formal e numérica, permaneço no vazio quanto aos critérios envolvidos na sua distribuição.
Os beneficiários da taxa mais baixa, seis por cento, parecem merecedores do privilégio: arroz, feijão, frutas, legumes, leite, ovos, manteiga, carne, peixe. Convenhamos, ninguém vive sem isso. São a base da subsistência digestiva do ser humano, nem deviam ter IVA.
Mas logo aí começam a surgir enigmáticos exemplos de insondável ilogismo. Tomemos o sector da panificação. Um pão inteiro paga 6 por cento de IVA. Se vier torrado, idem. Mas, se for ralado, apanha com 21 por cento. Em termos ambientais, é um contra-senso. O pão ralado é sinónimo de reciclagem. O seu consumo reduz a parcela de carcaças velhas e enrijecidas nos aterros sanitários. Ah, é bom para o ambiente? Então, toma lá 21 por cento.
Bem sei que já passou o tempo do proteccionismo, mas não deixa de chamar a atenção a falta de brio nacional na atribuição das taxas. Só isto explica como é que um queijo camembert, que é um símbolo pátrio, mas de outro país, faça companhia ao pão, às frutas e ao peixe no grupo dos bens alimentares imprescindíveis, enquanto uma alheira artesanal transmontana tenha 13 por cento de imposto em cima.
Justiça seja feita, há situações inversas. Basta observar que o vinho é taxado a 13 por cento, enquanto a brasileiríssima cachaça leva com 21 por cento. Na prática, uma caipirinha contribui mais para combater o défice do que uma taça de tinto - distinção que, em tempos de crise, atribui à bebedeira uma função económica inaudita.
Em certos casos, custa a crer na pertinência da aplicação dos 21 por cento. Bens de higiene pessoal, por exemplo, enquadram-se nessa categoria, o que significa que o agravamento do IVA aumenta o risco de efeitos colaterais sanitários claramente indesejáveis para a vida em sociedade.
A taxa mais elevada parece penalizar os produtos industrializados, algo que poderia traduzir um foco ambiental - possivelmente injusto - no exercício da fiscalidade. Mas, como vimos, o ambiente aqui não parece contar para nada. Se assim fosse, o veneno químico antitraça que estava na última factura de compras lá de casa deveria pagar muito mais IVA do que os 21 por cento que lhe foram atribuídos.
Eu, se fosse ministro das Finanças, ia por aí: declarava a insustentabilidade no consumo como inimigo público número um e calcava no IVA, de 30 por cento para cima, sobre os piores exemplos. Se o Governo ou a oposição quiserem discutir a ideia, estou, como o Teixeira dos Santos, disponível 24 horas por dia."
"Vamos ver o que muda", disse a minha mulher, no outro dia, com a última factura das compras na mão. E eis que um mundo antes desconhecido, nebuloso e aparentemente ilógico - ou seja, normal -, se abriu à minha frente. Não fazia a menor ideia da diversidade de taxas de IVA que se aplicam aos alimentos, e confesso que, após laboriosa sistematização dos dados em folha Excel e respectiva análise formal e numérica, permaneço no vazio quanto aos critérios envolvidos na sua distribuição.
Os beneficiários da taxa mais baixa, seis por cento, parecem merecedores do privilégio: arroz, feijão, frutas, legumes, leite, ovos, manteiga, carne, peixe. Convenhamos, ninguém vive sem isso. São a base da subsistência digestiva do ser humano, nem deviam ter IVA.
Mas logo aí começam a surgir enigmáticos exemplos de insondável ilogismo. Tomemos o sector da panificação. Um pão inteiro paga 6 por cento de IVA. Se vier torrado, idem. Mas, se for ralado, apanha com 21 por cento. Em termos ambientais, é um contra-senso. O pão ralado é sinónimo de reciclagem. O seu consumo reduz a parcela de carcaças velhas e enrijecidas nos aterros sanitários. Ah, é bom para o ambiente? Então, toma lá 21 por cento.
Bem sei que já passou o tempo do proteccionismo, mas não deixa de chamar a atenção a falta de brio nacional na atribuição das taxas. Só isto explica como é que um queijo camembert, que é um símbolo pátrio, mas de outro país, faça companhia ao pão, às frutas e ao peixe no grupo dos bens alimentares imprescindíveis, enquanto uma alheira artesanal transmontana tenha 13 por cento de imposto em cima.
Justiça seja feita, há situações inversas. Basta observar que o vinho é taxado a 13 por cento, enquanto a brasileiríssima cachaça leva com 21 por cento. Na prática, uma caipirinha contribui mais para combater o défice do que uma taça de tinto - distinção que, em tempos de crise, atribui à bebedeira uma função económica inaudita.
