O relatório que referi no último post é um bom relatório sob vários aspectos, tem informação empírica relevante e já me foi útil. E foi de lá que tirei esta figura.
Mas tem um problema estrutural: as ideias da sua autora e dos seus orientadores sobre conservação. Que são aliás bastante comuns.
E é por este vício de raciocínio ser tão comum que resolvi pegar num aspecto concreto do relatório procurando explicar que quando não se toma cuidado o pensamento mágico tende a exilar o pensamento científico. Mesmo em relatórios científicos, como é o caso.
Um conjunto de citações e depois um comentário final.
"Ao longo dos corredores de construção das rodovias em estudo, os valores de IQA [mede a densidade de indícios de lobo] foram sempre baixos ou mesmo nulos (Figura 3) (Petrucci-Fonseca et al, 2007). "
...
"Entre 2005 e 2008, a percentagem de quadrículas utilizadas pelo lobo foi diminuindo, chegando a verificar-se um decréscimo de 56,6% do uso do espaço no ano 2008 em relação a 2005. Este decréscimo ao longo dos anos está relacionado em parte com a construção das infra-estruturas A24 e A7 na área de estudo durante o referido período de tempo. Analisando-se os valores de IQA, verifica-se uma redução geral dos mesmos e um afastamento do lobo em relação às auto-estradas, especialmente da A24, uma vez que o número de quadrículas com presença de lobo é muito baixo."
...
"A intensidade de uso por parte da espécie das quadrículas junto às rodovias, apesar da recuperação, ainda é fraca, com excepção ao troço da A24 entre Vila Pouca de Aguiar e Pedras Salgadas. Este troço está numa zona de contacto entre a Serra da Padrela e a Serra do Alvão e apesar da vegetação da encosta leste da Serra do Alvão ter sido destruída por um grande incêndio, parece continuar a ter condições para a presença do lobo."
...
"Entre Janeiro e Junho de 2010 encontraram-se valores de IQA mais baixo do que os observados no mesmo período do ano anterior (Anexo IX). Verificou-se um afastamento do lobo em relação a ambas as auto-estradas, não se observando quadrículas com presença em redor da A7 e do troço da A24, onde anteriormente já fora registada."
...
"A comparação dos IQA’s médios ao longo dos anos veio demonstrar uma diminuição dos mesmos e principalmente uma diferença significativa entre o ano 2005 e os anos 2007, 2008, 2009, e 2010 e entre o ano 2006 e os anos 2008 e 2010. Esta diferença vem confirmar a existência de uma perturbação sobre a população lupina desta área. As auto-estradas parecem ser responsáveis por esta diminuição geral dos IQA médios anuais, uma vez que foi a partir do ano 2005 que se começou a verificar a redução dos mesmo, ano esse que corresponde ao início da construção destas infra-estruturas. Porém, outros factores de perturbação podem também estar a contribuir para esta situação, tais como a construção de parques eólicos ou a existência de pedreiras na área de estudo. Contudo observa-se um aumento dos valores de IQA de 2009, que poderá indicar uma diminuição do impacto das auto-estradas, ou seja, uma diminuição do efeito de repulsa. Todavia, nas duas primeiras estações de 2010 verificam-se valores de IQA mais baixo comparativamente às duas primeiras estações do ano 2009. É, portanto, provável que a população do lobo continue a sentir os impactos da construção da A24 e A7 ou de outros factores de perturbação."
...
"Densidade Populacional nº ind/100 km² de 2005 (primeiro) a 2009 (último):
2,12; 1,76; 2,00; 1,76; 1,76"
...
"estes valores encontram-se dentro dos valores apresentados para os núcleos a Norte do rio Douro (Pimenta et al, 2005). Todavia, mais baixos comparativamente com os estudos de Carreira & Petrucci-Fonseca (2000), para a mesma região, em que a estimativa é de 2,6 lobos/km2 no Outono."
...
