quinta-feira, julho 21, 2011

Cenários, cidades e cidadãos

Imagem do que me parece um bom projecto do João Gomes da Silva e do João Nunes, ilustrando como nem sempre é fácil conciliar trânsito e renovação urbana agradável para os peões. Vão aqui e podem ver mais imagens e várias críticas ao projecto (nenhuma delas me pareceu minimamente consistente, parecendo-me que há mais pessoas do que eu pensava que não sabem que esta doca que aqui aparece existiu no tempo em que isto era o maior estaleiro de Portugal e provavelmente do Mundo). Seria melhor não ter trânsito? Sim, eu gostaria mais. Era possível? Provavelmente não. Foi possível conciliar inteligentemente essa impossibilidade com um bom espaço para as pessoas? A mim parece-me que sim
Visito de vez em quando este blog.

Tem uma perspectiva interessante de sustentabilidade ambiental, tem boa fotografia e tem um trabalho militante e imenso das suas autoras.

Mas tem dois "pecados" que por vezes me tiram do sério: 1) o síndrome do "lá fora é que é bom"; 2) o abuso da falácia de que uma imagem é a materialização da verdade incontestável, esquecendo que aquilo a que chamamos realidade resulta mais da forma como olhamos para ela do que daquilo que ela intrinsecamente é (alberto caeiro, como referência bibliográfica para esta última afirmação, é útil).

Numa das minhas últimas visitas dei com uma série de posts sobre praças que são constituídos por fotografias, sem indicação clara de onde são excepto o país de origem, ou seja, o exemplo é o país e não aquela situação em concreto. Corresponde à ladaínha "vejam como noutros países fazem bem e em Portugal fazemos mal".

Este tipo de argumentos são óptimos na luta política mas na verdade são muito pouco úteis quando se quer perceber a realidade.

A exclusão do tráfego automóvel das praças (enfim, não é explícito o objectivo desta série, mas aparentemente pretende demonstrar que as praças servem para as pessoas se encontrarem desde que se eliminem os carros) é um exemplo típico de como este tipo de argumentos inquinam uma discussão que podia ser útil e interessante.

Alguns comentadores são muito claros a defender que a exclusão total do tráfego automóvel das praças como um indicador de superioridade civilizacional, bastando para isso olhar para as fotografias.

É uma forma de discutir muito do senso comum, mas está errada.

Uma coisa é a construção de cenários para a valorização de activos turísticos, outra coisa é a gestão urbana, que pode incluir a cenarização de algumas partes da cidade (só quando pensava neste post me dei conta de que as desastrosas intervenções de Siza Vieira nos Aliados e de Bruno Soares no Terreiro do Paço são, nesse sentido, muito barrocas. Não na forma, claro, mas no seu objectivo de cenarização próprio de épocas de excesso de riqueza e culto do luxo, que não há outro nome mais próprio para dar ao desperdício de espaços imensos nas zonas mais nobres das duas principais cidades de Portugal).

A cenarização está de maneira geral associada à exclusão total de trânsito de algumas praças emblemáticas de destinos turísticos mas essa opção não é necessariamente feita tendo em vista os seus habitantes mas sim os seus visitantes (visitantes não significa turistas, visitantes são os milhares que todas as noites invadem o Bairro Alto, mas preferem viver noutros lados porque a vida ali é um inferno).

Não compreender o conflito potencial entre os interesses dos visitantes e dos habitantes na discussão dos destinos a dar a espaços públicos emblemáticos, pretender que as praças só servem para esplanadas, cafés e feiras de Natal, não entender que a questão da acessibilidade é essencial que seja avaliada de forma equilibrada, sabendo que aos carros se aplica o velho princípio do uso de substâncias químicas: "a diferença entre remédio e veneno está na dose", significa trocar uma discussão racional sobre a diminuição da pressão automóvel no espaço público por uma guerra de trincheiras entre os que querem e os que não querem carros.

Os carros não existem no espaço público por si, existem porque pessoas reais, de carne e osso, com necessidades concretas os usam, e portanto a conflitualidade não é entre os carros e os peões, mas entre as pessoas que valorizam umas coisas e as que valorizam outras.

