sexta-feira, março 16, 2012

As rendas e nuclear



Tenho intenção de um dia destes escrever sobre a Parque Escolar e a sustentabilidade. Mas dois posts e respectivos comentários de Pinho Cardão no Quarta República levaram-me a pensar que valia a pena falar nesta altura da energia nuclear em Portugal.
Comecemos pela minha declaração de interesses: estou a fazer um doutoramento sem bolsas ou outros apoios. O que quer dizer que ao mesmo tempo tenho de ganhar dinheiro para pagar as contas e, sobretudo, tenho de gastar muito tempo a criar oportunidades para o ganhar. Nesse contexto procurei apoios alternativos que me permitissem ter algum tempo para o doutoramento. A indústria das eólicas patrocina com 10 000 euros o meu doutoramento, em troca de eu escrever um livro sobre a evolução da paisagem rural portuguesa ao longo do século XX. Como é com base em recibos verdes, quer isto dizer que cerca de 30% fica em impostos. Estou a ser financiado pelas eólicas em cerca de 7000 euros líquidos por cerca de três anos, isto é, cerca de duzentos euros por mês.
Dito isto, evito de maneira geral escrever sobre energia porque não sou especialista do assunto, mas como não tenho medo de dizer asneiras (de maneira geral acabo por aprender muita coisa com os reparos que fazem ao que escrevo) e a energia é uma questão central na discussão da sustentabilidade, de vez em quando lá calha escrever sobre o assunto, como hoje.
À boleia da necessidade de reduzir práticas rentistas no sector da energia, o lobby nuclear (cujo centro nuclear mais visível roda em torno de Mira Amaral, Pinto de Sá, Patrick Monteiro de Barros e Sampaio Nunes) tem insistido que a troica critica a política de produção de energia eléctrica a partir do vento.
Só que o que está em causa nas rendas excessivas são sobretudo os contratos relativos a algumas centrais térmicas e hidro-eléctricas, as garantias de potência e a co-geração. Haverá problemas com alguns contratos de renováveis (em especial foto-voltaico, que é marginal, biomassa e alguns contratos mais antigos de eólicas) mas o essencial do problema está no que citei primeiro.
O que os militantes anti-eólica mais audíveis (que por mero acaso coincidem de maneira geral com os militantes pró-nuclear) dizem é que tudo isso resulta do excesso das eólicas e da sua intermitência, que obriga a sobre-dimensionar a disponibilidade de potência, implicando um tempo de produção muito menor do que seria possível, tornando os investimentos nestas instalações pouco interessantes se não tiverem estas rendas.
O argumento não é totalmente destituído de verdade. Aliás Carlos Pimenta justificou o seu apoio à construção da barragem do Sabor também pelo seu papel positivo para a energia eólica e os produtores de energia a partir do vento mantiveram um discreto apoio ao plano de barragens, calculo eu que por saberem que o aumento de contra-embalses que permitam bombear água à noite corresponde a um aumento do mercado potencial para a eólica.
Simplesmente sempre que os anti-eólicas (ou pró nuclearistas, já que coincidem muitas vezes) querem demonstrar em que medida estes contratos (alguns deles aparentemente leoninos) se devem de facto às eólicas não o fazem pegando na informação existente (já há anos suficiente que existe produção a partir de eólicas para ter informação estatisticamente relevante) mas dando exemplos, ou hipotéticos ou de dias específicos.
Ora esta discussão precisa, para ganhar racionalidade, de informação clara. Estatisticamente que percentagens de energia eólica são produzidas em horas de cheio e vazio? Que percentagem coincide com situações de cheia? Etc. e tal.
E por que razão é precisa informação fiável?
Porque o problema das rendas excessivas em sectores protegidos financiados por decisões do Estado (seja através de pagamentos directos, como nos caso das PPPs, seja por manipulação administrativa das tarifas, como no sector eléctrico) não está confinado ao sector eléctrico, corresponde antes a uma marca de água do governo anterior.
O governo anterior, confrontado com a necessidade de ter investimento para sustentar bons indicadores económicos, mas travado pelos limites do défice, adoptou sistematicamente uma política de ilusão do défice que nuns casos corresponde a pura desorçamentação (Parque Escolar, Estamo e venda de edifícios públicos), de diferimento de custos por project finance (PPPs, que para tornar atractivas isentou do que as torna úteis, isto é, da manutenção do risco do lado do privado) ou de manipulação de tarifas fixadas administrativamente (caso do sector eléctrico, mas também das águas, por exemplo).
A política energética do governo anterior não tem um átomo de motivação ambiental ou de sustentabilidade, porque se o tivesse ter-se-ia centrado no que é realmente relevante nessa matéria: redução de consumos e eficiência energética. Basta ver as decisões do governo que levaram à demissão do anterior presidente da ERSE para perceber que impedir o aumento do preço da energia para o consumidor da energia eléctrica (ou o mesmo para a água de Alqueva) e concentrar o sobre-custo das renováveis nos consumidores domésticos são decisões totalmente contrárias ao estímulo à eficiência energética que representa um preço mais alto da energia.
Estas decisões, perante o silêncio cúmplice das ONGAs (com argumentos infantis de que são questões de mercearia) e perante a incompetência técnica da oposição e o medo de não estar do lado das tarifas baixas (triste papel tem feito a DECO nesta discussão) são bem demonstrativas do que estava em causa e da nossa responsabilidade colectiva no ponto a que chegámos.
Mas sendo certo que todos temos responsabilidades nisto, que o assunto é complexo, que é preciso liquidar rendas excessivas e, sobretudo injustificadas (a idiotia de justificar as tarifas da produção eléctrica a partir de biomassa com o efeito positivo disso na gestão dos fogos florestais e a anomia da sociedade em relação a isto envergonha-me profundamente como cidadão do meu país) não nos pode deixar levar pela propaganda dos nuclearistas: o que está em causa não é uma discussão entre energias renováveis e caras e energia nuclear e a pataco.
Nem a energia nuclear é a pataco, nem a energia eólica tem tarifas excessivamente altas, nem se vê como o mesmo modelo de decisão política não conduzisse a distorções semelhantes com base na energia nuclear. Com a gravíssima diferença de que tudo o que existe é reversível com alguma facilidade, ao contrário do que aconteceria se a opção tivesse sido pelo nuclear.
henrique pereira dos santos

