A leitura dos comentários associados a esse post é para mim tão surpreendente que resolvi fazer eu também um post sobre a questão específica da participação dos comuns em projectos de atlas.
Um pouco de enquadramento.
Há já uns anos (14, 15), quando tive responsabilidades na presidência do ICNB, acompanhei de perto o lançamento de alguns atlas. Alguns concretizaram-se, outros não, todos com muitos atrasos.
Nessa altura participei activamente nas reuniões de técnicos ligados ao assunto, não por ser técnico ligado ao assunto, mas por ter responsabilidades de decisão e a presidência de então considerar os processos de sistematização e disponibilização pública de informação sobre biodiversidade uma das questões essenciais da política de conservação da natureza e uma responsabilidade indiscutível do ICNB.
Desde muito cedo a então presidência do ICNB deixou claro o princípio de que os atlas (e genericamente a produção, sistematização e disponibilização ao público de informação sobre biodiversidade) era demasiado importante para ser deixada aos técnicos de biodiversidade.
Isto que hoje é uma banalidade foi na altura um corte fracturante (como agora se diz) com a prática do ICNB, que se materializou na lógica inicial dos atlas, independentemente de terem depois evoluído noutros sentidos, menos o atlas das aves, mais o atlas dos répteis e anfíbios, infelizmente ainda muito amarrado a uma concepção tecnocrática de produção de informação de biodiversidade. E materializou-se em vários outros processos, como o impulso no desenvolvimento do SIPNAT ou a obrigação que foi imposta, contrariada pelos técnicos, pelo menos quanto ao timing, da discussão pública sobre a delimitação da rede natura (considerado um processso exclusivamente técnico nos seis ou sete anos anteriores, razão pela qual ninguém conhecia as propostas então levadas a discussão pública).
Mais tarde, já sem essas responsabilidades, mas com responsabilidades mais operacionais na avaliação de impacte ambiental, apercebi-me (na realidade já tinha essa percepção, mas não com a dimensão da evidência que me entrava pelos olhos dentro) da quantidade de informação sobre biodiversidade que o país produzia e desperdiçava em arquivos, físicos ou virtuais, a que poucos ou nenhuns tinham acesso.
Tentei, como já em vários posts expliquei, encontrar dentro do ICNB mecanismos de cooperação com terceiros que garantissem um sistema de recolha e disponibilização dessa informação. Nunca o consegui (erros meus, má fortuna...). A BIO3 chegou a lançar uma plataforma que foi de facto asfixiada pelo recuo do ICNB na partilha de dados, com o argumento (agora repetido) que dentro de seis meses (penso que sito terá sido há três anos) teria operacional uma nova versão do SIPNAT que tornaria redundante a tal base de dados da BIO3.
Quando saí do ICNB continuei a trabalhar numa solução que permitisse servir de plataforma para esse objectivo de recolha e disponibilização de informação que é todos os dias produzida pelo país em matéria de biodiversidade.
Nesse contexto, um dia o Henrique Miguel Pereira disse-me para ir falar com as pessoas do Biodiversity4all que eu não conhecia de lado nenhum. Tivemos uma conversa simpática num café qualquer e eu abandonei imediatamente as minhas propostas para passar a apoiar as propostas, bem mais adiantadas e estruturadas que as minhas (pelo menos em alguns aspectos, há outros em que acho que as soluções em que vinha a trabalhar estavam mais adiantadas, mas isso é um pormenor).
O apoio que dou ao biodiversity4all é um apoio externo, isto é, não estou envolvido no núcleo duro do projecto, faço propostas e perguntam-me opiniões, mas verdadeiramente quem trabalha no projecto e o mantém a andar são essas pessoas.
Esse apoio tem essencialmente duas componentes: alguma discussão sobre orientações estratégicas e procura de meios de sustentabilidade económica do projecto (sim, o trabalho das pessoas é voluntário mas o seu desenvolvimento pode implicar despesas); procura de dados, que todos fazemos, de forma a alimentar a plataforma com informação.
O site tem bastantes coisas de que não gosto.
Criado a partir de uma plataforma holandesa (se não me engano) é a cara portuguesa de uma plataforma europeia (http://www.observado.org/) que é essencialmente uma plataforma de observações, pressupondo observadores com alguma experiência. Tem por isso uma orientação muito marcada para o registo e é muito pouco intuitiva para as pessoas, como eu, que mais que observadores são utilizadores de informação. Por exemplo, obter o mapa de distribuição de uma espécie obriga a um caminho longo e muito pouco intuitivo. E há muitos exemplos destes.
Mas tem três coisas de que gosto muito: 1 - existe;2 - é muito democrática; 3 - tem uma plasticidade que lhe permite adaptar-se às situações novas. Por exemplo, estão a ocorrrer os primeiros resultados de uma inovação pedida por uma entidade apoiante: o registo de habitats e não apenas o registo de espécies.
Dentro deste meu trabalho de procura de fontes de informação, tenho tentado (com poucos resultados, por agora) mobilizar detentores de grandes quantidades de registos a ligar-se ao biodiversity4all. A questão não é transferir informação de uns sítios para outros, isso pode fazer-se, bem entendido, a questão é mesmo partilhar informação entre diferentes bases de dados de modo a facilitar o registo (registar num sítio ser suficiente para estar em diferentes plataformas) e a permitir o acesso mais próximo possível dos interesses dos seus utilizadores.