O condicionamento (muitas vezes com total exclusão) de estacionamento, a obrigatoriedade de velocidades baixas, nunca acima dos trinta à hora (eventualmente a exclusão total de sinais de trânsito), o condicionamento de alguns percursos e uma avaliação séria das alternativas de acessibilidade, em especial para os grupos mais frágeis (deficientes, velhos, grávidas, bebés de colo e por aí fora) e para as actividades económicas, são incomparavelmente mais eficazes, na maior parte das vezes, que a total exclusão do trânsito automóvel quando se pretenda espaço público de qualidade.

Ironicamente um dos exemplos apresentados, parecendo uma praça totalmente pedonal, na verdade não o é, adopta uma solução frequente em Portugal que consiste manter um trânsito residual, fortemente condicionado, e num dos topos tem umas linhas de eléctricos com bastante movimento. Uma boa demonstração de como uma imagem, por si, não é informação fiável.

Convém lembrar que quase todos, com excepção de alguns grupos sociais muito fragilizados, somos utilizadores de automóveis, e todos somos peões, variando de uma ou outra condição em função de muitas circunstâncias. Há um grupo que se considera não utilizador de automóveis, o restrito grupo dos que não têm carta porque não querem, que partindo do princípio de que o ideal não é ter barcos ou piscinas, o ideal é ter amigos que têm barcos e piscinas, andam de táxi ou no carro dos amigos.

E convém lembrar que a cenarização das cidades é de maneira geral aceite nos sítios onde o turismo é uma actividade com forte peso, sendo sempre uma solução cara e ineficiente, porque sobra para alguém manter fachadas e vida (vida urbana não são hordas de pessoas passeando em algumas alturas do dia) nesses cenários.

Para discutir cenários basta olhar para fotografias, mas para discutir cidades é melhor olhar para os cidadãos, com toda a sua diversidade e actividade e não apenas para os cenários que agradam aos visitantes.

henrique pereira dos santos

15 comentários:

G.E. disse...

Henrique,

Excelente post, deixo apenas uma achega. Em muitos casos, o conflito não é apenas entre habitantes e visitantes, mas sim entre três grupos distintos: os que lá moram (habitantes), os que lá trabalham (mas não moram) e os que lá vão em visita (sejam turistas ou não).

Os primeiros valorização principalmente o estacionamento à porta de casa, o sossego, eventualmente algum comércio de proximidade e a segurança.

Os segundos tenderão a valorizar o estacionamento (abundante e barato), a fluidez do trânsito para chegar depressa ao emprego, a existência de certos serviços para usar à hora de almoço, nomeadamente de restauração.

Os terceiros são, porventura, os que mais valorizam a redução ou eliminação do tráfego automóvel, bem como a existência de outro tipo de estabelecimentos (lojas de souvenirs, restaurantes tradicionais, bares, etc.).

Ora, é virtualmente impossível criar um espaço com características que agradem a todos os grupos, pois o que uns preferem é o que os outros supostamente não desejam. Por exemplo, se for feita uma zona tampão sem qualquer tipo de trânsito automóvel com o fito de agradar aos turistas, o mais certo é ninguém querer ir para lá morar e essa zona se tender a transformar numa zona-fantasma em termos de habitação.

O recente evento que aconteceu na Avenida da Liberdade (com uma exposição de hortícolas promovida pelo Continente) - que é uma zona onde a densidade de escritórios é muito elevada - suscitou reacções muito diversas de uma data de gente (nomeadamente reacções adversas por parte de quem lá trabalha) e é um exemplo claro de visões diferentes sobre o uso que deve ser dado àquela zona da cidade.

Gonçalo Elias

Anónimo disse...

HPS,

Está a fazer um processo de intenções e por isso mesmo o "staw man" está na sua cabeça e não nos posts d´A Nossa Terrinha, nem sequer nos seus comentários.

Eu que leio os posts e comentários com atenção e nunca vi ninguém falar na interdição absoluta de automóveis em todas as zonas das cidades, a todas as horas e nem sequer em todas as praças, nem sequer na totalidade das praças por todo o tipo de utentes.