Em certos casos, custa a crer na pertinência da aplicação dos 21 por cento. Bens de higiene pessoal, por exemplo, enquadram-se nessa categoria, o que significa que o agravamento do IVA aumenta o risco de efeitos colaterais sanitários claramente indesejáveis para a vida em sociedade.
A taxa mais elevada parece penalizar os produtos industrializados, algo que poderia traduzir um foco ambiental - possivelmente injusto - no exercício da fiscalidade. Mas, como vimos, o ambiente aqui não parece contar para nada. Se assim fosse, o veneno químico antitraça que estava na última factura de compras lá de casa deveria pagar muito mais IVA do que os 21 por cento que lhe foram atribuídos.
Eu, se fosse ministro das Finanças, ia por aí: declarava a insustentabilidade no consumo como inimigo público número um e calcava no IVA, de 30 por cento para cima, sobre os piores exemplos. Se o Governo ou a oposição quiserem discutir a ideia, estou, como o Teixeira dos Santos, disponível 24 horas por dia."
Pois estou com o Ricardo Garcia: não sei se o Governo ou a oposição querem discutir a ideia, mas parece-me muito razoável que o movimento ambientalista queira integrar a discussão para sustentar as suas propostas de reforma fiscal ambiental, que se têm centrado em questões de energia, deixando a alimentação e outros consumos de fora.
henrique pereira dos santos
8 comentários:
Tem pouco a ver com ambiente, mas é um facto que as tabelas de IVA reduzido são um absurdo total.
Não se percebe por que motivo os queijos em geral ou os iogurtes têm IVA reduzido. Ou por que é que o esparguete tem IVA reduzido enquanto que o seitan (que também é um processado de trigo duro) tem IVA máximo.
Depois uma compota de fruta tem IVA médio, mas uma salsicha (que também é um produto processado) já tem IVA mínimo.
Já sem falar no leite achocolatado, que tem IVA mínimo tal como o leite não-achocolatado, enquanto que o chocolate (com ou sem leite...) tem IVA máximo.
É um apelo fundamental, então como se poderia organizar uma recomendação de actualização coerente para o IVA dos alimentos?
Taxa Reduzida- Frescos nacionais e Processados de 1º necessidade (cereais, pão, leguminosas, azeite)
Taxa Intermédia- Produtos Processados Nacionais, Frescos Importados
Taxa Normal- Produtos Processados Importados, Frescos com alto impacto ambiental (como alguns produtos de pesca e pecuária intensiva)
Não sei se é pacífica a definição do que é importado, talvez se poderia fazer uma distinção entre frescos intra e extra UE, com Taxa Normal para os últimos, isto porque um estudo alemão coloca o peso médio dos transportes no preço final destes produtos vindos da Ásia, África e América do Sul em cerca de 1/3, sendo cerca de 1/2 das emissões também resultantes do transporte.
Também deveria ser feita uma distinção entre produtos de agricultura biológica mas isto é problemático nos produtos em que a diferença para o convencional não é muito grande, como no azeite ou vinho.
Os dias que correm ofuscam opções com pendor social ou sustentabilidade
ambiental. Para o bem e para o mal, o estado de pré-falência em que nos
encontramos, o IVA tornou-se uma mera arma de arrecadar receita. Tristes dias os que vivemos...
Gonçalo Rosa
Parece que há aqui muita gente que não conhece a legislação europeia, nomeadamente sobre o IVA.
(1) O IVA não pode distinguir entre produtos nacionais e produtos importados da Europa. O Camembert não pode ter IVA superior ao do queijo da serra.
(2) O IVA não pode distinguir entre produtos da mesma natureza. Não pode haver IVA reduzido para o azeite e máximo para outros óleos vegetais.
E ainda bem que isto é assim. Cabe ao consumidor fazer as suas escolhas, e não a governantes iluminados. Se os produtos nacionais são beras, é justíssimo que os consumidores prefiram os importados.
Luís,
Concordo genericamente com as tuas criticas, mas penso que deveria existir um esforço comunitário para incluir algumas preocupações ambientais nos critérios das tabelas do IVA. Um aspecto importante é a distância que cada bem percorre entre o local de produção e o de consumo. Ainda que eu compreenda e concorde que não exista um critério nacionalista, uma coisa é importar um produto da Eslovénia e outra é importá-lo de Cáceres ou transportá-lo dentro do próprio país. É verdade que a existir um critério de taxa diferenciada de IVA para produtos nacionais se resolveria facilmente aquela questão, mas contrariar-se-iam os pressupostos da Europa comunitária. Não raras vezes quem defende esta diferenciação de produtos nacionais em relação aos estrangeiros (comunitários) parece mais preocupado com aspectos nacionalistas bacocos que com pegadas ecológicas.