Como toda a gente envolvida no processo faz este trabalho de formiguinha, procurando carrear informação, o site tem neste momento quase 60 mil registos, tendo nas duas últimas semanas dado um salto grande por incorporação automática de 15 mil registos que existiam (obrigado Daniel Sobral, porque convém dar nomes à generosidade) e que foram transferidos automaticamente, ficando disponíveis para todos nós quase instantaneamente.
A quantidade de gente que tem registos em bases de dados e folhas excel deve ser incrível, a quantidade de registos que existem, uns em plataformas mais públicas mas pouco acessiveis aos não iniciados, outros nos seus computadores deve ser assombrosa e portanto haverá com certeza, ao longo do tempo, boas surpresas destas.
O biodiversity4all nasce aliás do facto de alguns dos participantes na carta piscícola nacional terem achado um desperdício não encontrar maneira para tornar permanentemente acessíveis os dados que recolheram para essa tarefa específica.
Já hoje, se os diversos participantes nas reuniões dos atlas dos morcegos estivessem disponiveis para ceder os dados de observações que sem dúvida detêm em bases de dados e folhas excel, em meia dúzia de dias (literalmente em meia dúzia de dias) era possível ter um primeiro esboço de um atlas com algum significado. Não como atlas, que seria muito incompleto e desequilibrado, mas como base de programação do atlas, tal como se pretende que ele venha a ser e como base de mobilização de terceiros eventuais produtores de informação útil. Sem qualquer custo.
Este é o contexto do meu pequeno comentário estranhando mais um novo projecto que vai criar uma nova base de registo e disponibilização de dados fechada à comunicação com outras bases (já nem discuto o facto dessa base de dados não ser necessária, existem coisas já feitas que servem, e ser portanto um desperdício de recursos inventar outra vez a roda).
Curioso é o desenvolvimento da discussão que este comentário motivou.
Seria perfeitamente razoável que me respondessem "fizemos esta opção por estas razões".
Mas não. Deram-me respostas polidas (agradeço aliás a disponibilidade da Ana Rainho, coordenadora do processo, para ter vindo aqui comentar, além das outras pessoas envolvidas, claro) que remetiam para coisas genéricas que não respondiam a nada de concreto face ao comentário que fiz.
Por esta razão fiz notar que se se pretende que as pessoas participem voluntariamente no que quer que seja, a confiança e transparência são os activos essenciais a construir e preservar. E acrescentei, para evitar más interpretações, que estava a discutir um pormenor dentro de um projecto que é muito mais importante que esse pormenor.
E a partir daí a reacção afunila na distinção entre os especialistas, os que participam e por aí fora (que já discutiram tudo e decidiram tudo, presumivelmente bem, até porque são especialistas) e os outros que, se quiserem, contactem a coordenação do projecto (a típica inversão tecnocrática que postula que os interessados se devem dirigir a quem orienta os processos de decisão antónima do postulado democrático de que são os dirigentes que devem dirigir-se aos comuns). E depois uma pequena derivação sobre os que criticam em vez de fazer e que minam o processo, o que não passa de um exagero da argumentação tecnocrática, em que os que manifestam opiniões fora do guião oficial devem ser proscritos por não cumprirem as regras que garantem o bem comum.
Esta reacção é muito comum nas lógicas tecnocráticas predominantes nos domínios de especial complexidade técnica.
É o caso da gestão da biodiversidade mas também da energia nuclear, só para citar dois extremos opostos de políticas necessariamente públicas que os técnicos acham sempre ter fundamentos demasiado complexos para serem decididas pelas pessoas comuns.
E são estas reacções que combato sempre.
Porque levanto suspeições sobre o atlas dos morcegos? Porque acho a Ana Rainho (uso-a como exemplo por ser a coordenadora do atlas) menos estimável e sem capacidade para ser a coordenadora do Atlas? Porque quero ser eu a determinar o que o atlas deveria ser e como o processo deveria ser gerido? Não, não, não a todas as perguntas e as vezes que for necessário. Aliás, dificilmente se arranjaria coordenadora melhor que a Ana Rainho, talvez com a excepção da Ana Rainho menos influenciada pela excessivamente ideológica faculdade de ciências de Lisboa.
Se comento e discuto o processo é apenas porque acho normais e intuitivas estas reacções dos técnicos face ao risco de erro que existe em modelos de produção de informação menos controlados e porque estas reacções têm efeitos muito negativos na mobilização das pessoas (que é sempre difícil e condicionada por pequenas coisas aparentemente sem importância).
Abrir processos de construção de atlas (ou outros processos de aquisição de dados de biodiversidade que exijam milhares de olhos em milhares de hectares, e não necessariamente os melhores olhos em áreas limitadas de observação) implica ser capaz de resistir à tentação do rigor excessivo na base, transferindo o rigor para os procedimentos (Francisco Amorim dá um bom exemplo a propósito dos ultra-sons) e para o controlo de qualidade dos resultados.
Implica ser capaz de resistir à desconfiança na capacidade dos outros produzirem informação útil, e o que interessa é a informação útil, não necessariamente a informação rigorosa (sendo rigorosa é necessariamente útil, mas a inversa não é verdadeira).
E implica um esforço sério de ir à procura de quem pode ser útil ao processo, resistindo ao conforto de fechar o processo no grupo de pessoas em quem já se tem confiança.
Discutir se o biodiversity4all é a plataforma a usar ou não no processo é um pormenor lateral.
Mas discutir a atitude geral de abertura ou retracção "aos comuns", muitas vezes claramente ignorantes, é certo, mas ainda assim podendo ser úteis, já não é uma questão lateral.
henrique pereira dos santos
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