Está a usar um truque manhoso de tentar encostrar o "outro" ao limite da irrazoabilidade para aparecer como o defensor dos equilibrios e do bom senso.

Não funciona.

Quase nenhuma das praças que conheço, nem sequer as a apresentadas no post, são 100% pedonais. Nem nada, absolutamente nada, indica que as autoras não estão bem conscientes deste facto. Quase todas as zonas pedonais do mundo permitem o acesso a carros de forma condicionada e regulada.

Outra da falácia lógica que o HPS usa com frequência descarada, é sugerir que quando se apresenta um bom exemplo no estrangeiro, se está a dizer que em Portugal não há bons exemplos, ou muito menos dizer que tudo o que é estrangeiro é um bom exemplo. Por mais que tire estas conclusões, elas são suas e exclusivamente suas. Mas não deixam de ser um processo de intenções. Quando a interpretação pode ser que é mais uma vez a sua tentativa de encostar os outros à defesa de conceitos radicais de forma a que o HPS possa surgir como cavaleiro anti-estalinista.

A leitura possível e honesta dos referidos posts pode ser simplesmente esta: as praças onde os poderes públicos tiveram uma atitude corajosa de contenção do *excesso" de carros são muito mais aprazíveis.

Por vezes quando se comparar praças em Portugal e no estrangeiro com fotografias (que são obviamente apontadores subjectivos para ilustrar a ideia exposta no post) podemos concluir: em Portugal as autoridades públicas têm geralmente muito menos coragem de condicionar o uso automóvel em zonas da cidade que mereciam muito melhor sorte.

Como vê, não é só o HPS que tem o monopólio do bom-senso.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro Anónimo,
Acredito que leia atentamente os posts e os comentários da nossa terrinha.
O que lhe pedia era que lesse este post com igual atenção.
Repare que quase tudo o que diz do post não está lá escrito.
Por outro lado a opção das autoras em não explicar o que pretendem com os posts, nomeadamente estes últimos com uma série de praças, permite interpretações que talvez não estejam certas. É a vida.
De qualquer maneira o meu post não é exactamente sobre o nossa terrinha, é sobre a ideia de que excluir carros é necessariamente bom.
Em portugal existem dezenas, que digo, centenas de exemplos de diminuição drástica de trânsito automóvel e aumento muito importante de áreas pedonais. Alguns são mesmo excelentes exemplos, bem fiscalizados e que funcionam de facto.
A maior parte contém soluções de compromisso com o uso de carros.
E é sobre isso, sobre o compromisso dos diferentes utilizadores que é este post.
Uma questão lateral: não tenho a menor pretensão de ter o monopólio do bom senso e em muitos dos meus posts nem sequer procuro as posições mais sensatas mas as que acham que traduzem melhor um bom ponto de partida para uma discussão útil.
henrique pereira dos santos

TMC disse...

O texto apoia-se em parte numa dicotomia que não existe. A de cidadãos e visitantes; àqueles respeita a função da cidade, a estes a fruição. Isto é completamente falso. Tudo o que no texto se apoia nesta dicotomia também o é, por conseguinte.

As cidades podem orientar-se para maximização da fruição sem prejudicar a função. A qualidade de vida é também um objectivo político. E isso implica precisamente quantificar os efeitos negativos da escolha que é andar de automóvel para que o conflito de interesses que o Henrique refere seja avaliado nos seus próprios termos.

Luís Lavoura disse...

Gonçalo Elias,

eu seria ainda mais complexo que você e diria que há conflitos de interesses e desejos, não apenas entre visitantes, utiliadores não-residentes, e residentes, mas também no interior de cada um destes grupos.

Por exemplo, no caso de Lisboa, há residentes de muitas naturezas, desde as idosas que vivem sozinhas e só querem ir à mercearia da esquina, a pé, e ao Centro de Saúde, de autocarro, até àqueles que habitam em condomínios fechados e vão a todo o lado de carro. Da mesma forma, entre os utilizadores não-residentes há muitos que vêem para a cidade de carro, mas também há muitos que vêem de transportes coletivos.

Na minha rua observo que há muitos mais automóveis estacionados à noite do que de dia, o que quer dizer que, embora eu more numa rua central da cidade, há muita gente nela que vai todos os dias para o trabalho de automóvel.