Gonçalo Rosa
@Luís Lavoura
Não fazia ideia, por outro lado deixo (sem condescendência) um link para o aspecto relevante, como convém:
http://europa.eu/pol/tax/index_pt.htm
"os Estados-Membros têm uma margem de manobra considerável para fixar as respectivas taxas do IVA, podendo inclusivamente não respeitar o limite mínimo em determinadas circunstâncias. Podem ser autorizadas isenções se um país o considerar oportuno, por exemplo, para os bens e serviços que não estão em concorrência com bens e serviços de outro Estado-Membro da UE ou para prover às necessidades da vida quotidiana, como é o caso dos produtos alimentares e dos medicamentos."
Ou seja, é da responsabilidade dos Estados-membros definir o que é "necessário para a vida quotidiana" logo não me parece que seja ilegítimo fazê-lo reflectir sobre o IVA em alimentos essenciais, que é o que acontece mas de forma incoerente. Dito isto é válido questionar a diferenciação do Camembert face à Alheira e perguntar qual será o critério, exactamente.
Pegando no exemplo que deu: faz para mim todo o sentido o azeite ter uma taxa menor do que os restantes óleos vegetais- não sofre um processo de extracção por solventes químicos e posterior refinação (processo energeticamente muito mais exigente que a prensa) e também o seu cultivo faz dele comparativamente dos alimentos com menor impacto ambiental e presença de pesticidas. Os resíduos de produção podem servir para produzir energia ou serem compostados, ao contrário dos outros.
Não se está aqui a falar em embargos mas em incentivos, o consumidor retém acesso à escolha e é precisamente o mesmo cidadão que escolhe o "estado-iluminado" que o representa. A não ser que vivamos num país de consumidores passivos e não de eleitores envolvidos no "estado iluminado" que partilhamos.
Podemos fazer de conta que toda a fruta ou peixe que entra no nosso país vem de países que praticam regras laborais, de segurança ou qualidade que temos de cumprir ou que tem padrões ambientais mínimos ou que os apoios agrícolas e quotas de produção que nos atribuem não são uma forma de proteccionismo por parte de outros estados-membros. Podemos fazer de conta que as emissões derivadas do transporte e processamento não contam, que os processos que consumem recursos como a água ou que têm subprodutos tóxicos não devem ter isso contabilizado no seu preço final (o preço é pago por alguém, em algum lugar).
Podemos ignorar tudo isto e confiar num ideal de mercado horizontal e justo (que se calhar só existe nas banquinhas de mercearia de 2 ou 3 produtores da mesma terra) ou, ao apoiarmos um regime de IVA diferenciado, podemos pelo menos tentar abordar a questão de forma coerente e objectiva.
Gonçalo,
"Um aspecto importante é a distância que cada bem percorre entre o local de produção e o de consumo"
Esse aspeto, importante sem dúvida, está automaticamente incluído no preço do produto, uma vez que o gasóleo custa dinheiro e, portanto, o transporte custa dinheiro. Ou seja, o custo da distância já se encontra internalizado no preço, não é uma externalidade que precise de ser incluída mediante uma intervenção estatal (son a forma de impostos).
Eu seria, isso sim, fortemente a favor de que o imposto sobre o gasóleo fosse igual ao imposto sobre a gasolina - em vez de o gasóleo pagar um imposto mais baixo -, como acontece no Reino Unido, e de que o combustível para aviação pagasse imposto. Tais medidas contribuiriam para internalizar ainda mais os custos de transporte.
O IVA é que nada tem a ver com o caso.
@Luís Lavoura
Não existe política concertada da UE face á taxação de combustíveis, o que leva até a que o transporte de produtos alimentares ou agrícolas vindos de fora de Portugal seja mais económico porque as rodoviárias estrangeiras (sobretudo espanholas) entram cá com os depósitos cheios de combustível mais barato. Isto leva a mais um incentivo indirecto da importação, que só é combatido com a diminuição da nossa carga fiscal sobre os combustíveis, que ambientalmente (e para o nosso défice dominado por importação de gasolina e gasóleo) não faz qualquer sentido.
É mais fácil usarmos os instrumentos de incentivo que nos são permitidos internamente para os bens essenciais do que aguardar por um eventual consenso europeu na taxação de combustíveis que os torne irrelevantes.
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