6 comentários:

FredericoV disse...

"Estatisticamente que percentagens de energia eólica são produzidas em horas de cheio e vazio?"

É impressionante que se continue a ouvir constantemente o argumento que as eólicas produzem à noite quando a electricidade não é necessária e tem de se construir barragens para guardar essa energia em excesso.

Nunca em nenhum minuto as eólicas produziram 100% do consumo do país. O máximo que se chegou foi 93% numa madrugada de vendável.

Anónimo disse...

Caro eólico-Frederico, como sabe isso é verdade mas era domingo e não chovia. Agora imagine que chovia e ventava. Tinhamos de exportar a electricidade renovável pagando para isso. Já aconteceu cerca de 100 horas em 2010, algures em Fevereiro (de cor). Indo ao site da REN temos o relatório de 2011 onde se apresenta claramente o perfil diário médio do vento, com variações entre 29% e 21% de potência disponível sendo o valor mais baixo ao meio-dia. A variação do consumo é de 50% a eólica é inferior a 10%. Isto são factos. Como vai ser hoje ou amanhã, o conhecimento Português também desenvolveu um programa (na REN) que acerta com muita fiabilidade.
Manuel Ferreira dos Santos

BICIFILA disse...

O grande problema entre mãos do lóbe anti-intermitentes-pró-nuclear resido no simples facto de as novas eólicas estarem a produzir a cerca de 64 euros/MWh, enquanto que as fósseis, muitas horas ao longo doa dia, produzem acima de 70 euros (OMEL). Não convém que a realidade estrague uma boa história...

Henrique Pereira dos Santos disse...

Manel, depois dessas 100 horas já passaram cerca de 18000 horas, onde esse fenómeno raro (estar a chover tanto, tanto tempo seguido que as albufeiras estão sem capacidade de armazenagem e têm de turbinar por razões de segurança) não voltou a acontecer, e pela seca que temos teremos pelo menos outras 18000 horas antes que exista a mais remota hipótese de voltar a acontecer. Ou seja, quando uma perda de menos de 0,5% é usada como argumento decisivo até o meu merceeiro, que todos os dias tem laranjas e couves que não vende, percebe que alguém o está a tentar enganar.
henrique pereira dos santos

António Pedro Pereira disse...

Caro Henrique Pereira dos Santos:
Tenho-o lido ultimamente (na polémica com Pinho Cardão, no 4R) e quero dar-lhe os parabéns pela forma cordata, não ideológica, afável e informada como intervém.
É raro no debate hoje em dia, infelizmente.
As pessoas primeiro definem uma posição contra ou a favor, depois aduzem os factos que sustentam a sua posição.
É triste, quando o que deveria interessar era apresentar argumentos baseados em factos e estar aberto à discussão séria e informada.
Passarei agora a vir frequentemente ao seu blogue, que não conhecia.
Também gostei muito da sua honestidade ao fazer a declaração de interesses.

P. S. Permita-me um pequeno reparo formal, talvez fruto de deformação profissional. PPP não se escreve com apóstrofo mais um s (PPP’s).
Trata-se de um acrónimo, e os acrónimos não são substantivos que pluralizem com um s, pois podemos lê-los no plural ou no singular.
PPP – Parceria Público Privada
PPP – Parcerias Público Privadas
Desculpe-me a inconveniência.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Obrigado pelo seu comentário, incluindo a questão do plural das PPP (seguindo a sua indicação, que se não se importa irei confirmar com outras pessoas). Na verdade eu não uso apóstrofo, embora acrescente o s, porque li umas coisas sobre os plurais deste tipo e da ausência de apóstrofo fiquei convencido. O s ficarei atento para me informar melhor. Correcções de português agradeço todas e não as acho inconvenientes.
henrique pereira dos santos