Ou seja, resumindo, toda a gente é diferente e tem interesses e desejos diferentes. Não é linear que um dado projeto de, digamos, pedonalização, beneficie os residentes e os turistas em detrimento dos utilizadores não-residentes.

G.E. disse...

Exacto, Luís. A grande dificuldade é conciliar as expectativas desta gente toda.

Anónimo disse...

Assinalar os conflitos é interessante mas para além de óbvio, algo superficial se o nosso entendimento de política pública é a mera gestão de conflitos.

A decisão do que queremos para as nossas cidades é muito mais que o somatório de interesses imediatos e expressos, sem contemplar e discutir as consequência de cada um desses interesses ou desejos a longo prazo.

A gestão de consumos não pode ser uma mera gestão de desejos e anseios porque consumos de cada um pressupõem consequências e impactos na vida de todos os outros.

Se perguntarmos quem quer ter um BMW estacionado à porta de casa com piscina e fazer férias anualmente numa praia ou cidade exótica haverá vários biliões de pessoas a levantar o braço. O bem colectivo, não é a mera conciliação de desejos individuais. Para além disso, há consumos que, pelas suas características, é perfeitamente legítimo proibir seja qual for os desejos de um conjunto determinado de pessoas (sejam eles residentes, visitantes, ou dezenas de outros cidadão com desejos próprios).

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro anónimo,
Uma pergunta de algibeira para eu perceber melhor o seu ponto de vista: como e quem decide quem pode ou não ter um bmw e uma casa com piscina?
henrique pereira dos santos

Alice Lobo disse...

No Quotidiano vivemos em dimensões paralelas, analise(teoria) é o que se vê em alguns posts e comentários e depois temos a realidade(prática) , " só entendemos as lutas pela acessibilidade de pessoas idosas e com deficiência física se em nossa casa vivermos com esse Problema" Pelas minorias nunca é racional investir, contudo as minorias no futuro serão a maioria. A questão é se quando o futuro for o nosso presente, teremos alguem a lutar pelo nosso bem estar ou teremos um grupo de analistas sem nunca ter visitado uma praça em portugal, porque os pombos são irritantes ou ter vivido no interior.

Anónimo disse...

Inevitavelmente o processo político, caro HPS. O processo político é que não pode ser entendido como mera gestão de conflitos de desejos imediatos. Tal como a Alice explica há consequências imediatas e a longo prazo, diretas e indiretas que não se compadecem com uma visão tão estreita da política e da gestão da coisa pública (neste caso as nossas praças).

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro anónimo,
Como entende que "O bem colectivo, não é a mera conciliação de desejos individuais" e ao mesmo tempo defende que é o processo político que deve definir o caminho para o bem colectivo, suponho que está contra todos os processos políticos que resultem da "mera conciliação de desejos individuais", como é o caso de todos os sistemas baseados no princípio de um homem, um voto. É isso?
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Não.

Não pode concluir das minhas palavras que sou contra todos os sistemas baseados no princípio de um homem, um voto. Nem todos os sistemas baseados no princípio de um homem, um voto, são uma "mera conciliação de desejos individuais".

Continua a ser uma superficialidade da sua parte, pensar que o processo político se resume ao ato eleitoral.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Não tenho dúvidas de que sou eu que não atinjo a profundidade do seu pensamento. Enfim, como também não quer explicar o que diz, ficarei para sempre na ignorância obscurantista.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Respondi directamente e com sinceridade a todas as suas perguntas.

Pensar que o processo político é a mera gestão de conflitos individuais que se resume ao ato eleitoral é precisamente o âmago da superficialidade do seu post.

Henrique Pereira dos Santos disse...

A superficialidade do meu post parece inquestionável, o que é pena é que profundidade dos seus comentários me impeça de perceber o que defende.
Nunca defendi que o processo político se resume ao acto eleitoral.
Mas qualquer processo social resulta da interacção entre os diferentes interesses pessoais ou da negação desses interesses.
O que eu gostava de perceber é como se define o bem comum fora do que resultada dos interesses pessoais, dentro de uma democracia.
henrique pereira dos santos