"o baixo registo de indícios de presença do lobo em redor destas infra-estruturas não é, contudo de estranhar, uma vez que estas vias se encontram fora dos centros de actividade das alcateias da área de estudo, sendo portanto o uso do espaço próximo das auto-estradas mais pontual e apenas durante movimento exploratórios ou de dispersão de alguns indivíduos da espécie".
"o baixo registo de indícios de presença do lobo em redor destas infra-estruturas não é, contudo de estranhar, uma vez que estas vias se encontram fora dos centros de actividade das alcateias da área de estudo, sendo portanto o uso do espaço próximo das auto-estradas mais pontual e apenas durante movimento exploratórios ou de dispersão de alguns indivíduos da espécie".
Depois de se passar o tempo todo a dar explicações para a baixa densidade de indícios junto das auto-estradas a partir da tese base (as auto-estradas afectam a espécie), uma nota quase de rodapé explica o essencial: o traçado das estradas foi alterado para afectar o menos possível os valores naturais presentes.
Depois de se passar o tempo todo a discutir densidades de indícios (esquecendo como são frágeis os métodos de análise, com visitas de jipe de três em três meses para uma área vastíssima) passa-se como cão por vinha vindimada pelo facto de não haver variações expressivas (e muito menos com uma tendência definida) sobre a densidade populacional de lobos.
A falta de rigor nas interpretações que são feitas (e não esqueçamos que sendo natural jovens profissionais cometerem erros básicos por falta de experiência, já é menos razoável admiti-los em trabalhos que têm orientadores experientes e conhecedores) acaba por mascarar o essencial dos resultados:
Repare-se neste parágrafo quase final do relatório:
"As principais presas do lobo ibérico na área de estudo são os ungulados domésticos, sem os quais seria muito difícil esta espécie sobreviver. Torna-se então necessário implementar medidas de conservação e gestão que visem diminuir a predação dos rebanhos e o pagamento atempado das indemnizações dos prejuízos."
Como? Então a espécie depende da predação sobre os rebanhos e conclui-se que para conservar a espécie é precisa diminuir essa predação?
Eu percebo o raciocínio ingénuo por trás deste parágrafo: se o lobo preda os rebanhos os pastores vão matar os lobos, portanto é melhor fazer qualquer coisa para ver se isso se resolve e parece que pagar os estragos (que não serve para diminuir a predação sobre os rebanhos, só serve para ressarcir prejuízos) e diminuir a predação sobre os rebanhos está na lista das medidas de conservação do lobo.
Só que a questão é outra. O que se passa é que os lobos estão em stress trófico, e o que é preciso é resolver isso: aumentando a predação sobre os rebanhos, se for o caso, gerindo habitat para aumentar a densidade de outras presas, se for possível.
E o relatório até tem uma coisa fantástica: a identificação do coelho como uma presa relevante.
Aumentar a densidade de corços é possível, mas demora tempo, aumentar a densidade de coelhos é mais fácil.
Mas qual seria o orientador que aceitaria uma tese que propusesse o aumento da densidade de coelho para melhorar as condições de conservação dos lobos em Vila Real?
Antes a diminuição da predação dos rebanhos, que é absurdo (face aos dados) mas é politicamente correcto.
henrique pereira dos santos
2 comentários:
Depois de vermos o sucesso que foi a introdução de veados na serra da Lousã e como em cerca de uma década a população cresceu e se expandiu, e depois de se perceber a importância que os veados têm na dieta dos lobos no Montesinho (e como estes se adaptaram bem ao aparecimento de uma nova presa), surpreende-me que não se fale na reintrodução de veados na zona em causa.
Torna-se ainda mais estranho quando se vê a facilidade que qualquer herdade ou coutada no Alentejo tem de comprar/criar veados para a caça.
Além de que (ao que parece) nas zonas onde veados e corços existem, os primeiros acabam por formar populações com maior densidade (Lousã, Montesinho).
No longo prazo deve ficar mais barato este investimento do que pagar indemnizações aos pastores eternamente.
O que escrevi em relação ao Alvão, vale também para o PNPG e maciço da Gralheira.
Enviar um comentário